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Homenagem a Glauber Rocha

Homenagem a Glauber Rocha

Senado Federal, Brasília, DF, 2 de setembro de 1981

O Brasil recebeu, entre atônito e revoltado, a trágica notícia da morte de Glauber Rocha.

Na história da inteligência brasileira Glauber Rocha foi, sem dúvida, um dos ins- tantes maiores. Romancista, poeta, jornalista, cineasta, marcou de genialidade todas essas atividades do espírito. Ele resumiu sua presença nesses campos como sendo apenas um “intelectual”, e acrescentava, com a marca polêmica de sua visão do mundo:

“Não me cobrem coerência.”

Glauber Rocha consumiu a sua vida pela presença constante da paixão.

Aqui, nesta Casa, ouvi que quando San Thiago Dantas falava tinha-se a impressão de que ele era uma máquina de pensar. De tal modo as coisas se arrumavam, num encadeamento lógico, que se tinha a impressão de que ali era a morada exclusiva de um conjunto de nacionalidades servidas por uma cultura e uma inteligência extraordinárias. Sempre que eu via Gláuber Rocha, me lembrava dessa definição que muitas vezes nesta Casa ouvíamos sobre San Thiago Dantas. Só que com o grande cineasta era inteiramente o contrário.Tinha-se a impressão de um permanente vulcão intelectual, numa atividade ininterrupta de negações e afirmações, em que a nacionalidade surgia em pequenos instantes, em lampejos desnecessários, porque tudo dentro dele era uma busca incessan- te pela causa das causas, numa indagação permanente e numa angústia intelectual que marcaram sua vida.

Este homem morre com 42 anos, o que é realmente um fato capaz de provocar dentro de cada um de nós a indagação de um sentimento de incompreensão, chegando às raias, até, de uma réstia de revolta.

Glauber Rocha era, sem dúvida, um homem indomável. Nada conseguiu dominá-lo, nenhum Deus conseguiu aprisionar o seu espírito; nenhuma ideologia também conseguiu prendê-lo, nenhum homem, nenhum carisma, nenhuma mulher conseguiu escravizá-lo, nada, porque, dentro dele, havia um desejo de liberdade, dessa liberdade feita da vastidão de todos os gestos, sem peias, sem limites, sem conveniências.

Um homem extraordinário, que usava sua liberdade até ao limbo de uma santa demência.

Dentro disso tudo, o testemunho que posso dar é que poucas pessoas amaram tanto este País, sentiram tanto esta Pátria quanto Glauber. Havia, no que falava e pensava, uma paixão por esta terra, capaz de superar todos os ressentimentos. Paixão límpida, paixão pura, paixão desvencilhada de tudo, porque era uma dádiva absoluta e, sem dúvida, a angústia maior de toda a sua vida.

Ele venceu a tudo. Duelou com as patrulhas ideológicas, deixando-as ao largo. Enfrentou os fanatismos, cuspiu na mediocridade e enfrentou a incompreensão de to- dos. Para dizer de sua morte, invoco uma frase do jornalista Oliveira Bastos:

“Glauber Rocha foi assassinado pela intolerância da direita e da esquerda.”

Ele vivia, sem dúvida, aquele sofrimento absoluto de que nos fala Hegel, quando achava que o homem ao começar a matar tudo, ao buscar a causa de todas as causas, antes de chegar ao niilismo, chega primeiro à sua próxima dúvida, um caminho sem remédio, perto da angústia eterna. É esse sentimento absoluto da angústia essencial que possuía, como um feiticeiro, a alma deste grande homem que foi Glauber Rocha.

Montaigne dizia que não tinha medo da morte, mas tinha medo de morrer.

Glauber sempre falava que tinha medo da morte, mas acho que mais do que ele ter medo da morte, tínhamos nós, brasileiros, medo de que ele morresse, coisa, sem dúvida, que jamais acontecerá, porque, como disse, na história da inteligência brasileira, ele será um ponto imortal.

Junto a estas palavras, com as quais presto a homenagem do Senado ao grande ci- neasta, dois outros dados. O primeiro, de uma comoção pessoal. Há quase 20 anos, sou seu amigo. Conheci, de perto, aquela chama extraordinária, aquele fogo intelectual que aquecia as pessoas com quem privava ou com quem conversava. Em tudo o que pegava, Glauber Rocha dava um toque de genialidade.

Vou citar um exemplo simples.Tomava posse no Governo do Maranhão, e fiz uma ousadia que não se deve fazer com um amigo da estatura de Glauber Rocha:

“Glauber, você podia documentar a minha posse no Governo do Maranhão?”

Para um homem da sua dimensão, seria uma prova de humildade aceitar um con- vite insólito que um amigo não lhe devia ter feito. Mas ele foi, e fez o documentário. Esse documentário foi passado numa sala de cinema de arte há uns 15 anos. E quando o público viu que, numa sessão de cinema de arte, ia ser passado um documentário que podia ter o sentido de uma promoção publicitária, reagiu, como tinha que reagir. Mas aí, o documentário começou a ser passado e quando terminaram os 12 minutos de projeção, o público levantou-se e aplaudiu de pé, não o tema do documentário, mas como um grande artista pôde transformar um simples ato protocolar numa obra de arte. Por quê? Ele não filmou a minha posse, ele filmou a miséria do Maranhão, ele filmou a pobreza do Maranhão, filmou as esperanças que nasciam no Maranhão, dos casebres, dos hospitais, dos tipos de rua, e, no meio de tudo aquilo, ele colocou a minha voz, mas não colocou a minha voz a voz do Governador; ele modificou a ciclagem para que essa voz parecesse a voz de um fantasma profético, diante daquela coisa entre o impossível e o que era a miséria do Estado.

De Glauber Rocha não cabe mais o descobrimento do nascer, nem do morrer. Interessa a vida, essa paixão constante entre a angústia e a alegria. A alegria pura, que se nutre de lágrimas e de acalantos.A angústia eterna que não exaure nunca, amassada pela paixão, sete vezes morta, e sete vezes renascida, mil vezes acabada e milhões de instantes possuída.

Eu canto o Glauber poeta, que na síntese de tudo redescobria o mundo, na trans- cendência das cores, na luz, na voz de comando ao iluminador, nos atores, no argumento, na trilha sonora, em busca da unidade da imagem. É o universo fantástico criado pelo homem, oleiro desse barro do nada que, depois, num fundo branco, gera emoções, vida e morte; faz chorar e exige emoções e lágrimas.

O cinema para Glauber Rocha foi a sublimação do poeta.A poesia é a arte de Deus, porque antecede a criação. Foi ela quem fez o mundo, a noite e o dia, o homem, a bai- larina e o beija-flor. E como é feita de nada, de nada também é a poesia do cinema. Na tela é apenas o talento e a luz. O resto é obra da ciência e não da arte. Exige um ritmo para o corpo e um ritmo para o espírito. Gláuber Rocha deu ao cinema brasileiro o direito de figurar nos momentos mais altos da inteligência nacional. Foi ele quem lhe trouxe o toque da genialidade, a ambição do definitivo e a busca de um grande lugar. Foi pioneiro e profeta.

Mas, que espírito estranho, remoído entre a controvérsia e o fogo? Ninguém jamais o domaria. Era um vulcão de negações e afirmações, em que a racionalidade apareceria em madrugadas desnecessárias. A sua liberdade, a vastidão de todos os seus gestos, era uma permanente busca do infinito, sem amarras, sem compromissos, sem senhores, mas, paradoxalmente, delirante e escrava dos seus afetos.

Glauber Rocha cheirava a terra, tinha o odor desses brasis das baías e dos maranhões, onde ele inventou Das Mortes e o SargentoTeodoro, “Ajudante de Ordens do Governador José Sarney no Palácio Holandez de São Luís do Maranhão” “que sabia mais Geografia que Guimarães declinado no Gabinete das Fronteiras”, como disse Riverão. Seu amor ao Brasil, o delírio de suas preocupações sobre os caminhos, as veredas, o destino político da Nação aflorava em tudo que fazia. Poucos homens amaram tanto este País quanto Glauber Rocha. Paixão pura, límpida, sem cama, paixão de devoto que leva velas, faz penitência e chega aos desvãos do flagelo.

Quem o matou? Foi a vida, dilacerada, com gosto do sal e de orvalho. Mas, quem entra na eternidade sem provar o saibo dessas amarguras que só os artistas, santos e heróis acalentam? Para nós, o seu coração parado nos dá um princípio de revolta. Depois, o sentimento das coisas infinitas. Acontecer é um verbo que dilacera coragens e põe à prova o nosso sentimento trágico, que Unamuno chamou da imortalidade.

Nós, hoje, nesta homenagem do Senado da República, na sequência eterna do que esta Casa significa como símbolo da Federação e da República, afirmamos que Glauber Rocha não tem o direito de morrer. Jamais seu nome será associado ao silêncio dos túmulos, aos monumentos à morte, mas a um convite à vida.Vida que ele quis que sempre fosse uma busca constante sobre a causa de todas as causas, um monólogo sem interrupção sobre a dúvida, a engrenagem do pensamento triturando a lógica até chegar a esse sentimento do absoluto, do desespero eterno, da dilaceração, do suicídio, da santa demência, da normal anormalidade.

Platão, nos seus Diálogos, faz o Amigo perguntar a Apolodoro: “Não sei quem te deu o apelido de terno ou de doido?”

Glauber Rocha coloca o cinema brasileiro na posição de uma das manifestações mais altas de nossa cultura. O Cinema Novo é obra sua, criação sua. Nélson Pereira dos Santos bem define a personalidade polêmica de Glauber Rocha, quando relata:

“O Glauber fundou o cinema novo e uma vez escreveu um artigo para acabar com ocinema novo. Ele tem essa capacidade de fazer onda…”

“O cinema novo é o Glauber no Rio de Janeiro. Quando o Glauber aparece no Rio, fala-se, discute-se, combate-se, liquida-se o cinema novo.”

Mas, que grande geração aquela!

Glauber dá notícia da busca radical de todos, quando conta como conheceu Paulo Cézar Sarraceni:

“Foi no Alcazar que eu conheci o Paulo Cézar. Chegou à mesa onde eu conversava com o Carlos Perez, o Miguel Borges e o Cláudio Bueno Rocha. Cumprimentou a gente e todos ficaram frios. Ele perdeu a graça, foi saindo, e o Miguel disse assim: ‘Não fala com esse cara não, que ele gosta de Fellini. É um boçal.’”

O cinema brasileiro hoje é uma manifestação extraordinária da inteligência, da coragem, da resistência, da obstinação, do talento dos brasileiros. Ele aí está. Seu patrono está vivo e morto – Glauber Rocha. Sua vida foi uma afirmação constante dessa fideli- dade. Ele foi autor e ator, iluminador e roteirista, câmera, diretor, produtor e peregrino de apoios. A tudo enfrentou, a tudo não se rendeu.

Seu testamento deixa uma herança que está sendo honrada. Sua vida foi um mo- numento à angústia, angústia como busca cultural. Sua morte será uma lembrança cons- tante de doação, um monumento ao cinema brasileiro. Seus filmes têm o sofrimento, o tédio da miséria, a força do povo, as artes pastorais e os pecados do ódio, mas, acima de tudo, têm presente as raízes culturais de nossa gente, tornadas eternas nas cenas que criou e que rolam mundo, no fluxo das marés de gente que sentam e levantam, das luzes que se acendem e se apagam, nas salas de projeção do Brasil e do mundo inteiro e que continuarão enquanto o bicho homem souber dar vida às coisas mortas.

Falo com emoção. Nada mais se pode dizer de Glauber Rocha. Todos já falaram. Todos ainda falarão.As flores murcham no seu túmulo e começam a crescer nas árvores da imortalidade. Seu amigo há quase vinte anos, despojo-me de tudo, para ser apenas um cruzado na louvação de sua glória.

Glauber, que disse dele mesmo, numa confissão amarga:

“… dias e noites desde a morte da minha irmã Anecy considerado louco ressuscitado de várias guerras.”

E confirma:

“… eu não sou mártir, eu não curto ser crucificado, o meu Cristo é a ressurreição, não é a cruz.”

Qual será seu destino, agora?

Uma herança de luta para que se conscientize o País de que o Brasil somente será uma potência econômica se for uma potência cultural, um Brasil que coloque na mesa do planejador a cultura.A sociedade industrial cria valores materiais e despreza os valores espirituais. O homem sem uma aspiração maior, aquilo que Bergson chamou um senti- mento da alma, é apenas uma aspiração de engordar. Glauber mostrou que não desejava engordar. Não buscou descobrir os mistérios de curtir o corpo, mas de dilacerar a alma nos caminhos do mundo para que o espírito fosse devolvido à criação como uma força da natureza, mais forte e eterno do que a própria vida, para que se cumprisse o velho verso de Pedra Branca:

“— Basta, não mais, saudade.”Muito obrigado. (Muito Bem! Palmas.)

JS

José Sarney foi Presidente do Brasil, Presidente do Senado Federal, Governador do Maranhão, Senador pelo Maranhão e pelo Amapá e Deputado Federal. É o político mais longevo da História do Brasil, com mais de 60 anos de mandatos. É autor de 122 livros com 172 edições, decano da Academia Brasileira de Letras e membro de várias outras academias.

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