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180 Anos de Parlamento

180 Anos de Parlamento

Congresso Nacional, Brasília, DF, 13 de novembro de 2003

Senhores Senadores, Senhores Deputados Federais, Senhores Deputados Estaduais, Senhores Vereadores, que minhas primeiras palavras sejam de gratidão. Gratidão, em primeiro lugar, aos membros da comissão organizadora dos festejos e da comemoração destes 180 anos do Parlamento brasileiro, que, durante todo este ano, promoveu eventos, publicações e procurou despertar a consciência nacional para importância desta data: Deputado Chico Alencar, Senador Romeu Tuma, Deputado Bonifácio de Andrada e o Senador Sérgio Zambiazi. (Palmas.)

Quero agradecer também a correspondência de sentimento na presença e na mobilização de Deputados Estaduais, Assembleias,Vereadores, Câmaras Municipais, que atenderam ao nosso chamamento e se juntaram a nós neste ano, e que aqui estão presentes na sessão em homenagem à data que, para todos nós, é extremamente simbólica na história do Brasil.

Esta sessão é uma sessão de memória, de invocação e de símbolo.

Ainda ontem, na comemoração do centenário do Tratado de Petrópolis, que pos- sibilitou a incorporação do Acre ao Brasil, tive a oportunidade de ressaltar que o País que não pensa e não cultua o seu passado fica vulnerável para enfrentar os problemas do presente e perde a perspectiva do futuro. Portanto, o que fazemos neste momento, por meio da leitura do passado, é uma avaliação do presente e firmamos uma crença extra- ordinária no futuro.

Os políticos que começaram a fazer o Brasil eram homens que não sabiam o que era um parlamento, nunca tinham vivido essa experiência, a não ser dois ou três, como Antônio Carlos. Como se reunia um parlamento? De que maneira operava? Não exis- tiam conduções. Eles vinham a cavalo ou a pé. Estes homens se reúnem e começam a construir as instituições políticas deste País através do Parlamento nacional. Somos os herdeiros dessa tradição, dessa visão que ficou até hoje e que temos de legar para o futuro.Aqui tivemos esses grandes e extraordinários políticos que construíram o Brasil. Hoje continuamos essa obra política e vamos transferi-la àqueles que nos sucederem na eternidade do nosso País.

O Deputado Chico Alencar disse que estamos chegando perto do coração do povo. O Deputado Bonifácio José, representante dos Andradas, família que desde 1823 está no Parlamento, dizia que quase estamos chegando ao coração do povo. Digo que nós somos o coração do povo. (Palmas.) Não somos mais do que a expressão do mandato e da confiança daqueles que nos elegeram.

A ideia do Parlamento, da representatividade, é, sem dúvida, o coração da democra- cia. Desde a primeira vez em que se falou em democracia, desde o discurso de Péricles aos mortos da Guerra do Peloponeso, até hoje, podem dizer tudo do Parlamento, mas não se descobriu instituição melhor para se exercer o processo democrático. Churchill dizia que a democracia é muito ruim, mas não temos nada melhor.

A construção do Brasil começou, portanto, antes mesmo da Independência, com a convocação de uma Constituinte, com a noção de que o País teria que nascer dentro do Parlamento, como a instituição maior, do governo do povo, para o povo e pelo povo.

Era o grande momento de duas ideias fundamentais da humanidade, o constitucio- nalismo e o parlamento. Ambas tinham suas histórias mergulhadas na Antiguidade, mas haviam passado pela restauração que nascera nos grito fortes de liberdade e de igualdade explodidos na revolução americana e a que se incorporara o desejo cristão de fraternidade no sonho da revolução francesa.

No Brasil, àquele tempo, fazíamos e sonhávamos com uma das primeiras constituições do mundo; fazíamos um país baseado na lei. Naquele momento só haviam a Constituição americana, esta construção que consegue o milagre de se manter de pé até hoje, por sua simplicidade, e a Constituição francesa, a terceira tentativa da pátria das ideias democráticas modernas. Os espanhóis haviam feito e desfeito a famosa Constituição de Cádiz, que tanto nos influenciou. Espanha, Portugal, vários países, como nós, tentavam, na terceira década do século dezenove, construir esse quadro dos direitos anunciados.

Começáramos abrindo o Parlamento, a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, convocada pelo Príncipe Regente — que ainda não era Imperador — atendendo proposta do Conselho de Procuradores Gerais das Províncias do Brasil. Parlamento tem a mesma origem que palavra, e carrega consigo a ideia do diálogo; traduz a conquista do direito de falar, de dar sua opinião: e o nosso refletia naquela casa de opinião e diálogo a ideia do Estado moderno, que é soberano por ser o resultado de um pacto social, por pressupor o equilíbrio entre o poder do cidadão e o poder da sociedade.

Esta a visão que fora condensada por Montesquieu: um sistema em que o cidadão abdica de parte de seus direitos individuais para assegurar os direitos de todos, um sistema dividido em poderes delegados que asseguram o equilíbrio entre direitos e deveres, entre forças encarregadas de conceber, executar e julgar em estreita harmonia.

O País não existia. Só existiam a ideia do Brasil, o Imperador e a coroa. Mas ao poder que sucedia os três séculos de monarquia absoluta, já dizia José Bonifácio: “Aqui neste recinto só entrará o Imperador. Ninguém mais pode entrar, nem os ministros, nem ninguém.” O Imperador, quando foi à instalação da Assembleia Constituinte, entrou sem a coroa no Parlamento.

Cochrane, almirante contratado para defender a Independência, julgava esse gesto como uma desmoralização, porque jamais ele, como inglês, poderia conceber que a coroa do rei fosse tirada ao entrar no Parlamento. Nós fazíamos isso aqui no Brasil no ano de 1823.

Estes deputados traziam a alma impregnada das mais generosas ideias.Algumas eram universais, e com elas discutia-se a liberdade de imprensa quando não existia a imprensa, discutiam-se os predicamentos da magistratura quando não tínhamos magistratura, deliberava-se que ninguém poderia ser preso senão em flagrante delito quando o canhão estava à porta. Liberdades: pessoal, religiosa, de indústria, de imprensa; juízo por jurados, igualdade perante a lei, igualdade no acesso aos cargos públicos, inviolabilidade da propriedade, direito e dever de resistência à opressão… em tudo um panorama das ideias constitucio- nalistas. O Imperador seria a encarnação do Poder Executivo, mas seus ministros seriam responsáveis perante a lei, não os desculpando ordem do Imperador, verbal ou escrita, e o Imperador não poderia decretar sem o referendo dos ministros. O Legislativo não poderia ser dissolvido, e os vetos às leis teriam somente efeito suspensivo. O Poder Judiciário seria vitalício e inamovível, vedados os tribunais de exceção.

Mas muitas ideias eram nossas, e com uma delas construímos um país diferente: a ideia da unidade nacional, de que éramos, e somos, um só País, irmanado num desejo de frater- nidade e de superação das diferenças. No continente de Bolívar, fizemos uma construção civil, em contraste à construção feita em batalhas que dividiu nossos vizinhos. Dentro da Constituinte, nascia a ideia de começar a lutar por este Brasil extraordinário, grandioso e continental.

Nossos colegas parlamentares daqueles dias em que se fundou o Brasil eram, como disse e insisto, generosos. Como disse o Deputado Chico Alencar, a primeira ideia discutida foi a da conciliação, o projeto de anistia. Muitos a reclamavam. Foi uma tradição brasileira a anistia que se repetiu ao longo do tempo, porque essa ideia estava no coração daqueles que instituíram o Parlamento brasileiro. Ainda ontem, no Senado, votávamos o projeto da anistia aos que fizeram greve em 1996.Votamos o projeto de anistia a todos os que se revoltaram em determinado tempo e foram punidos.A anistia é uma ideia-chave da alma brasileira, construída dentro do Parlamento, do diálogo, da compreensão da diversidade, é um patrimônio nosso. Fomos nós que a criamos e que a estamos mantendo. Certamente, levaremos ao futuro o legado da conciliação.

Nas memórias, nos anteprojetos de lei preparados para apresentação à Constituinte, a ideia do bem comum é o problema dominante. Ideia que, em suas várias faces, permaneceu e permanecerá no imaginário brasileiro. Para voltar a citar o Andrada, só duas delas foram superadas pelo tempo, a mudança da capital, que concluímos, e a fixação de nossas fronteiras, que Rio Branco concluiu há cem anos; mas as outras, a defesa do meio ambiente, a reforma agrária, a implantação da educação pública, a instituição de várias universidades no Brasil — e propunha uma em São Paulo, outra no Rio de Janeiro, outra no Norte e até em São Luís do Maranhão — o direito dos negros e índios, foram centro de atenção em todos os momentos de nossa vida parlamentar. Foram, e continuam a ser, pois todo Estado é um edifício em construção, em que os problemas se renovam e reapresentam com as transformações da sociedade de que ele é o agente.

Assim, na passagem desta data, verificamos que o Brasil foi feito dentro do Parlamento e que as instituições democráticas, as instituições políticas, a construção nacional não foram feitas em batalhas fora do Parlamento, mas dentro do Parlamento, no passado, no presente e no futuro. (Palmas.)

Aqui no Parlamento o Brasil foi criado, a Federação foi formada, pelo trabalho dos políticos brasileiros.Temos que enfrentar as críticas, mas, herdeiros dessa tradição, devemos estar orgulhosos do que a classe política fez pelo Brasil. No Parlamento, encontraremos todas as soluções dos nossos problemas, pois aqui é o lugar em que o povo pode questionar tudo, inclusive o próprio Parlamento.

O Congresso Nacional é a instituição do povo. Com a simples força das palavras e das ideias, a Nação existe, vive e é representada. Quando o Parlamento se fecha, baixa o silêncio sobre todos os direitos, porque o povo não tem aquela expressão da casa à qual recorre a fim de reivindicar seus direitos e formar sua consciência.

Evidentemente, de todos os Poderes, este é o mais criticado, conforme se observa nas pesquisas. Isso ocorre porque as decisões do Parlamento são tomadas à luz do dia, e os outros Poderes decidem de outra maneira. No processo de decisão, há influência de todos, dos que se sentem prejudicados e dos que se sentem confortados. Sem dúvida, ele leva a resistências, a incompreensões, mas isso faz parte da democracia. É o preço que pagamos pela existência do Poder Legislativo.

Devo dizer que esses números que aparecem hoje são o dobro dos que apareciam no princípio do ano passado, porque cada vez mais o povo compreende as nossas dificuldades, mas é no Parlamento, quando todas as dificuldades estão presentes, que todos vêm em busca de solução.

O Congresso Nacional é uma Casa acima do tempo. Nossa história é a dos homens que defenderam o povo brasileiro. O Presidente João Paulo Cunha teve oportunidade de dizer que a História do Brasil inclui o Parlamento.

Quero terminar estas minhas palavras olhando para o passado e percebendo que somos herdeiros da tradição do passado. Para que não morra a memória dos homens que construíram o Parlamento do passado — não vou falar dos vivos, grandes e extraordinárias figuras da política brasileira, que mantêm a continuidade —, quero chamar, com os olhos no tempo, como se eles estivessem aqui presentes, aqueles que fundaram o Parlamento e levaram este País ao longo do tempo de sua história.

  • Em primeiro lugar, quero chamar José Bonifácio de Andrada e Silva;
  • quero chamar Antônio Carlos, o grande orador da Constituinte;
  • quero chamar Vasconcelos de Drummond, onde ele se encontre;
  • quero chamar Holanda Cavalcanti,Visconde de Albuquerque;
  • quero chamar Carneiro da Gama;
  • quero chamar Diogo Feijó;
  • quero chamar Bernardo Pereira de Vasconcelos, que, paralítico, entrava noParlamento empurrado por um palanquim e pedia licença para falar sentado;
  • quero chamar Acaiaba de Montezuma, o Visconde de Jequitinhonha;
  • quero chamar Pedro de Araújo Lima, Marquês de Olinda;
  • quero chamar Miguel Calmon, Marquês de Abrantes, que, durante 12 anos presidiu o Senado;
  • quero chamar o Visconde de Cairu, com as ideias que discutia na Constituinte a respeito da economia brasileira;
  • quero chamar Aureliano Coutinho;
  • querochamarTeófiloOttoni;
  • quero chamar Zacarias de Góis eVasconcelos;
  • quero chamar Eusébio de Queirós
  • quero chamar Nicolau Vergueiro;
  • quero chamar Evaristo daVeiga;
  • quero chamar Paulino de Souza,Visconde do Uruguai;
  • quero chamar o Senador Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias;
  • quero chamar o Deputado Antônio Pereira Rebouças;
  • quero chamar o Senador Sales Torres Homem,Visconde de Inhomirim;
  • quero chamar o Deputado Maciel Monteiro, Barão de Itamaracá;
  • quero chamar Honório Hermeto Carneiro Leão, Marquês do Paraná, o homem da conciliação;
  • quero chamar Nabuco de Araújo;
  • quero chamar seu filho, Joaquim Nabuco, pois até hoje todos nos valemos deles, citando suas palavras e a sua passagem;
  • quero chamar Saraiva, que se envolvia nas questões da Província Cisplatina;
  • quero chamar José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco, que, além de todas as virtudes, teve a de legar o seu filho, o Barão do Rio Branco, que pensou na unidade do País e de nossas fronteiras;
  • quero chamar a Princesa Isabel, que foi a primeira Senadora, porque nossa Constituição assegurava que os príncipes herdeiros eram senadores vitalícios;
  • quero chamar o escritor José de Alencar, que também passou por aqui como Senador;
  • quero chamar Afonso Celso,Visconde de Ouro Preto;
  • quero chamar Gaspar de Silveira Martins, que fala ao coração dos gaúchos, extra- ordinário orador, dos maiores que existiram no Parlamentar;
  • quero chamar Rodrigues Alves, que também aqui esteve;
  • quero chamar o grande Rui Barbosa, pequenino na sua figura, andando nos nos- sos corredores, assomando às tribunas, mas tornando-se gigantesco por suas ideias e suas palavras;
  • chamo por Prudente de Morais, o Senador;
  • chamo por Campos Salles, o Senador;
  • chamo por Pinheiro Machado, o Senador;
  • chamo por Epitácio Pessoa;
  • chamo por Artur Bernardes;
  • chamo por Nilo Peçanha;
  • chamo pelo escritor Jorge Amado, também Deputado na Constituinte;
  • chamo por José Américo de Almeida;
  • chamo por Luís Carlos Prestes, Senador;
  • chamo por Adauto Lúcio Cardoso, Presidente desta Casa que brilhantemente resistiu ao seu fechamento com um gesto de bravura;
  • chamo por Afonso Arinos de Melo Franco;
  • chamo por Raul Pila;
  • chamo por Alberto Pasqualini;
  • chamo por Aliomar Baleeiro;
  • chamo por André Franco Montoro;
  • chamo por Carlos Lacerda;
  • chamo por Daniel Krieger;
  • chamo por Gustavo Capanema;
  • chamo por João Amazonas;
  • chamo por João Mangabeira;
  • chamo por Luís Viana Filho;
  • chamo por Maria do Céu Fernandes, primeira mulher de expressão nesta Casa;
  • chamo por Milton Campos;
  • chamo por Nelson Carneiro;
  • chamo por Pedro Aleixo;
  • chamoporTalesRamalho;
  • chamo e aclamo Ulisses Guimarães, que tantas vezes sentou nesta Casa. (Palmas.)E termino esse chamamento com aquele herói que ainda hoje nos faz de olhos molhados: o grande Parlamentar, o grande brasileiro e o grande político Tancredo de Almeida Neves. (Palmas.)Vendo todos eles aqui presentes, encerro minhas palavras lembrando, citando e evo- cando um nome fundamental da História do Brasil:Tiradentes.Nos Autos da Devassa, uma das provas contra Tiradentes veio do depoimento de uma pessoa que disse estar ele conspirando. A pessoa falou que encontrou Tiradentes e disse- -lhe: “Aqui estou para trabalhar para ti”, a fim de mostrar que ele conspirava. Tiradentes respondeu:“E eu, a trabalhar para todos.”

    Lembremos, nós, políticos, reunidos aqui, a consciência moral de nossos deveres para com a Nação, o passado e o futuro: trabalhar para todos, eis o dever de todo político. (Palmas.)

José Sarney foi Presidente do Brasil, Presidente do Senado Federal, Governador do Maranhão, Senador pelo Maranhão e pelo Amapá e Deputado Federal. É o político mais longevo da História do Brasil, com mais de 60 anos de mandatos. É autor de 122 livros com 172 edições, decano da Academia Brasileira de Letras e membro de várias outras academias.

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