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Marcos Vinicios Vilaça – Sobre “O Dono do Mar”

Marcos Vinicios Vilaça – Sobre “O Dono do Mar”

Marcos Vinicios Vilaça•

Da Academia Brasileira de Letras. Diário de Pernambuco, 12 de janeiro de 1996.

 

Um tempo em que o tempo acontece

É irresistível dizer que em José Sarney acontece uma instigante batalha interior. Vida intelectual, assim dita, e ação pública. Não sei para onde pende mais, todavia imagino o que lhe passa nas mais sozinhas reflexões.

Bergson observou que o intelectual na política realiza-se em homem completo, ao desdobrar-se na aliança do pensamento e ação. Isto vem acontecendo a José Sarney, que sabe ser o sonho o olho da vida.

As ideias da vertente pública e as querências literárias respondem, em muito, pelo que nele é arranque e breque das ações, da escrita, dos compromissos. Por isso, é muito fácil — até para crucificá-lo — sentir a constância do sonho, como na fixação de seguir Borges: “Só o sonho é eterno porque não se modifica nunca.”

Poeta, José Sarney sabe que o mundo por melhor que vá não basta.

A leitura dos seus discursos, conferências, artigos de jornal e até dos romances mostra o quanto o preocupa acomodar Maquiavel e Cervantes, como a seguir, cristão como é, a lição de São Pedro, operador eficaz da lição de Jesus ao fazer, dentro das muralhas de Roma, a sede da Igreja.

Klaus Mehnert argumenta que o intelectual nunca deveria meter-se na política, já que lhe faltariam senso de oportunidade e capacidade de tomar decisões. Logo, faltar-lhe-ia eficiência no campo político. O mestre de Aix-la-Chapelle errou, pelo menos em relação a homens públicos do tipo de Sarney. Do Sarney, e de muitos outros.

Há da parte de uns tantos intelectuais operativos, a dor de não se conceder desculpas. Isto é outra coisa. O intelectual sabe que não basta estar certo. É necessário estar certo na hora certa. É imperioso lutar pela gente que representa, não como a obter o bem-estar vindo do sofrimento que se cansou mas consequência de uma linha que principia na esperança. Não na esperança sentada, mas de pé, tal qual nos versos de Cassiano Ricardo.

Acabo de ler o novo livro de José Sarney e o vejo no dia-a-dia da vida pública. Assim, exigem-lhe explicar um romance. Coisa boba. Na literatura não cabe aquela ironia de Churchill: o político deve ser capaz de prever o que vai passar-se amanhã, o que vai passar-se mês que vêm e o que vai passar-se no próximo ano. Só que com uma condição: a de saber explicar depois porque nada do previsto aconteceu.

O romance não tem essa moldura.

Novo livro de José Sarney e lá vem a cena, um tanto monótona, já interpretada por outro José, o de Alencar: os intelectuais, julgando-o pelo que faz o político e os políticos, julgando-o pelo exercício da vida de escritor.

Sarney reage com a melhor consciência aquilo que o nosso, nossíssimo Austregésilo de Athayde, se recusava a entender: homens de governo, vez em quando, viverem o temor de ser considerados indignos de suas responsabilidades ao se dedicarem às tarefas intelectuais, sob pena da condenação vulgar: “São uns literatos, uns poetas…”

Tudo é fácil de entender, desde que não haja o preconceito, a má fé, Josué Montello reconhece que há essencialidade política nas Academias de Letras e Machado de Assis falou conclusivamente: “Na Academia (a política) é o sentimento mais ativo de todos e a ABL, graças ao seu quociente de mortos, jamais foi academia morta. Os abençoados mortos deram-lhe a mais preciosa das vidas — da vida eleitoral.”

A política deu a José Sarney a capacidade de escrever depois de ouvir. Sua criação não é um ato inteiramente solitário. Este o segredo de conhecer os donos do mar, os maribondos de fogo, os nortes das águas.

O livro pode ser explicado pelo imperativo auricular. Ouviu, processou, escreveu sobre o desflorir e o florir com sentimento provincial sem ser provinciano. E isto é tão difícil. Os personagens não veem o mar maranhense, como por buracos de fechaduras, antes, por vastos proscênios de humanidade.

Quem leu o livro — não estou falando de quem ouviu falar do livro — percebe a obstinação da pesquisa, a perfeita combinação da ética em função da estética da palavra. Livro bem feito. Na verdade, é o seu melhor livro, a se rivalizar com outro que vem por aí, de memórias, com o título estupendo: Testamento para Roseana.

José Sarney sabe escrever crônica, poesia, romance, carta, bilhete, telegrama. Não o faz pensando ser gênio da raça, porém convictamente honesto no desejo de transmitir, de conviver, de mostrar a sua fonte de inspiração. Não fosse isto lhe seria extremamente cômodo, plausível dizer que as atribuições e as atribulações da vida pública não lhe deixam tempo para o processo de criação literária.

Ao contrário, esse O Dono do Mar acontece num tempo em que o tempo acontece.

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