Mário Soares •
Escritor, ex-presidente e ex-primeiro-ministro de Portugal. Por ocasião da apresentação do livro na Livraria Bertrand,<br /> Lisboa, 21 de janeiro de 1999.
Uma história de água, de mar e de céu
Fiquei verdadeiramente impressionado com a qualidade literária do romance O Dono do Mar. É uma verdadeira obra-prima. Já falei disso com o meu amigo Alçada Baptista, aqui presente, que, com a autoridade de ser um grande escritor, disse-me que ficou extremamente impressionado. A verdade é que esta leitura se torna compulsiva. Começa-se a ler o livro e só se acaba quando o livro termina, pois é realmente apaixonante.
É um livro de que não há muitos exemplos na literatura portuguesa, pois, como escreveu meu amigo Darcy Ribeiro, trata-se de um livro de realismo mágico. Os personagens são gente simples, da baía maranhense, aquela baía com recortes dificílimos, uma baía muito grande onde é muito difícil localizar-se. Mas é ainda muito mais difícil no livro, por ser uma história de água, de mar e de céu, e também de assombrações e de pessoas que morrem, pessoas que julgamos mortas, mas que realmente não morrem, que ressuscitam, e há alguns que vêm mortos e contam aquilo que lhes aconteceu no mar. Há também os navios dos mortos que se cruzam com a Chita Verde, canoa do principal protagonista do livro, o Capitão Cristório, que ficava muito zangado, ao final, quando não o tratavam de Capitão, título que ganhou no mar.
É um livro interessantíssimo, porque os sentimentos mais humanos, os sentimentos mais fundos que vive a gente simples e humilde, que está ligada à faina do mar e à faina da pesca, coexistem com uma mistura de misticismo, de grande misticismo, de religiosidade e de ingenuidade, num mundo que nos faz, muitas vezes, pensar na morte, pensar na vida, pensar no destino, pensar também no que foi o passado. E sempre vem, quando se passa por um navio dos mortos, como são chamados os navios fantasmas, a lembrança de qualquer coisa que tem a ver com Portugal, que tem a ver com as águas sulcadas por Portugal, pelos portugueses, com os feitos dos nossos marinheiros e também com aquilo que se passava no rio da Prata, que se comunicava com esse emaranhado geográfico e
geológico do Brasil.
Tudo isso faz-nos pressentir que este livro é de alguém que tem um ofício literário, um domínio da língua, da língua portuguesa, uma precisão e um conhecimento do mar e das artes do mar, da navegação, daquilo que acontece aos pescadores e aos navegadores, dos peixes, dos peixes que são realmente peixes e dos peixes que se transformam em monstros, que é impressionante.
Eu, que conhecia e conheço o Presidente Sarney e sua trajetória política, jornalista eminente, com uma coluna na Folha de São Paulo, com uma atividade imensa como Senador, Presidente do Senado, Governador e Presidente da República, num momento tão difícil para o Brasil, que foi capaz de manter e assegurar a transição democrática e a quem o Brasil tanto deve e tanto respeita, perguntava-me como é que é possível e quando é que este homem foi capaz de escrever este livro? Um livro grande, um livro
bem feito, um livro bem elaborado, um livro extraordinário e como é que isto foi possível, que milagre é que foi este?
Certa vez, há muito tempo, visitei José Sarney no Palácio da Alvorada. Ele, já no final de seu mandato, foi me mostrar um retrato feito para a Galeria dos Presidentes e disse-me assim: “Veja lá, como é que acha o retrato? Nele estão as três coisas que são as mais importantes em minha vida. Estou aqui com o fardão da Academia Brasileira de Letras, grande orgulho, estou aqui com a faixa do Presidente do Brasil e repare ali, na minha mão, olhe o anel, e o anel que me foi dado como Professor Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.” Só um homem com estes sentimentos, com essa capacidade de ser, ao mesmo tempo, um grande político, um grande humanista e um grande escritor, é que é capaz de escrever um livro tão belo como este que estamos aqui a celebrar.