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Juan Arias

Juan Arias

Juan Arias•

Jornalista e escritor, criador e primeiro diretor de Babelia, suplemento cultural do El País, da Espanha. Por ocasião da apresentação na Casa de América, em Madri, 29 de junho de 1998.

 

Sobre O Dono do Mar

A fascinação dos monstros invisíveis

Este romance de José Sarney, O Dono do Mar, vem precedido de uma crítica mundial formidável, com elogios, entre outros, de Jorge Amado, Lévi-Strauss, Ferreira Gullar, Maurice Druon e do recém falecido Octávio Paz. Daí minha dificuldade para dele fazer uma leitura crítica. Não obstante, vou tentar, esquecendo-me tanto dos elogios dos grandes, como da importância política do personagem Sarney. Li apenas um romance.

Esta obra é lançada na Espanha em plena febre do Titanic. Estou certo de que ninguém ainda estudou bem o verdadeiro motivo do êxito mundial do filme. Talvez a chave tenha sido encontrada por um importante desenhista japonês ao afirmar que, da mesma forma que este século foi o dos sólidos, o próximo milênio será o dos líquidos, um milênio uterino. E há algo mais uterino e menos sólido do que as águas misteriosas do mar?

Sarney, em sua obra, agrega, do meu ponto de vista, à fascinação líquida do Titanic, a magia dos fantasmas do mar: esse mundo repleto por mistérios e visões daquelas que tanto sabem os pescadores de verdade, gente dura, curtida por todos os perigos, e que não é capaz de desfazer-se da fascinação dolorosa dos monstros invisíveis que se aninham no coração das águas.

O romance de Sarney, tão pouco racionalista, está na melhor linha do que se prenuncia para o novo milênio, ou seja, um mundo mais próximo ao mistério, à magia do sobrenatural, ao impalpável, ao movediço e ao anti-dogmático; e com um amor apaixonado pela natureza e seus mistérios. Ou pela viagem, real ou imaginária, rumo a um mundo menos aprisionado pelas ideologias, menos lógico e mais paradoxal e imprevisível como o vento do mar que pode mudar o rumo das ondas a cada segundo.

Toda a obra de Sarney é uma viagem sem fim, numa luta contra as águas e os monstros de suas profundezas; uma viagem dura mas à qual não se saberia renunciar, porque a vida é isso, uma viagem a procura dessa mulher que Cristório, o pescador pobre, protagonista da novela, buscava desesperadamente, por todos os mares, como símbolo e metáfora da felicidade.

Se se intui, ao mesmo tempo, que o novo milênio, ademais de ser líquido, será também feminino, é indiscutível que o romance de Sarney tem todos os ingredientes para ser atual, com o mar como metáfora feminina, símbolo da vida que sempre renasce. Cristório inclusive considera a sua embarcação, a Chita Verde, como uma mulher, até o ponto de, em uma das mais belas páginas do livro, haver-lhe dito que gostaria de ter um filho com ela.

A função do autor nesse romance poderia ser representada por Querente, uma aparição do mar que transita livremente entre a vida e a morte e que pode atravessar todas as fronteiras, desde o real até o imaginário.

Todas as experiências de iniciação passam pelo mar. Para poder voltar à terra, o protagonista vaga pelas águas, por seus encantamentos, durante três anos.

Existe um contraponto entre a vida na terra, que seria a vida real com toda sua segurança e sua pobreza, e a vida no mar, onde tudo é e não é, onde tudo é atemporal, contínuo e assombroso.

O mar são os mares, esse movimento oscilatório — vida ou morte —; o mar é alucinação e é, ao mesmo tempo, o real e o imaginário. Diz o autor: “Aqui está o mar, é como a noite sobre a terra e sobre tudo o que nela existe. O mar é como se fosse a natureza derretida que cai sobre todas as coisas e sobre todos os seres vivos. O mar é como o sereno, o vento, a nuvem ou o tempo. Entra e sai. É a vida e é a morte.”

Digamos então que para José Sarney o mar é a imensa metáfora da vida, com tudo quanto ela contém de mistério, exaltação, perdas e ganhos.

A obra é, ademais, fruto de uma grande pesquisa. Aí estão os “feéricos”, os monstros saídos da imaginação do povo. Nesse romance, o autor entra em outra dimensão, como se ao ver passar os navios fantasmas fosse ele mesmo esse passageiro que, no convés do barco, por um instante, abraçasse com a vista todo o mar e a terra, todos os tempos; mas depois tudo se dilui, desmancha-se na água, nuvens e céus. Assim é a matéria do livro: é poesia.

Basta — para dar-se conta de que se trata de um romance poético — ler as páginas que se referem à prostituta Maria das Águas onde se afirma que “a terra é de Deus, o mar do diabo, mas que o mar é também dos homens”. Uma prostituta de pescadores que descreve magistralmente, como um imenso arco-íris, as cores do mar, do qual diz ter “tonalidades que ninguém conhece”, que possui “a cor da cor dos olhos de quem o vê”, que é “negro como a paz do inferno”, “branco como quando se pensa nas gaivotas”, “amarelo como quando o sol morre”, “azul como a vida quando se está feliz”, “cor de abóbora como quando o sol nele mergulha”, um mar “que possui a cor de nossas raivas” que “tem seus infernos, que fazem fogo nas madrugadas”. Mares de “areias brancas, da cor do relâmpago”. Um mar cheio de surpresas “mas que não muda como a terra”, que está igual desde o princípio do mundo.

Uns mares cujos pescadores, como descreve com grande perspicácia Sarney, só o que fazem em sua vida é “olhar o mar, possuir mulheres, criar filhos e esperar a morte todo o dia no mar e na terra. Que vivem do nada, de vento e de água.”

Pura poesia é também a relação do protagonista Cristório com sua canoa, a Chita Verde. Escreve Sarney: “Mais de 30 anos haviam convivido juntos no mar com querências e encantos… A Chita Verde era cheia de vontades. Quando não queria ir para um lugar, Cristório notava: ela espumava, não avançava e transformava-se em uma caixa de sapato dentro d’água. Desde que a recebera do velho Alencajur tinha a certeza de que a canoa tinha alma, a alma de Quertide, feita de tábua e dos apetrechos de navegar. Muitas vozes ele ouvia no mar a lhe dar conselhos. Mas a canoa nunca lhe falava nada. Ele sim conversava com ela em todas suas viagens, passava a mão em suas bordas, acariciando as tábuas e dando demonstrações de amor. Quantas vezes não o salvara do perigo?”

“Chita Verde”, disse um dia Cristório à sua canoa, “queria ter um filho seu. Seria como nós, canoa e pessoa… Uma canoa é como uma mulher, vive-se com ela e há que aturar seu gênio. Ela tem caprichos e ciúmes.”

Não se pode esquecer na hora de apresentar um romance de José Sarney que ele foi e continua sendo um importante homem político. Embora imagine que neste momento ele prefira esquecer sua dimensão política para nos concentrarmos em sua nova dimensão: a literatura.

Não obstante, estou seguro de que foi, em boa parte, sua experiência política que condicionou e alimentou esta importante obra narrativa do mar. Por alusão e por contraposição. Por alusão, porque se a política costuma navegar nas brumas do indefinido para obter consenso, o que nesse romance ocorre faz-se e desfaz-se a cada instante. Por contraposição, porque se a política exige um certo realismo, um pragmatismo absoluto, nesta obra, ao contrário, tudo é imaginativo, visionário, criativo.

Eu que nunca tive desprezo pela política — por ser não somente a arte do compromisso, mas também a arte do possível frente ao pessimismo do impossível — sempre pensei que um político ou um diplomata de raça, depois de haver navegado por esses mares infestados de fantasmas, perigos, miragens e realidades, as vezes aterradores e sangrentos, está melhor dotado que muitos para mergulhar nos mares difíceis da narrativa e da poesia. Por contraste a uma vida como a da política, que é tudo menos poesia e fantasia criativa — uma vez que tem de enfrentar cara a cara, a cada momento, com a dura e frágil realidade do ponderável e do imponderável — um político de alma sensível está preparado para acertar no alvo da literatura.

Sempre admirei os políticos e diplomatas que depois da árida travessia da “arte do compromisso” souberam resgatar-se com a narrativa. Admiro-os porque, parece-me, isso significa que souberam conservar, em meio a esse mar cinzento, às vezes negro da política, um raio de luz capaz de recuperar essa dimensão lúdica da literatura que os resgata de passadas misérias.

Não se é político inocentemente. Na política ou se mancha ou se é manchado, mas dificilmente sai-se virgem dela. Na literatura, ao contrário, é você, a sua consciência que se desenvolve descobrindo a você mesmo, sua identidade e sua sensibilidade mais genuínas. A poesia o faz novo e devolve-lhe a inocência da criança que foi.

O romance de Sarney teve a arte de prender-me de imediato, desde as primeiras páginas, cheias de sugestão, ao narrar a vida do mundo rural dos pescadores pobres do Maranhão. Comoveu-me a cena, por certo magnificamente narrada, da morte de Jerumenho, com todo o ritual de lavar e vestir o corpo do defunto por mãos piedosas. Assim sucedeu com meu pai, muito jovem, na Província de Orense, onde então já se falava mais galego que castelhano. Assisti de um canto dos aposentos aquele ritual triste, mas infinitamente mais humano do que o dos frios hospitais de hoje. Eu tinha apenas 16 anos.

Sarney afirma que “o mar constrói amigos”. E a boa literatura do mar converte em amigos dos autores seus apaixonados. Porque o mar é mistério, mas é também uma realidade muito tangível, feita de trabalho duro, de valentia frente ao perigo para arrancar de suas profundidades um pedaço de pão desafiando a morte.

Por isso, um dos grandes escritores deste momento na Espanha, Manuel Rivas, que escreve em galego e em espanhol, acaba de publicar um magnífico livro de contos, alguns inspirados no mundo dos pescadores, nos que afirma que o mar “é dos valentes” e que “o mar tem muitos nomes”. Sarney dirá que tem “muitas cores”, neste romance em que aparece muito claramente um grande respeito e um grande amor ao mesmo tempo por esse mundo, como “uma grande noite que abraça tudo”. Entendeu muito bem o autor que o mundo gira e vive e morre em torno do mar, é um mundo que, apesar de estar mais familiarizado do que ninguém com seus mistérios, segue respeitando e admitindo que não basta uma vida para entendê-lo a fundo, por que é mistério sempre.

Estas páginas me lembram uma história que vivi com um pescador de uma aldeia marítima na Calábria, na Itália, no mar sônico. Me levou uma tarde em seu barco. Era uma tarde sem nuvens. Quando me sentei me disse:
“— Encomende-se a seu santo. Eu rezarei ao meu.”
“— Mas você não conheceu ainda o mar depois de navegar todos os dias há cinquenta anos?”, lhe perguntei. Me olhou com compaixão: “— Senhor, ao mar não se conhece nunca. É preciso respeitar seus mistérios. É caprichoso e rebelde. É como um deus que pode te bendizer e te destruir.” Tinha razão, porque saímos com sol e voltamos com o barco arrastado pelas ondas que se haviam encrespado de repente pondo em perigo nossas vidas.
“— Rezar serviu”, me disse irônico o velho pescador, ao atracar o barco enquanto sacudia a água que jorrava de suas roupas.

Sempre admirei o mundo do mar e de seus pescadores. Os admirei mais depois de ter conseguido embarcar uma noite para o alto mar com uns pescadores que resistiam em levar-me, porque daria má sorte levar a pescar pessoas alheias a seu mundo. Os vi lutar com o mar na noite profunda depois de ter descansado só duas horas. As estrelas pareciam rasgar o céu. O silêncio era sagrado. Se puseram a obra. Duro trabalho de pescar as redes e tirá-las da água! Ensopados em água numa noite fria de inverno, esperavam com coração ansioso ver o fruto de uma fadiga. Nada! Uns punhados de peixes pequenos cuja venda estava proibida. Ao amanhecer se aproximava do barco um bote pirata que queria comprar os peixes proibidos por uma miséria, os pescadores se olharam entre si. Prevaleceu sua dignidade. Agarravam a pesca e a devolveram ao mar. Aquele dia chegaram em casa de mãos vazias. Eu sofri pensando que lhes havia dado má sorte.

“Não se preocupe”, me disse o mais velho, “este é o pão nosso de cada dia. Nós vivemos do acaso.” Aquela manhã fiz uma promessa: “Quando comprasse peixe nunca me queixaria do preço.”

Termino agradecendo à literatura brasileira e à literatura mundial. Sempre fui um apaixonado pela literatura do mar e das suas obras mestras, desde O Velho e o Mar, de Hemingway, ao Relato de Um Náufrago, de Garcia Marques, desde Moby Dick a Julio Vernes. A elas, agregarei agora, na minha pequena biblioteca, com carinho e respeito, O Dono do Mar, de José Sarney. Aconselho a todos que também o façam. Estou seguro de que desfrutarão de sua leitura. E, façam-no, se puderem, na bela e vigorosa prosa original portuguesa.

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