Marcio Tavares d’Amaral •
Filósofo, ensaísta, poeta, romancista, crítico e professor, em 2 de fevereiro de 2010.
Sobre A Duquesa vale uma Missa
O Protagonista é o Amor
Nesse romance, José Sarney se põe ao largo das águas do norte, do domínio dos mares do seu Maranhão, das intrigas e sagas de formação do outro território da sua habitação física e afetiva, o Amapá e sua vizinha Guiana, para firmar-se como um investigador do drama humano mais universal. Nos outros livros, estavam lá o amor, a paixão — em Saraminda, quanto! —, mas talvez (é uma hipótese; se não servir, jogue-se fora) o ambiente, o mar, as terras, as “boasgentes”, as raízes fundas fossem os personagens mais evidentes. Aqui, em A Duquesa Vale uma Missa, o protagonista é o amor. Leo (que só a duquesa chamava Leonardo, e essa exclusividade tinha uma qualidade, para ele, perturbadoramente íntima) é coadjuvante. É ele o narrador, é verdade. É personagem. Mas o Quadro é soberano. E o Quadro não é simplesmente um objeto de arte. É um abismo de amor, um incêndio apaixonado.
O Quadro é histórico. Representa a duquesa de Villars e sua irmã, Gabrielle d’Estrées, amante do rei Henrique IV da França (ao qual se atribui a frase “Paris vale uma missa”, que foi parar menos política e mais carnalmente no título do romance). Estão no banho. Estão nuas. A duquesa segura delicadamente o bico do seio da irmã. Indica com esse gesto que Gabrielle está grávida do rei. Pronto. Acrescente-se uma criada que tricota ao fundo, uma cortina vermelha drapejada, e tem-se o quadro. Mas não o Quadro. No Quadro estão a amada de Leo e sua irmã. O rei não importa. A cortina serve para, pela cor, dar calor à cena, e acentuar a sensualidade da duquesa. No Quadro está a amante de Leonardo. Toda noite ela o encontra em sua cama. O menino definha, empalidece, adoece, delira. A duquesa o consome. Em desespero, já jovem estudante, Leo foge para São Paulo. Perde contato. Recomeça a vida. Mas o pai morre. Há a partilha. O Quadro, que é valiosíssimo, entra na ordem da cobiça, do dinheiro, da fortuna. Vai ser vendido. O Quadro vai ser vendido! A duquesa desaparecerá da parede da biblioteca e do quarto do menino, que, agora já adulto, a espera ali, para se acertar com ele. A essa altura, já conhece sua história de devassidão. Tem ciúmes. Acusa-a das piores ignomínias. Ela pede clemência. “Não, duquesa, eu quero matá-la, vingar sua traição…”, “Leonardo… as histórias que ele contou aconteceram depois que eu fiquei parada neste retrato… Eu sou duas. A primeira é só tua. Não me venda como escrava.” E Leonardo enlouquece. Atira livros, quadros, tinteiros contra o Quadro. A duquesa dilui-se em água. Ele implora: “Tirem-me daqui!” O amor o enlouqueceu. Perdido, ainda ouve, vindo de lugar nenhum, o apelo do desejo grande: “Caresse-moi. Caresse-moi. Caresse-moi.”
A Duquesa Vale uma Missa é uma tragédia. O destino está impresso desde o início, e é incontornável, como convém ao destino. Mas Leo luta com ele. Perde ou ganha, quem saberá? O certo é que, como os heróis trágicos, esse homem comum, de heroicidade nenhuma, não desiste da demasia, da hybris que danou os antigos heróis. Pagou. Mas se os irmãos tivessem vendido o Quadro, teria morrido. Viveu.
A escrita desse romance é clássica, limpa. Não se prestaria mesmo ao belo barroquismo das terras e das gentes do Norte. Passa-se no Jardim Botânico, no Rio. Deriva para São Paulo. É urbano, seu ambiente não conta, não tem raízes expostas. Tem expostas as veias da paixão e do sofrimento. E com elas José Sarney compõe uma história simples e surpreendente, épica e pedestre. É impactante. Pega pesado. É um livro belo e poderoso. Vale uma missa.