Há exatos vinte anos, no dia 23 de julho de 2003, foi aprovado no Senado Federal o Estatuto do Desarmamento. Como havíamos acordado, eu, então Presidente do Senado, e o Deputado João Paulo Cunha, Presidente da Câmara dos Deputados, o projeto era o resultado do trabalho de uma comissão conjunta das duas Casas, o que significou uma rápida aprovação na Revisora. Em dezembro coube-me encaminhar o projeto para a sanção presidencial, que ocorreu no dia 23 de dezembro de 2003.
Infelizmente o projeto teve um dos seus pontos centrais, a proibição de comercialização de armas de fogo e munições em todo o Brasil — proposta do Senador Renan Calheiros, que teve um papel fundamental na concretização do Estatuto —, derrubado no referendo que se fez em outubro de 2005, por ampla margem. Durante a discussão final retomou-se o questionamento do compromisso do referendo, uma vez que se tratava de assunto técnico e havia a fragilidade do instrumento.
Por duas vezes o Brasil havia se utilizado de referendos nacionais, as duas vezes com resultados desastrosos. A primeira vez fora em 1963, sobre a mudança do sistema de governo para parlamentarismo, feita dois anos antes. A vitória do Presidente Goulart foi um ponto decisivo para a escalada que levou aos vinte anos de regime militar. A segunda vez foi também sobre o sistema de governo e de regime, desta vez por uma disposição transitória da Constituição de 1988 — se queríamos república ou monarquia, presidencialismo ou parlamentarismo. Mais uma vez o parlamentarismo, o melhor sistema que o Brasil já teve, que nos manteve livre de tentativas de golpes durante todo o segundo reinado, foi derrotado. O que acontece é que vence o lado que tem a melhor propaganda, numa escolha não fundamentada, baseada apenas na mobilização de interesses. No caso da proibição de comercialização de armas e munições, talvez a medida mais paradigmática do Estatuto do Desarmamento, valeu a enorme mobilização da indústria de armas.
Como se sabe, o negócio de armas — o instrumento para matar, que atenta contra a preservação da espécie e contra a proibição de todas as religiões — é da ordem do trilhão de dólares por ano. Esse dinheiro aplicado na redução da pobreza e da desigualdade, por exemplo, transformaria a humanidade de maneira irreversível. Instrumento utilizado para matar, as armas de fogo fazem o estado de coisas em que uma guerra puxa outra, uma morte puxa outra.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, que acaba de ser publicado, mostra que o número de mortes violentas estava praticamente estável, em torno de 48 mil mortos. Para se ter uma ideia do que isso significa, na guerra na Ucrânia morreram em 2022 em torno de 20 mil pessoas — embora na propaganda (!) este número se eleve de centenas de milhares. Continuamos na situação absurda de ter mais de 10% das mortes intencionais do mundo tendo apenas 2,5% da população. Continuamos na situação de termos mais mortos que o país mais populoso do mundo, a Índia, e sete vezes mais que o segundo país mais populoso, a China.
Mas os números têm o gravíssimo defeito de mascarar o outro lado do fato, que é a vítima, que são as vítimas, pois cada morto é a interrupção de uma existência, com toda a carga de afetividade, de sonhos, de amor, e um golpe profundo, irreversível, na família que fica, nos amigos que ficam. Há muitos anos proponho a regulamentação do artigo da Constituição que está desativado, o 245, que dispõe: “A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o poder público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito.” É o que se chama de “letra morta”.
Esta semana o Presidente Lula restabeleceu, por decreto, medidas de controle das armas de fogo mais razoáveis. Preocupa-me, ainda, o elevadíssimo número de armas e munições que continuarão em poder de pessoas que delas não necessitam. O controle das armas e munições tem que ser rigoroso. Um absurdo, por exemplo, o que acontece com a identificação de lotes de munição, que, teoricamente limitado a dez mil unidades, tinha, no caso da bala que matou a deputada Marielle Franco, 2,5 milhões. A proposta de reduzir os lotes a números pequenos seria muito útil, se não fosse o abuso tão descarado e impune.
Sei que há preocupação de alguns parlamentares com um eventual desemprego na indústria de armas. A solução evidente seria reorientar essa indústria para produzir algo que servisse à paz.