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Raúl Alfonsín

Raúl Alfonsín

Funerais do Presidente Raúl Alfonsín, Buenos Aires, Argentina, 1o de abril de 2009

Volto à Argentina, este país pelo qual tenho tanta admiração, carinho e apreço, de que tanto gosto, pela sua história, pela sua tradição e pelo seu povo. Desta vez, num momento triste, em que cumpro deveres de Estado, mas muito mais do que isto, os deveres da amizade.

Aqui estou como representante pessoal do Presidente Lula, chefiando a delegação do Brasil integrada também por Samuel Guimarães, Ministro interino das Relações Exteriores, e por Mauro Vieira, Embaixador do Brasil na Argentina, como emissário de um sentimento de grande admiração do povo brasileiro e com o coração ferido de um amigo que admirava o Presidente Raúl Alfonsín como um dos maiores homens públicos das Américas. Trago a homenagem, o reconhecimento e a coroa da amizade do Brasil.

A coragem e a visão de estadista que tinha Alfonsín abriram caminho para mudanças que marcaram profundamente não só a Argentina, mas a América Latina.

Nos anos 80, o ciclo dos regimes militares latino-americanos chegava ao fim. Em Buenos Aires, assumia Raúl Alfonsín, em 1983. Em 1985, com a morte de Tancredo Neves, o destino pôs a Presidência do Brasil em minhas mãos. Eu tinha a visão de que a competição entre Brasil e Argentina era um erro histórico.

Em Iguaçu, falei ao Presidente Alfonsín sobre a necessidade de juntos mudarmos a História do nosso Continente. E sem a presença na chefia do Estado argentino do Presidente Alfonsín seria impossível a transformação que hoje existe. Ele, com visão histórica e de estadista da América, comigo concordou e ali assinamos os acordos básicos que se desdobraram na construção política de hoje.

Mas devo ressaltar um fato histórico que, então, ocorreu. Estávamos a 3 km de Itaipu, que era o grande ponto de atrito entre o Brasil e a Argentina. O Presidente Alfonsín estava ali e, justamente, por reservas políticas, não podia visitar Itaipu, porque havia uma propaganda maciça vinda do período militar de que a usina era uma ameaça à Argentina.

Quando coloquei essa questão, o Presidente Alfonsín disse-me que ia visitar a usina. E dali saímos para uma visita à hidroelétrica, fora do programa.

No dia seguinte, os jornais da Argentina e do Brasil estampavam as fotos dos presidentes, no monumental sangradouro da usina. Numa sociedade visual, a força desse encontro constitui-se num grande impacto. As coisas estavam mudando.

Muitas críticas caíram sobre o Presidente Raul Alfonsín, vindas não somente de setores políticos, mas, também, de áreas militares. Mas sua coragem e capacidade de enfrentar os desafios era maior. Uma área era tabu nos dois países: o desenvolvimento nuclear. Em Iguaçu, também, assinamos os primeiros acordos de cooperação neste setor, quebrando a armadilha de uma possível corrida entre nossos países para construção de artefatos atômicos.

Na engenharia política de acabar com nossas desconfianças, demos, também, um passo definitivo.

O Presidente Alfonsín convidou-me a visitar as usinas de Picaneyeu, perto de Bariloche. Ali nunca tinha estado um presidente da Argentina. Ele decidiu visitá-la em companhia do Presidente do Brasil. Não só nós dois, mas todos os nossos técnicos na área nuclear. Nada mais era preciso esconder. Nossos países, com transparência, frustravam qualquer aspiração de utilizar a energia nuclear para outros fins que não os pacíficos.

Por outro lado, convidei o Presidente da Argentina para inaugurar a Usina de Aramar, operada pela Marinha de Guerra do Brasil, planta até então secreta e onde os técnicos da Marinha tinham conseguido enriquecer o urânio.

Ali está, até hoje, como testemunha para a História, uma placa de bronze que diz: “Esta usina foi inaugurada pelo Presidente da Argentina, Raúl Alfonsín.”

Muitas vezes eu disse ao Alfonsín e muitas vezes ele ouviu isto de mim, no mundo inteiro: graças à sua decisão de mudar as relações com o Brasil — o que não foi fácil —, foi possível mudar a história do Continente. Muitas das rebeliões que ele enfrentou tinham na sua gestação a motivação de suas decisões sobre a integração continental.

Mas foi a força da amizade e o espírito público o que nos uniu, sempre, ao longo desse tempo. Estivemos juntos desde o início em vários lugares do Mundo, em várias cidades, participando de conferências, seminários, conselhos e defendendo os mesmos ideais de justiça social, defesa dos direitos humanos, construção da democracia. Os problemas que nós vivemos nos fizeram solidários. Mas foi amizade sim, amizade que foi construída no trabalho comum, na admiração que tinha por sua extraordinária cultura, capacidade de liderança, simplicidade. Homem de um convívio ameno que nos tornava cativo, o tempo consolidou essa amizade num sentimento definitivo, que não desaparece hoje e aqui, mas seguirá comigo, recordando sempre o orgulho que tenho de haver desfrutado de sua estima.

No dia em que a relíquia do seu corpo é devolvida ao chão de sua pátria, estamos cientes de que sepultaremos um patrimônio não só da Argentina mas também de nossos países irmãos. Raúl Alfonsín cumpriu o testemunho de uma vida exemplar e entra, agora, para a eternidade da história como o patriota, o apóstolo da democracia, com a honradez da sua trajetória sem mácula, sua intransigência com a quebra de seus princípios e valores morais.

Deixa o legado de haver erguido sua voz de fogo e paixão, como o advogado da liberdade, então aprisionada no sofrimento das celas onde, dilacerados, morriam os perseguidos.

Foi o homem que ajudou a mudar — e, com Sanguinetti, fui parceiro deste sonho — a história do continente, com a esperança da integração, ideia generosa e irreversível que está passando momentos difíceis, mas um dia será realidade. Neste dia, Raúl Alfonsín estará presente como estátua eterna desse futuro.

Alfonsín combateu como paladino fanático dessa causa, para derrubar todas as ditaduras da América do Sul, lutando pela liberdade. Exemplo de cidadão probo, idealista, lutador intimorato, pai da nova democracia argentina, orgulho do seu povo.

Morre cercado do respeito, do carinho e do amor dos seus compatriotas.

Em nome do Brasil, do seu governo e no meu próprio, venho trazer ao governo e ao povo argentino e à família de Alfonsín o nosso pesar e a nossa solidariedade. Ele é hoje estátua, pedra da história argentina e das Américas, de onde jamais sairá.

Fica aqui o amigo e companheiro de tantas lutas. Lutas que fizemos sem armas, mas com coragem e muito trabalho.

José Sarney foi Presidente do Brasil, Presidente do Senado Federal, Governador do Maranhão, Senador pelo Maranhão e pelo Amapá e Deputado Federal. É o político mais longevo da História do Brasil, com mais de 60 anos de mandatos. É autor de 122 livros com 172 edições, decano da Academia Brasileira de Letras e membro de várias outras academias.

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