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Lago Burnett: sobre “Norte das Águas”

Lago Burnett: sobre “Norte das Águas”

Lago Burnett•

Da Academia Maranhense de Letras. Prefácio. Rio de Janeiro, 21 de janeiro de 1985.

 

Um Político no Reino da Fábula

As inevitáveis comparações entre o escritor e o político que coabitam numa personalidade complexa como a de José Sarney convergem sistematicamente para um julgamento apoiado em padrões convencionais de competitividade: a consagração de um e a condenação do outro.

Essa relutância em aceitar que político e escritor se completam, vem postergando uma definição em torno da obra que José Sarney realiza simultaneamente na vida pública como no âmbito literário.

Aos que ainda cultivam a superstição de que a literatura enfraquece a atividade política, ele responde com as conquistas sucessivas de uma escalada segura no rumo das mais altas posições na República.

Aos que se apegam ao lugar-comum de que o exercício da política sufoca a criatividade artística — fugindo assim à evidência de reconhecer-lhe os méritos do escritor —, ele refuta com a própria produção literária, que é, no seu caso específico, a soma da índole e da vivência políticas.

Porque a verdade é que José Sarney é um escritor político, da mesma forma que é um político escritor. Político no amplo sentido em que o atinge a abrangência aristotélica. Político sob a angulação microcósmica do regionalismo, como gênero por ele escolhido para postular através da documentação.

Se a política lhe ensombrece a vocação literária, há de convir-se que é da política que ele extrai a matéria-prima de sua literatura, em que se fundem harmoniosamente o documental e o reivindicatório.

As três histórias que compõem este volume confirmam esta assertiva. Dentre estas histórias, a mais significativa é a que melhor ilustra nossa observação, o Brejal dos Guajas, peça importante do livro básico de Sarney — o Norte das Águas, já com duas edições brasileiras e uma portuguesa. Nessa novela, o autor se enquadra de maneira exemplar na conceituação de Arnold Bennett, quando sentencia que a arte da ficção “não é a de transformar em interessante uma história sem interesse, valendo-se de habilidade literária e de lances teatrais, mas a arte de contar uma história intrinsecamente interessante”.

No exíguo espaço de uma localidade aparentemente insignificante, cujo ambiente é sufocado pela atmosfera de rivalidade entre dois chefes políticos, pertencentes à mesma legenda partidária, porque ali não existe nem a hipótese de uma corrente de oposição ao governo, José Sarney consegue movimentar, com rara agilidade, as figuras que vão garantir o interesse do leitor durante toda a narrativa.

Despojado de artifícios do pitoresco e sem fazer concessões às tipicidades e cacoetes do regionalismo acadêmico, Sarney comprova aí a sua habilidade política, ao conseguir movimentar-se, sem com eles comprometer-se, entre gêneros literários afins, como a crônica, a farsa teatral, a simples anedota. Ele se compõe a contar uma história e não se afasta desse intento. Conta — com princípio, meio e fim, rigorosamente dentro do modelo preconizado por Aristóteles.

Só que a sua visão do mundo leva-o a transcender a faixa demarcatória do modelo. No plano em que ele nivela pessoas e bichos, a novela adquire dimensões de fábula, na linha da melhor tradição de Esopo e Fedro. Os “coronéis” do Brejal dos Guajas cultivam as suas ojerizas e idiossincrasias recíprocas, sem contudo atingir-se pessoalmente.

A tortura da jumenta Né Guiné, de propriedades do “coronel” Javali, e o sacrifício do cachorro Madi, do “coronel” Né Guiné, equivale à sábia conclusão moral do gênero. No caso, a velha lição de que, na luta entre os poderosos, quem perde sempre são os humildes. Algo assim como a fábula dos touros que se batiam com fúria, sob aplausos de rãzinhas ingênuas, a tempo porém advertidas de que, qualquer que fosse o resultado daquela pugna, os prejuízos seriam sentidos por toda a saparia, porque fatalmente o perdedor iria procurar refúgio no brejo e raro seria o dia em que um dos seus habitantes não amanhecesse espocado sob as patas do ruminante.

O clima político, porém, não funciona apenas como background da fábula — ele é a própria fábula, que se reproduz em outras pequenas fábulas dentro de um contexto generalizante. É assim, por exemplo, quando o poderoso chefão do partido situacionista, o Senador Clemente Guerra, decide faturar a rivalidade de seus correligionários afim de eleger um filho com os votos de ambos. Para medir o prestígio de cada um deles, depois das eleições, o senador dá-se ao requinte de enviar chapas diferentes para os dois: grandes, com legenda do partido, para o “coronel” Javali; menores, sem legenda, para o “coronel” Né Guiné. Não será isto também uma fábula?

Mas a sabedoria política é captada por José Sarney em máximas de aparência inofensiva: “Onde não tem chifre a gente põe.” Ou em sentenças já absorvidas como jurisprudência pacífica: “Política no interior se faz é com música e foguetes”; “Ninguém pode ser chefe de partido sem ter duzentos afilhados e dez rifles bons e um ou dois mosquetões.”

Os adágios garantem o espírito de fábula à prosa de Sarney: “Quem não puder com pote não pegue na rodilha”; “A lei é dura para quem é mole”. E até o depreciativo com senso local, traduzido neste dito: “Vale tanto quanto certidão do Brejal”.

O senso de humor, presente em toda a estrutura do episódio, às vezes se reveste de uma mordacidade cruel. É o caso, por exemplo, do conceito que cada “coronel” rival tem do outro:

De Né Guiné sobre Javali: “— Aquilo é como semente de linhaça: escorrega que não há dedo que segure…”

De Javali sobre Né Guiné: “— Aquilo é como estopa: não tem avesso nem direito.”

Há um certo humor literário, elaborado, como na expressão “sorriso de malária”. Ou nesta comparação, ao gosto de um Emílio de Meneses: “Zebedeu tinha uma cara de edital ou de reconhecimento de firma.”

Humor puro, entretanto, colhido in natura, está contido nesta definição do Brejal pelo pároco João: “Nossa corruptela é pequena, mas civilizada”. Ou nesta “pérola” literária, que é a saudação feita pela professora Esmeraldina, da Escola Municipal, ao Jipe cor de jerimum, importado pelo “coronel” Javali:

— E tu, melhoramento do Brejal, graças ao “coronel” Francilino, nós tivemos. Gigante de homem, que anda sem braços e pernas, na força dos motores.

A fabulação atinge, porém, o seu clímax, como nos melhores do gênero, um desfecho da história, quando Sarney, desapontando talvez os adeptos do apoteótico, reage politicamente diante da situação exposta com esta crítica contundente de um militante engajado:

Javali Guiné continuariam suas brigas noutras oportunidades, comprando babaçu e arroz pelo preço combinado, e o povo do Brejal feliz: oitenta por cento de tracoma, sessenta de bomba, cem por cento de verminose, oitenta e sete de analfabetos, mas feliz, ouvindo a valsa do Brejal, Brejal dos Guajajaras.

Nas outras narrativas que integram este livro — o camarista Bertoldo e o Cavalo Graúna, o regionalista José Sarney mantém-se na posição de fabulista, fiando e cardando com os elementos da sua contextura novelística.

Em O Camarista Bertoldo (camarista, derivado de Câmara, é um eufemismo que o autor adota para definir os caprichos de seu personagem), Sarney comporta-se com a argúcia de um comentarista político — o que lhe assenta muito bem — dando estocadas nos poderosos:

No município de Cururuca, parte deste grande Maranhão, a democracia funcionava muito ajeitada e branda: o direito de ser contrário era respeitado e garantido. A oposição tinha tradição e gozava de muitas e boas franquias, menos uma, é bem verdade, a de pleitear algum dia ser governo.

A tentação do anedótico acompanha-o até o fim do conto, da mesma forma que o camarista — interpretando o sentimento de uma comunidade que não o elegeu, porque ele se antecipou ao direito de opção, empenhando a urna — iria perseguir o jejum Pichilau, usado como cobaia nos experimentos afrodisíacos do boticário Chiquinho.

Bertoldo é o protótipo do anti-herói, cuja vida, no entanto, é marcada por significativos heroísmos: a libertação do jugo do padrinho; a incrível proeza de ludibriar a cabroeira da casa-grande, incumbida de torná-lo “quartau” (expressão que Domingos Vieira Filho registra, em A Linguagem Popular do Maranhão, com o sentido de “invertido sexual”, quando Sarney indica tratar-se de “castrado”); e a surpreendente ascensão ao cargo de camarista, que lhe assegura lugar na história como autor da lei que proibiu a criação de jumentos em Cururuca.

Em O Cavalo Graúna, José Sarney preocupa-se mais com a forma do que com o recado. Aqui o poder de transfiguração do fabulista submete-se ao seu teste mais difícil, ao transformar um matungo de São Raimundo dos Mulundus num Pégaso cuja ascensão milagrosa, na hora oportuna, faria inveja ao jumento Pichilau. Mas isso é outra história. E Sarney não mistura seus propósitos.

Com Graúna, que desperta paixão da adolescente Laurélia, ele quis construir um poema, o que é perceptível no tom e no ritmo da narrativa, toda ela marcada, no início dos períodos, pela conjunção aditiva e pela escolha de um vocabulário que, sem influências do invencionismo rosiano — como acontece, excepcionalmente, com a palavra “mulherenguice”, em Brejal dos Guajas —, prima por manter um nível de dignidade poética sem prejuízo das características peculiares à região onde se processa a ação. O que não deixa de ser, além de cavalheiresco, um gesto político de José Sarney.

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