Quando Presidente da República, visitei Cabo Verde, então governado pelo meu saudoso amigo Aristides Pereira. Foi uma admiração baseada na sua história de lutador pela independência de Cabo Verde e por seu trabalho à frente daquele país.
Foi uma recepção inesquecível. Na ilha da cidade de Praia, sede do governo, desembarcamos e fomos recebidos por uma multidão com galhos de árvores, tambores e uma grande alegria. Estava acompanhado por Jorge Amado.
Quando vi a alegria naquelas manifestações musicais, virei para Jorge e disse: “Você está vendo o que estou vendo?” E em seguida acrescentei: “Estou vendo na beleza dessa multidão em sua manifestação que a alegria do Brasil e do povo brasileiro veio da África. Você pode ver esta multidão aqui em Cabo Verde como eu posso ver no Maranhão, e você, na Bahia.”
O sangue africano, fundamentalmente, contribuiu para a formação do caráter e da identidade do povo brasileiro, de tal modo que podemos afirmar sermos um país mestiço. Praticamente nenhum brasileiro pode negar que essa marca esteja presente em seu DNA.

Pois bem. É uma vergonha que a escravidão no Brasil tenha se prolongado até o fim do século XIX. Mas a libertação dos escravos foi um dos maiores movimentos brasileiros na construção de uma consciência nacional contra o sistema de terror que a escravidão representava.
O terceiro maior quilombo do Brasil foi comandado pelo Negro Cosme, líder do Quilombo da Lagoa Amarela, no Maranhão. A primeira coisa que fez no Estado foi fundar uma escola de leitura e escrita. Ali se reuniam quase três mil negros. Foi mártir, enforcado em Itapecuru-mirim, no Maranhão.
Não me canso de dizer que, ao lado de Zumbi, a luta da raça negra deve invocar essa figura notável, heroica, brava e altamente revolucionadora, que nos deu o exemplo de querer para o seu povo a ascensão através da educação.
No Brasil não podemos falar da Abolição sem invocar a figura de Joaquim Nabuco, que dedicou sua vida, sua obra e seu talento a essa causa, ajudado pelo maranhense Joaquim Serra, a quem o próprio Nabuco reconhecia que, sem ele, jornalista e lutador, a campanha da Abolição não teria sido o que foi. Foi seu assessor e companheiro. Infelizmente, Joaquim Serra morreu antes que a Abolição fosse proclamada.
A comemoração do Centenário da Abolição ocorreu durante a minha presidência. Não quis fazer festa, mas marcar a data com a minha convicção de que a nossa luta contra a discriminação racial dos negros tinha tido até então apenas manifestações políticas, nas quais não se via nenhuma providência concreta para a sua ascensão social, única fórmula para a sua participação nas decisões nacionais e a extinção da discriminação.
Criei a Fundação Palmares, que até hoje é o grande instrumento a promover esse destino. Por outro lado, como Senador, sem que nunca se tivesse falado sobre isso no Brasil, apresentei no Congresso Nacional o primeiro projeto abrangente sobre cotas raciais e ações afirmativas, dando a oportunidade de os negros terem uma cota de participação não somente no ensino médio e no universitário, mas também em vários setores da sociedade, de modo a que eles ascendessem a camadas mais altas em nosso país. E assim vejo na televisão, nas novelas, em telejornais e em diversos programas a participação do talento negro com seus valores, sua alegria, sua cultura e sua musicalidade, que eles trazem no sangue.
As cotas raciais e a Fundação Cultural Palmares têm ajudado na ascensão social, política e econômica dos negros no Brasil.
O que me inspirou não foi a motivação política, mas a do intelectual que sempre esteve ao lado da luta dos negros e ao lado de Afonso Arinos, que propôs a tipificação da discriminação de raça e cor (Lei Afonso Arinos, Lei nº 1.390/1951). Minha inspiração vinha também do exemplo americano, onde a política de inclusão racial funcionava desde o final da década de 1960.
Aqui no Brasil, iniciamos, em 1971, o movimento para a criação, em 1978, do Dia Nacional da Consciência Negra, homenageando Zumbi dos Palmares, e tornamos a data feriado nacional em 2023/2024, lei sancionada pelo Presidente Lula. Os Estados Unidos iniciaram uma homenagem, em 1968, ao seu grande líder negro assassinado, Martin Luther King Jr., e tornaram a data feriado federal em 1983, com início em 1986.
A comemoração que se fez ontem no Brasil, com o Feriado Nacional da Consciência Negra, é motivo de orgulho para todos nós.
O Brasil é um país mestiço, o que tive a oportunidade de proclamar em discurso nas Nações Unidos. Muitos não compreenderam, envolvidos no espírito da discriminação. Essa diversidade étnico-cultural não deve ser escondida, mas sim celebrada com satisfação.
Isso é um trunfo, e um trunfo nosso, característica do povo do Brasil, cuja alegria veio da África. E isso foi expresso ontem pelo Dia Nacional da Consciência Negra.
Viva!