José Chagas •
Poeta e jornalista. Foi da Academia Maranhense de Letras. Prefácio à 2a edição de "A Canção Inicial", Edições AML, 2001.
Sobre A Canção Inicial
Um intelectual em três dimensões
José Sarney — o poeta — fez parte da geração de jovens que, em fins da década de 1940 e início da de cinquenta promoveu, por assim dizer, a ressurreição de nossa vida literária. Os poetas da geração anterior viram-se realizados, consagrados pelo público, mas já estavam certos de que uma etapa da literatura maranhense se fechava com eles. Um se declarava mesmo o “último sabiá de Atenas”, o Corrêa de Araújo. Outro, Manoel Sobrinho, reconhecia que o sol que cintilara antes parecia haver-se extinguido, mas acreditava no dealbar de uma nova era, demonstrando isso no soneto Ressurreição, dedicado aos moços do Maranhão e em que ele antevia uma aurora os montes do pássaro envolvendo em luz alvissareira. E acrescentava: “É o sol que vai surgir, o mesmo sol de outrora…” O sol seria o mesmo, mas o tempo teria de ser outro.
Em verdade, nossos intelectuais, até então, não haviam tomado conhecimento sequer dos feitos causados pela Semana de Arte Moderna, em 1922. O Modernismo como que chegava, já velho, em nossa Ilha. Foi então que de 1948 a 1958, o que vale dizer, de Bandeira Tribuzi, com a publicação de Alguma existência, a Nauro Machado, com Campo sem base, tivemos uma década de significativas manifestações em nosso meio cultural, registrando-se o surgimento de outros poetas como Ferreira Gullar — Um pouco acima do chão —, Lago Burnett — Estrela do céu perdido —, Manuel Lopes — Voz no silêncio —, Nascimento Morais Filho — Clamor da hora presente —, todos com obras que, pelos títulos, pareciam já exprimir uma incontida ânsia de renovação. Todos “um pouco acima do chão”, para melhor captar o descortino da nova aurora.
José Sarney lança, em 1954, seu livro de estreia, A Canção Inicial, como a dizer que era necessário iniciar-se uma nova canção que não fosse a do exílio, e cujo título era já também a garantia de que seu caminho nas letras teria continuidade, ainda que, diversamente dos de sua geração, outra persistente atividade reclamasse dele profundo empenho, em atendimento aos ditames de algo a que igualmente estava destinado. Uma nova perspectiva de mundo, naqueles idos, se abria aos olhos espantados dos jovens, e Sarney, principalmente, haveria de situar-se entre sua visão estética e sua proposta ideológica, estabelecendo conexões que seriam difíceis para qualquer outro, mas de que ele se mostrou capaz, logo de início.
Tanto que, se antes fiz questão de destacar nele o poeta, foi para distingui-lo de José Sarney — o político. Mas distinguir é aqui apenas um modo de dizer, porque nele o intelectual e o homem público, muito a rigor, se integram visceralmente, consubstanciando-lhe a versátil personalidade, que sempre se mostra viva e presente, numa esfera como na outra, não havendo confronto, mas, antes, um encontro em que ambos se reconhecem, e se às vezes surgem algumas queixas serão sobre coisas de somenos, como em relação ao tempo que um pode tirar do outro. No mais tudo se reconcilia, por ser verdade que, só numa mesma individualidade é que um poeta e um político acabam por manter boa convivência.
Impulsionando assim pela vocação e pelo destino, como ele próprio acentua, domina as duas vertentes de seu estro, e não deixa de ser admirável a sua capacidade de atender a esses dois chamados, numa uniduplicidade de talentos que não se excluem, e quase somos levados a afirmar que, sem o poeta, ele não seria o político atuante que é. Não se trata, pois, de um político que pretendeu ser poeta ou vice-versa.
E não foi então por mera coincidência que, ao estrear literariamente, em 1954, também, no mesmo ano, se elegesse suplente de deputado federal, assim tendo de ser para que se cumprissem os prenúncios dos fados. Estava no limiar de dois caminhos paralelos, mas num caso em que as paralelas se encontram no infinito dos sonhos, e sonhos que nele se realizaram, quando na convergência desses dois iluminados roteiros chegou à Presidência da República e à Academia Brasileira de Letras. Tão juntos na partida quanto na chegada, o poeta e o político aí estão, e não devemos esquecer o jornalista, perfazendo-se assim as três dimensões de um mesmo espírito privilegiado, que se desdobrou depois em contista, conferencista, ensaísta e romancista.
A Academia Maranhense de Letras, a exemplo das homenagens prestadas a Ferreira Gullar e Lago Burnett com a reedição de seus livros de estreia, reedita também agora o de José Sarney, trazendo ao conhecimento da atual geração as canções iniciais de três poetas, dentre aqueles mais importantes que, ainda na década de 1950, imprimiram à segunda metade deste século toda uma prefiguração do que haveria de ser, daí em diante, a poesia maranhense e até mesmo a nacional.
Ainda que a republicação de tais obras possa parecer, na opinião de alguns poucos, um cometimento indevido, como se elas diminuíssem hoje os seus autores, a Academia, que tem compromisso com o contexto cultural maranhense, em termos coletivos e individuais, ou seja, com uma visão de totalidade de nossa história literária e o enfoque particular de cada autor ou obra, assim reconhecendo e preservando valores que se impõem, no tempo e no espaço, a Academia sabe que estas obras são valiosas, não apenas pelo que representam por si mesmas, mas sobretudo pelo que projetaram, como forças desencadeadoras e orientadoras de um processo renovador que se vem acentuando até nossos dias. Queiramos ou não, todos nós, direta ou indiretamente, devemos muito a elas. Lembremos que Gullar e Nauro, por exemplo, chegam a ser abusivamente imitados, mas não igualados, por muitos jovens que tateiam agora nos caminhos da poesia.
A Canção Inicial, que, por sinal, se multiplica em várias canções, como fontes evocativas nas quais a humana tessitura emocional se unifica à natureza em sua pura ambiência lírica (corpo branco de plumagens garças / onde os montes / são mistérios / ondulando na curva dos seios / impenetráveis / a minha esperança de mar em ressaca / onde tudo é espuma / e ausente sol), traça-nos de logo a confidente linha do poeta, por onde podemos seguir e captar, momento por momento, todo o sentido de sua busca, em profundidade, para o alcance da essência mesma que alimenta a matéria de seu lirismo confessional. Nota-se aí a natureza tomada como moldura espacial de seu canto emotivo, notadamente nas evocações feitas a tudo quanto vem do mar ou a ele se dirige. O embrião do contista de Norte das Águas e do romancista do mar já então se impunha.
Para a época de seu lançamento, A Canção Inicial é uma obra avançada, em termos de estrutura verbal, pois que Sarney não fez concessões às formas tradicionais do poema, o que se verifica pela quase completa ausência de metro e rima, elementos de que outros muito ainda se serviam. Nos versos de Sarney predomina, no entanto, o apoio de uma consciência rítmica de que ele era já senhor absoluto. Suas Baladas evidenciam isso e ainda nos revelam um alto nível de espontânea musicalidade, sem cair no andamento monótono a que quase sempre somos levados em poemas desse tipo.
Ciente de que o poema vive da palavra que o cria ou do silêncio que o nutre, Sarney nos dá neste livro alguns exemplos de deliberada contenção verbal, sobretudo em O Beco, um dos momentos altos de sua poesia. Ali já se prevê o poema como um acontecimento da linguagem a conter-se no seio do seu próprio discurso poético. E vale ainda lembrar aqui, mais uma vez, as dezenas de alusões feitas diretamente ao mar ou então a águas que correm, a rebanhos de águas, a veias onde navega o poeta, a rios, cais do porto, marinheiro, farol do cais, trapiche, praia lendária, ventos que ancoram, poços esquecidos, ondas, navios, vagas, barcos etc., tudo isso ao longo de todo o livro. Seria o prenúncio já de que iríamos ter mais tarde o nosso verdadeiro romancista do mar ou o dono absoluto do nosso mar literário, com seus mistérios e seus mitos, que ele cantou no romance-foz e em que fez desaguar toda a sua poesia, cuja nascente está nesta Canção, agora reeditada como homenagem aos seus setenta anos, tempo que nele se confundem a poesia da vida e a vida da poesia. A Academia se sente jubilosa em trazer aos leitores esta A Canção Inicial, canção-fonte que não se esgotou com o tempo e é um marco, entre outros deixados por uma geração que recolocou o Maranhão na linha de sua reconhecida destinação cultural.