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Um prodígio popular

Um prodígio popular

Jorge Bornhausen •

Senador por Santa Catarianl, Governador de Santa Catarina, Presidente do PFL

Vinte anos é pouco para quem acha efêmero tudo o que não tem a idade das pirâmides. Mas, às vezes, a realidade cria situações incontornáveis e obriga, até a esses céticos, a celebrar décadas como se fossem milênios.

Eu os relembro muito bem. Os homens de pouca fé de 1984, que nos viraram as costas quando, homens de boa vontade, apostamos na experiência e vocação política de Tancredo Neves e o adotamos como profeta e guia, líder e evangelista e o tornamos Presidente eleito de fato, plebiscitariamente, de um País em que era negado ao povo, constitucionalmente, a eleição direta para Presidente da República.

Não houve mágica nem ilusionismo, mas sim um prodígio popular. O povo brasileiro fundou a sua democracia na contramão do formalismo e da liturgia que lhe são inerentes. Poucas vezes no mundo a adesão autêntica da população substituiu a indispensável manifestação eleitoral e ungiu um Presidente da República como se tivesse ocorrido sufrágio universal.

O voto indireto que elegeu Tancredo teve a força de uma votação direta.

Vencemos.

Perderam os que não acreditavam que fosse possível fundar o regime democrático sem sangue, ódio e vingança.

Em 1985, este País realizou a mais fecunda e profunda virada na sua história. Antecipou em quinze anos a sua entrada para o século XXI e nos entregou ao futuro, onde hoje estamos, prontos para crescer, modernizar e implantar a plena cidadania, desarmar a valentia covarde dos totalitários, a insanidade dos revolucionários, tornando-nos, finalmente, o que merecemos ser: uma civilização.

Orgulho-me de ter sido um dos conspiradores pioneiros que, em 1984, acreditaram na Nova República e a viveram intensamente nestes 20 anos. Valeu a pena. Na verdade, ninguém percebeu o prodígio que se operava, já que é uma maldição que marca os profetas. Desde a Bíblia, eles semeiam o futuro, mas não conseguem perceber quando esse futuro se materializa. Faz parte da estrutura dramática do Velho Testamento essa maldição incompreensível. Os profetas não percebem o alcance dos prodígios de que são precursores.

Ninguém percebeu no dia 15 de março de 1985 a virada radical do tempo brasileiro, muito mais que o assinalado pelo calendário gregoriano. O século XXI para o Brasil e os brasileiros começou naquele dia. Foi um momento raro de ruptura, como o 7 de setembro de 1822, com a Independência; como o 15 de novembro de 1989, com a República; como o 29 de outubro de 1945, com a queda do Estado Novo.

O 15 de março de 1985 tornou-se uma das quatro datas fundamentais da nossa historia – e Deus queira que seja a última -, assinalando a nossa entrada definitiva e irreversível no rumo da vocação do nosso País. O dia em que o Estado democrático foi irreversivelmente estabelecido, assentando-se os alicerces sólidos da plena liberdade.

A vontade do povo brasileiro pôde experimentar, sem susto ou medo, quaisquer propostas e idéias políticas, partidos e líderes, sem os riscos das fragmentações e da irreversibilidade, do totalitarismo e da intolerância. Inoculou-se também o princípio sagrado da renovação periódica dos mandatos e nunca, nem ninguém, nem grupos, partidos ou pessoas se proclamarão tutor ou senhor, protetor paternal ou dominador violento do povo brasileiro. Nem fascistas, nem elitistas ou anarquistas, nem utopias ou ceticismos, não adianta o apelo das marcas de fantasia, este País não cederá às tentações totalitárias.

Tudo isso, porém, essa construção política de que hoje desfrutamos não passava de uma semente – uma esperança – jogada ao chão, adubada, irrigada, protegida dos predadores à esquerda e à direita, que agiam com a brutalidade e a grosseria de que somente são capazes os radicais.

A Nova República, que nem tinha esse nome nas conspirações que a desenvolveram, foi uma semente plantada com senso de oportunidade, astúcia política, competência, visão estratégica e uma associação humilde, dedicada, fraternal, verdadeiramente digna da condição humana, por cidadãos tão diferentes entre si como os dedos da mão e os rostos na multidão.

Teria que ser naquele momento. Antes teria sido abortado; depois teria degenerado. Teria de ser com Tancredo, maduro, experiente, cumulado de sabedoria, treinado pela história, desde a vereança em São João Del Rei, da constituinte estadual mineira de 1947, do choque federal de 1954, aos anos de ostracismo honrado sob o regime de 1964, até que finalmente, quando foi a hora, assumiu seu papel de principal protagonista. Primeiro, como Governador de Minas, quando desarmou temores, confirmou sua capacidade de conciliador, inspirou a confiança geral e mostrou coragem. Sim, porque o ingrediente essencial de 15 de março de 1985 foi a coragem. Não nos esqueçamos do arreganho desvairado do atentado do Riocentro, nem da tentativa de assalto popular ao Palácio dos Bandeirantes. Naquele momento, a grande federação das oposições que conseguira galvanizar eleitoralmente o País a partir de 1974, tendo à frente Ulysses Guimarães, Presidente do PMDB, Leonel Brizola, Governador do Rio de Janeiro, Franco Montoro, Governador de São Paulo, Pedro Simon, Senador, Afonso Camargo, Deputado, e o próprio Tancredo, tinha que escolher entre dois caminhos: o de promover um confronto com um desfecho imprevisível ou procurar uma saída pacífica, mas que implicava em reserva de paciência, firmeza, coragem e principalmente humildade.

Fizeram a segunda opção. Graças a Deus. A Campanha das Diretas Já! – a um só tempo com inspiração de bastidores e movimento de rua – tornou-se o estuário de todas as águas. Afluentes à esquerda e à direita foram-se jogando, confiantes e esperançosos. Nem a derrota arrefeceu o projeto ou desestimulou a conspiração.

Naquele 25 de abril de 1984, fiz minha declaração de voto a favor das Diretas Já. Mas não foi a Câmara que deu a possibilidade de votarmos no Senado. A redemocratização, naquele momento, ainda era um projeto pirandelliano: uma aspiração nacional à procura de um líder.

Não precisei esperar muito. Menos de dois meses depois, no dia 11 de junho de 1984, tive a oportunidade de praticar um gesto pessoal decisivo. Seguindo um script de rebeldia e denúncia, e acompanhando igual comportamento do Senador e eminente amigo José Sarney, renunciei à presidência do PDS, que havia recebido de suas mãos poucos dias antes.

Não estava só.

Nosso grupo, liderado por Marco Maciel, extraordinário estrategista; Aureliano Chaves Vice-Presidente da República; Guilherme Palmeira, Senador; José Sarney, Senador, e eu, foi o núcleo da Frente Liberal que se transformou no valoroso e atual PFL.

O certo é que, naquele mesmo 11 de junho, horas depois, o Deputado Ulysses Guimarães me procurou e entrei de corpo e alma na conspiração da qual não me apartei nunca mais, porque a Nova República não foi um momento fugidio.

É um compromisso com a democracia que jamais se esgotará, que nos ungiu a todos e nos desafia a cada dia a testemunhá-lo, pelos que já morreram e pelas gerações que virão.

O destino colocou em nossas mãos, no grupo que formou a Frente Liberal, a oportunidade de fornecer o complemento que evitaria a ocorrência, no Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985, da falta dos votos que impediram a aprovação das Diretas Já em abril de 1984.

Começaram então seis meses frenéticos, inesquecíveis, indormidos, da montagem da grande estrutura política da Nova República, que implicava não apenas amealhar adesões, mas construir um modelo político que fosse realmente democrático, nem revanchista nem revolucionário, capaz de abrigar e reconhecer todas as ideologias.

Pedra sobre pedra, construímos a maioria no Colégio Eleitoral; pedra sobre pedra, agregamos os grupos mais rebeldes e ariscos, muitos vindos das guerrilhas e vinculados a organizações internacionais; pedra sobre pedra, montamos as regras que permitiram aos militares voltarem-se às suas tarefas de defesa e segurança nacionais, esquecendo-se definitivamente de que haviam atravessado o Rubicão.

Digo nós, porque Tancredo – que, ao se tornar candidato à Presidência tornou-se o fiador do projeto e seu negociador final – fez questão de partilhar com todos os grupos que lhe davam suporte as intenções e significados dos acordos e as composições que fazia.

A arquitetura da Nova República seguiu linhas de profunda sabedoria. Regra no 1. Não excluiu ninguém.

Nunca, neste País, um movimento político assumiu tão claramente tal abrangência e de forma tão leal e sincera. Tancredo ouviu a todos e deu- lhes garantia. Nunca, neste País – e desconfio que em poucas consertações políticas no mundo – houve tanta tolerância sincera, tanta confiança na democracia, tanta disponibilidade, tanta honestidade de propósitos, tanta coragem para discordar e compor, como naqueles dias que antecederam a eleição de Tancredo para Presidente da República.

O mesmo clima permaneceu até a data da posse que não houve e em que foi substituído dignamente pelo Vice-Presidente José Sarney, que honrou o espírito e os compromissos da Nova República com inteligência, paciência e obstinação.

A data que hoje celebramos, 20 anos depois, é o marco zero do vigente regime democrático brasileiro. Democracia é civilidade. Democracia não é opção, é destino dos povos que evoluem.

Cremos na cordialidade, na liberdade, na força da Justiça, na representação popular, no voto livre, na teoria econômica, no avanço da ciência, na força renovadora e criativa das artes e não sei em que outro regime político, a não ser na democracia, assim como ela está estabelecida no Brasil, tais valores humanos tenham mais e melhores condições de otimizar-se.

Sei que nos ameaçam inimigos terríveis: a corrupção, o carreirismo, o messianismo populista, o terrorismo internacional, a violência urbana, a demagogia, a incompetência e a inapetência administrativa. Para combatê- los contamos com antídotos e remédios da lei, como a alternância do poder, a capacidade de resistência popular e medidas extremas como oimpeachment.

O PFL foi formado em 1985 pelas mesmas pessoas que, naqueles seis meses decisivos de 1984, foram parceiros da grande aventura de Tancredo Neves. Pois bem, é com a emoção de quem recorda, mas com a disposição de quem combate que evoco o espírito de 1985 como inspiração para o processo de refundação que ora desenvolvemos em nosso Partido.

Que a democracia, a liberdade, o avanço civilizatório, o espírito e a visão profética dos companheiros protagonistas de 1984 e 1985 não abandonem jamais este País.

Amém.

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