Antonio Maura •
Escritor e crítico. Sócio-correspondente da Academia Brasileira de Letras.
Revista Encontro, do Gabinete Português de Leitura, pgs. 206/208, Ano 15, número 15, 1999.
Gente de carne e sonhos
A ilha do Maranhão está cercada de águas, rodeada de arrecifes, cabos, promontórios, grutas, cavernas marinhas, enseadas, praias e alcantilados. A cidade, São Luís, cheira a breu e a coisas do mar. A brisa chega até ela carregada de olores e recordações, de vozes e de ruídos do mar. Somente alguém que nasceu e viveu, na infância, cercado por essa presença sem fim de águas, marés, aromas marinhos e de sonhos poderia escrever um romance como O Dono do Mar.
A ilha do Maranhão também é cheia de mistérios, fantasmas e de assombrações. Devo confessar-lhes que durante três anos vivi em uma cidade próxima a São Luís, em um Estado quase fronteiriço ao Maranhão, no Ceará, na cidade de Fortaleza. Naquele tempo e naquelas paisagens, naquelas praias nordestinas, conheci alguns dos personagens que José Sarney descreveu neste Romance.
Conheci, por exemplo, Aquimundo, velho de longas e grisalhas barbas, de olhos aguados de tantas lágrimas, de mãos e pernas encaroçadas, marcadas, a própria personificação do tempo e que surge de um redemoinho de areia, numa praia sem fim. José Sarney diz: “Veio saindo, do mais fundo dos fundos, um habitante da entranhas, um velho que parecia ter muitos cem de anos, tão branca era sua cabeleira e tão encolhida a pele.” E este mesmo personagem se apresenta a Antão Cristório, protagonista deste romance, homem curtido pelas brisas e pelo salitre do mar, como a assombração do tempo, sua identidade em forma humana. “Sou Aquimundo”, diz ele: “E tu, quem és?” “Sou Cristório”, responde o autêntico dono do mar e protagonista deste romance, “Cristório, pescador do Mojó.” “Pois eu sou Aquimundo”, reitera o ancião, “pescador do tempo”. Este personagem, eu também conheci nas praias cearenses e, até escrevi sobre ele um pequeno conto de: Sol e Lua da Noite. Conheci também Querente, companheiro de Antão Cristório, assombração que permanece sempre jovem, encarnação de um velho português. Conheci ambos, ou melhor, mais que conhecê-los, eu intuí suas presenças, ali, naquelas praias de areias ardentes, escuríssimas e cheias de brilho daquela terra perdida do Brasil onde o mundo teve seu início e onde, ainda hoje, sobrevivem seres humanos surgidos de arcaicos tempos.
Gentes do Maranhão, Piauí, Ceará, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba, Bahia: gente que vive no mistério e na lenda. Gentes e terras do Nordeste, do sol e do demônio, das noites escuras como cinzas e da luz. Ali, o sonho se transforma e parece ganhar vida e movimento; ali, os corpos se diluem na deslumbrante e alucinada luminosidade; ali, tudo pode acontecer e a mais disparatada das fantasias torna-se tão nítida como as mãos com que agarramos uma corda ou com que acariciamos um corpo. Lugar onde a verdade e a mentira, as assombrações e as coisas concretas misturam-se como o fazem suas gentes — negros, brancos, mulatos — e surge seu povo, o povão, nesse crisol de raças, de mundos, de vidas e de sonhos.
José Sarney quando descreve uma assombração não é menos realista do que poderia ser, por exemplo, Jorge Amado, quando nos descreve uma mulata como Gabriela, da cor do cravo e da canela. E isso é porque no Nordeste, naquela luz ofuscante e naquela noite também ofuscante, todas as coisas se confundem. O escritor que pretende ser realista deve aceitar a visão das assombrações que povoam o mundo. Do mesmo modo que há homens e mulheres, há também mulas sem cabeça, homens-lobo (lobisomens), monstros marinhos, piocos… E neste romance, José Sarney, como não podia deixar de ser, descreve estes personagens com a mesma fidelidade com que nos apresenta os personagens de carne e osso.
O Dono do Mar é uma obra de um escritor que faz parte, como já disse, da mais rica e fecunda literatura nordestina. Uma literatura que nos deu figuras da grandeza do baiano Jorge Amado, do também maranhense Josué Montello, da cearense Rachel de Queiroz, de João Ubaldo Ribeiro que, da ilha de Itaparica, perto de Salvador, sonhou também com assombrações e seres de carne e osso nessa grande epopeia que é Viva o povo brasileiro. E junto com eles, não podemos esquecer o grande cantor do mar nordestino, o também baiano Dorival Caymi, cuja Suíte dos pescadores me faz lembrar este romance, canção de canções, epopeia marinha de capitães, de heróis anônimos e de lendas onde o mar infinito, sem limites e sem margens, é o autentico e único personagem.
José Sarney é um autor conhecido pelas terras e pelas gentes do Nordeste que sabe, como ninguém, reconhecer seus cantores; que os há muitos e de muito boa qualidade. Sarney, autor de livros de poemas como Os Maribondos de fogo e de livros de contos como Norte das águas ou Brejal dos Guajas e outras histórias, escreveu este romance como um poema e como um somatório de contos. O leitor pode lê-lo de um fôlego só pois suas escrituras são muito ágeis. Ou, deitando-se, saboreando as descrições das paisagens, das sensações que emergem do mar, que brotam da terra, da alma dos personagens. Sarney diz que: “o mar tem várias cores. O mar tem cores que ninguém sabe.” E também que: “o mar tem a cor dos olhos de quem vê. Ele é da cor de alma da gente e a alma da gente tem a cor dos olhos.” O mar é, assim, uma alma imensa, uma alma em que cabem todas as almas: é um olho que chora por todos os olhos e ri, e se enamora, e tem essas profundezas marinhas que só os olhos sabem ter. Olhos de pescador como os deste Antão Cristório, que navega no lombo de sua canoa, a Chita Verde, porque, como lembra o escritor maranhense, o mar é “um cavalo disparado, solto, correndo, sem espaço nem tempo para ser domado e vivido”. Mas não se descrevem somente as cores, os brilhos intermináveis do mar. Neste romance também há aromas: cheiro de breu, de peixe secando na praia, de corpo de mulher. As descrições deste poeta da língua portuguesa que é José Sarney são de tanta beleza, de tanta claridade cristalina, de tanta sensualidade que não posso fugir de lhes oferecer algum exemplo. Explica o escritor e poeta como seu protagonista, o capitão Antão Cristório, seduz uma mulher da noite, povoada de cheiros como a selva de vegetação, um céu de estrela ou um mar de ondas. Diz ele: “Sua mão deslizava naquele corpo rijo, com os seios duros e as pontas longas. Suas coxas eram tateadas com o óleo do escuro e, lentamente, o mar foi crescendo e as ondas subindo. Um mar revolto em que tudo balançava, desde a alma até os pés. O odor do pé de estrelas, que crescia junto à janela penetrou no quarto (…) As mãos de Cristório sentiram o macio de seus cabelos, a dureza da manga-rosa de sua pele que ele amaciava com se pegasse o vento. A madrugada continuava e só terminou quando a luz do dia começou a mostrar as linhas daqueles quadris jovens e a cor daquela borboleta de asas negras que voava parada com a força de todos os desejos. Era um campo macio de plumagens cheias, capim de marreca, pena de surulina.”
Desafiaria mais de um escritor a descrever com tão profunda sensualidade, com tanta precisão e sutileza, uma cena de amor e de sexo, de atração e mistério diante de um corpo que se multiplica na noite, que cresce como as mares e nos leva até os abismos do prazer e da perpetuidade, onde os homens e as mulheres deixam de ser isso que pensaram ser — homens e mulheres — para se converter em instrumentos de um modo remoto e infinito, de uma longa sabedoria que tanto se parece com a morte como seu oposto: o amor. José Sarney, poeta do Nordeste, sabe dessas verdades que unicamente se pode sugerir, sussurrar, apontar como quando levantamos o dedo, não sem certo tremor, até esse lugar de que nada se deve nem se pode dizer: o berço do poema, as profundezas onde germina a palavra.
Romancista, contista poeta, José Sarney soube também dar-nos neste romance uma peculiar visão da história do Brasil. Vocês sabiam que nesse grande golfo, por essa mágica baía do Maranhão, passaram inúmeros navios procedentes do Velho Mundo? Entre tantas frotas, sulcaram essas águas a esquadra do pirata Drake; a Endeavour de James Cook; a Bussole do francês Lapérouse que naufragou e ninguém mais a encontrou; a nau Régent que levava a La Ravardière chorando a morte de seu primo, o General Pisiau, que foi quem proclamou Luís XIII, Rei de França, Navarra e Maranhão; a Nau do Trato onde São Francisco Xavier converteu em doce a água salgada; a Victória, na qual navegaram Fernando de Magalhães, Vasco da Gama e Juan Sebastián Elcano; a do Rei Dom Sebastião, que foi encantado na praia do Lençóis e sempre aparece pelas costas do Maranhão; e, até mesmo, as três caravelas de Colombo que vagam pelos mares infinitos
buscando sempre terras novas para descobrir. Mas não há somente esses navios que foram guardados pela história, estão também as sinistras embarcações a vela que sulcam as águas buscando os lugares mais sombrios da claridade zenital do mar: são os navios negreiros que vem da África com suas levas de escravos para as plantações de cana e de café da Bahia, Cuba e desse país, ao Norte, povoado por colonos ingleses. Sinistros navios que cruzam como sombra este mar luminoso do Maranhão. Durante muito tempo recordarão estas águas e sua personificação, o velho e esperto Capitão Antão Cristório, esse retinir de correntes, esse açoite de chicote, esse mau odor de sangue derramado, de suor, de sofrimento e desespero que emana de seus porões.
E também em outra oportunidade, esse mesmo Capitão Cristório e sua gente descobriram, pouco antes do amanhecer, quando a escuridão concentrada parece que se converte em licor de chumbo, um navio muito grande, preto e roxo. “Tinha um castelo na proa e outro atrás. Brilhava como um sol e era escuro como a noite. As velas, muitas velas, pareciam asas que batiam invisíveis para fazê-lo caminhar. Ouvia-se o movimento
das pessoas que eram nada.” Assim descreve José Sarney o navio dos mortos, fazendo eco a uma tradição que também eu ouvi nas praias cearenses, ali em Jericoacoara, onde os pescadores contavam as distâncias por horizontes e tinham visto passar ao recair do dia essa lúgubre e sinistra nau.
E junto às embarcações dos vivos e dos mortos, os homens e as mulheres. O Dono do Mar é uma amostragem de gente de carne e sonhos. Como não lembrar de Maria das Águas, prostituta — assombração, mulher dotada de uma exuberante sensualidade, de um sexo sem limites como uma encarnação oceânica? E que se pode dizer do já citado Querente,
companheiro do Capitão Cristório, o melhor dos seus amigos, sempre jovem porque morreu quando o era e, agora, navega pelos mares com os vivos? Há também personagens maravilhosamente descritos como as duas irmãs, esposas do Capitão Cristório: Camborina e Germana, tão iguais e tão diferentes. Elas são as duas enseadas nas quais repousou o velho marinheiro e com que tem inumerável lista de filhos e filhas. Alguns deles continuam vivos inclusive depois da morte. Suas presenças se sentem no ar da noite, na brisa da madrugada: são Jerumenho, o que “sempre lhe dizia palavras de bem-querer”, que morreu nas mãos do marido ciumento de Maria Dina, mulher queimada pela sensualidade incandescente do sol a qual o jovem pescador abraçou, “abraçando a noite e a morte” na festa do bumba-meu-boi; também Batesta, que vive muito além da vida, que morreu criança mas ainda consegue acalmar seu pai nos maus momentos. E junto a eles, os pescadores, os navegantes, os homens e as mulheres das costas do Nordeste, curtidos em águas e em vida, cujos olhos iluminam-se na noite com as assombrações, com as presenças impalpáveis desse mar cheio de miragens, de seres do além, de verdades imperturbáveis e perigos tremendos como é a panã-panã, perigosíssimo tubarão que procura os animais vivos, humanos ou não, para desgarrar-lhes a carne e arrastá-los para as profundezas do mar. Um velho pescador das costas do Ceará, a quem todos conheciam pelo apelido de Gato, me contou que, em uma ocasião, em um naufrágio de sua jangada, agarrado aos troncos da balsa, viu como a panã-panã levava seus companheiros em pedaços, sangrando e sangrentos. Gato, como o capitão Cristório, é um ser nascido da lenda da realidade, Capitães de longo curso, como os definiria Jorge Amado, escritor que tanto tem a ver com José Sarney, poeta das águas e das gentes do mar.
Aconselho-os sinceramente a ler O Dono do Mar, que se envolvam em sua leitura até sentirem na pele o salitre do mar e, junto com o ruído das ondas, cheguem a escutar, também, essas histórias de verdade e de sonhos. O Capitão Cristório, como Manuel, protagonista de Mar Morto, de Jorge Amado; como Mestre Severino, protagonista de Cais da sagração, de Josué Montello; ou, como o pescador Gato, de Jericoacoara, de quem lhes acabo de falar, todos são seres reais e, ao mesmo tempo, vivem nessa estranha região onde se confundem a lembrança e a lenda: são habitantes desses mares verdes, azuis, acobreados, malvas, mares do Nordeste brasileiro que têm a cor dos olhos de quem o vê, sempre mutantes, sempre profundos, brincalhões ou sonhadores. Olhos da cor da vida.