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João Mohana: sobre “Norte das Águas”

João Mohana: sobre “Norte das Águas”

João Mohana•

Da Academia Maranhense de Letras. Noite de autógrafos, Terça-feira, 3 de março de 1970

 

Um Humanista que se Fez Abelha

Noites de autógrafos deixaram de ser fatos esporádicos na vida do Maranhão. O que testemunha a fecundidade dos homens de letras desta terra.

Hoje a noite e o livro são do intelectual José Sarney, José Sarney cuja presença foi uma constante nas noites de autógrafos realizadas nesta Galeria, presença que sempre se fez transbordar em palavras de apoio, de estímulo, de solidariedade.

Agora aqui estamos com o intuito de retribuir solidariedade com solidariedade.

Para mim é fácil também transbordar de palavras a minha presença nesta hora, pois é simples soltar a voz quando são a admiração e a amizade que movem as cordas vocais.

Afortunado o amigo que possui um amigo humanamente tão rico, culturalmente tão dotado, que pode expô-lo sem constrangimento em vitrine, que se sente honrado em içar seu nome no mastro da evidência. É um privilégio dispor de um bem público e poder falar dele sem receio de se comprometer.

Este privilégio devemos a José Sarney, o aniversariante da noite.

Aqui não estamos para nos congratularmos com o Governador, mas para homenagear o escritor. Para aplaudirmos o criador e sua mais recente criatura.

É tentação difícil de ser superada por uma maranhense, hoje, falar a José Sarney ou falar de José Sarney sem aludir a esse tributo que ele tem sabido ilustrar com talento e amor invulgares: o atributo de governante. Deu-nos ele o legítimo orgulho de termos visto nesses quatro anos um humanista a construir o Maranhão.

Há poucos meses ministrei um curso em Porto Alegre, e um advogado me perguntava sobre o Governador maranhense. Defini assim, a ele, o Governador Sarney: Um humanista que se fez abelha.

E creio que a metáfora vale por uma definição, é plenamente objetiva.

Seria acaciano, a esta altura deste fecundo quadriênio, querer ressaltar, para maranhenses, a operosidade, o dinamismo, o élan construtivo, a capacidade realizadora de José Sarney. Não é uma simples abelha cheia de boa vontade; é um operário altamente gabaritado para as funções de estadista que sabe honrar. Rodovias, asfaltamento, pontes, o porto, energia elétrica, escolas, de todos os níveis e em todas as áreas; populações interioranas tornadas comunidades populares pela participação responsável na solução de seus problemas básicos; programas de profilaxia e de defesa sanitária, telecomunicação, planejamento administrativo, quitação financeira do Estado com todos os seus funcionários, nova perspectiva da filosofia político-administrativa, política habitacional ampliada, incremento teatral, promoção humana dos maranhenses de todas as faixas populacionais, dá-nos a todos nós um eloquente testemunho de como se deve
entender, na prática, o domínio da natureza social e cósmica, o oitavo dia da criação, a colaboração com o Criador na área do mundo onde nos fez nascer.

Tenho frequentemente pensado no privilégio da nova geração maranhense, na sorte de nossa juventude em crescer. Tenho diante dos olhos um exemplo de idealismo, mas não de idealismo romântico e platônico, e sim de um idealismo realista, apto a garantir rentabilidade às metas autênticas que elege. Esta é a imagem que José Sarney deixa para a nossa juventude. Imagem de como deve ser o maranhense de hoje e do futuro. Responsável, realista e engajado; compromissado com sua terra e com seus conterrâneos. Nossa juventude tem o privilégio de contemplar a imagem de um maranhense do nosso tempo, para o nosso tempo, imagem capaz de inspirar todo moço que pretenda ser mais do que mera cifra na população do Estado.

Mas se esta noite não foi decretada para prenunciarmos o adeus ao humanista que constrói o Maranhão, foi feita para nos encontrarmos com o poeta que canta o Maranhão.

Um poeta canta o Maranhão – é isso que concluímos ao virar a última página, a última página deste belo livro.

É um requintado prazer intelectual perceber quando um escritor põe um livro onde faltava uma estrela. O homem do Maranhão, ou melhor, a humanidade do Maranhão precisava sair de onde está, precisava ser vista, precisava aparecer em voz de canto, de hino, de lamento ou réquiem. Precisava.

O nosso Coelho Neto, com aquele seu oceânico poder de relatar, tentou fazer isso em “Sertão”, porém conseguiu caminhar pouco fora dos personagens. Quase não saiu, não palmilhou a terra, mostrou pouco do sertão maranhense.

Os maranhenses de Coelho Neto poderiam viver e morrer em qualquer sertão. Mas maranhenses de José Sarney morreriam se emigrassem desse “Norte das Águas”; não fariam o que aqui fazem se não fizessem no Maranhão. No “Sertão”, de Coelho Neto, não aparece, nem poderia aparecer, um pé de arroz, uma amêndoa de babaçu; não se encontra o Maranhão maranhense. Neste “Norte das Águas” é o contrário que se dá. Nele encontramos o Maranhão do arroz e do babaçu, das caças e das pastagens boas de gado, o Maranhão “invernado de pingo grosso, seis meses de água por todos os lados, o Maranhão específico e desafiador, provocante até para o Padre Vieira… Aqui estão nupciados o homem com a terra, e esta dimensão ecológica confere ao livro de Sarney um trunfo à simples dimensão psicológica do livro de Coelho Neto.

Quero usar o lugar comum, porque neste caso ele afirma soberanamente a verdade: este livro estava faltando.

Mas quem procurarei para aferir o talento de Sarney em fazer do conto a expressão de uma arte que busca desvendar a alma e a terra do homem aos olhos do leitor? – Conrad? Não. Conrad longe viveu do homem que Sarney mostra em “Norte das Águas”. Huxley? Não. A problemática huxleyana caminha por horizontes diferentes dos horizontes
sarneyanos. Lagerlof? Também não. Selma Lagerlof, como a terceira das Bronte, peregrina pela interioridade humana alheia à moldura paisagística em que seus heróis peregrinam. Ao passo que Sarney só conhece almas encarnadas, telúricas. Quem buscarei para medir o talento de Sarney – Aníbal Machado? Ernani Fornari? Marques Rebelo? Orígenes Lessa? Graciliano? Júlia Lopes de Almeida? Gastão Cruls? O nosso Artur Azevedo? – Sarney revelou porte à altura de se ombrear com qualquer um desses privilegiados contadores de estórias. Quero olhá-lo, entretanto, na trilha de Guimarães Rosa.

Sei avaliar a gravidade desta aproximação. Se alguém, de antemão, a achar excessiva, peço que leia o livro e só depois julgue este julgamento.

Logo depois das primeiras páginas descobrimos entre ambos uma consanguinidade literária, estética e técnica, uma afinidade psicológica e sociológica, como também aquela dimensão universal que marca o regionalismo do mineirão. Não direi que o maranhense soube se avizinhar. Direi que à semelhança do que ocorreu no Sul com o gaúcho Simão Lopes Neto, a eclosão aconteceu em Sarney, e ao acontecer, deixou-se constatar no honroso parentesco com Rosa.

Senhores e Senhoras – Proíbo-me de lhes falar da estrutura do livro, que não é hora disto, nem é indicado comprometer o prazer da descoberta pessoal. Sobretudo, quando vários dos marcantes lances da narrativa, potencializados pelas ilustrações desse grande Almeida, nativista abarrotado de maranhensidade e autonomia, temperam ainda mais o sabor da leitura.

Peço-lhes apenas que esqueçam o governador e leiam o livro para escutarem o contista e o poeta, o narrador e o dialoguista, o observador sutil, perspicaz. Descobrirão, encantados, esse colorido linguajar, timbira do nosso interior, que José Sarney soube aproveitar para matéria-prima de sua arte, tranquilizando-nos por não mais o perdermos na tragagem do progresso, porque o escritor chegou com a máquina datilográfica, antes de ter chegado o governador com o trator.

Nestas páginas está nossa gente com sua força, sua vida, seus valores, sua sabedoria, suas mazelas, suas esperanças, seus desalentos, seus mitos, suas lendas, seu folclore, seu lirismo, sua violência, suas dores, sua história.

Se é tocante ver o que o humanista José Sarney constrói no Maranhão é enternecedor ver o poeta denunciar nestas páginas aquilo que neste Maranhão não se pode amar.

Este livro fornece a chave para entendermos a paixão de Sarney pelo seu Estado. Mostra-nos que a raiz desta compaixão é o conhecimento.

Certa vez encontrei Roger Bastide com um volume de Jorge Amado na mão. Disse-me ele: – “Aqui conheço melhor certas intimidades sociológicas da Bahia.” De hoje em diante vamos poder dizer isto acerca de certas intimidades sociológicas do Maranhão em relação a “Norte das Águas”.

Porque conhece o Maranhão é que José Sarney não se contentou em contá-lo ou em chorá-lo. Mas se lançou a construí-lo. O governante é filho do poeta, do mesmo homem. Eis a descoberta. Aquele que conhece a música da palavra, ofereceu o barro com o qual uma paixão fecunda gerou aquele que conhece a eficiência da ação. A palavra é responsável pela ação, pois o governante veio depois do poeta e com o poeta.

Como soube José Sarney lavar o preconceito que uma tradição condicionada nutria contra a capacidade realizadora dos poetas! Gonçalves Dias hoje se sente desagravado. Raimundo Corrêa também. Catulo igualmente. Do mesmo modo Corrêa de Araújo. E não só eles. Também Bilac, e Guerra Junqueiro, e Rimbaud, e Eliot. Todos hoje se sentem redimidos por este poeta que está descendo as escadarias de um palácio, mostrando a todos o que um poeta sabe fazer.

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