Estamos vivendo coisas com que nunca sonhamos. Uma delas, a pós-verdade, que colocou a mentira no lugar da verdade, que deixou de ser o que é para tornar-se o que as emoções da rede social definiram como verdade. O fato foi substituído pela narrativa.
As descobertas científicas colocaram em nossas mãos milagres. Podemos, numa tela vazia em nossa frente, por artes de Deus ou do diabo, ver o que se passa em todos os lugares do mundo no instante mesmo em que estão acontecendo. Com uma pequena caixinha que cabe na palma de minha mão, posso localizar qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo e falar com ela, através dela me comunicar, saber e transmitir notícias, prever o tempo, fazer cálculos matemáticos e recuperar mensagens que me mandaram de outra máquina fabulosa — sua excelência, o computador —, que com um teclado que também me conecta com todo o mundo no mesmo instante que me fornece todas as informações que desejo, milhões e milhões de dados sobre tudo, a cada segundo, sem um centro organizador e produtor, que vão se multiplicando quando alguém mais se junta a esse processo, que não tem limites e atinge o infinito, que é o conceito de rede.
O que acontece com nossa cabeça que foi da cultura oral, fez uma pausa no livro e de repente caiu na era da cultura visual? Que mudanças aconteceram em nossa maneira de pensar, nos costumes e nos sentimentos que durante milênios criaram a criatura humana que a História formou até agora? Nós nos acostumamos a conviver com a alegria, com a tristeza, com o amor em todos os seus níveis, com a noção de trabalho, com os valores da família, os sentimentos de ódio, da cólera, da violência, tudo isso de maneira artesanal, criando outro mundo, outra sociedade para a qual não estávamos preparados, diferente, com coisas que não podemos dominar, outro mundo a que buscamos nos adaptar, e não ele a nós.
Tudo mudou. Vivemos nossas circunstâncias, em que são as da realidade. Porém nossa realidade não é realmente a realidade. Nossos sentimentos e nossas reações estão sendo reciclados e já não são o que nos faziam acreditar. “O que em mim sente está pensando”, dizia o verso de Fernando Pessoa. Só que hoje, sentir e pensar não são mais faculdades do ser individual e sim do ser coletivo que somos.
O amor deixou de ser o amor como o concebíamos no passado. O mesmo acontece com a amizade, com a noção de convivência, com o ódio e a cólera. Estamos perdendo até a indignação, todos submetidos ao uso de uma droga tecnológica. As próprias drogas fazem parte deste contexto. A diferença é que estas são substâncias químicas para a sublimação dos prazeres. A droga da modernidade, com a parafernália de comunicação, nos impõe uma situação mais perigosa que a de não ter a liberdade de ingeri-la, porém, a obrigação de consumi-la.
O culto da velocidade. Não temos mais a liberdade de andar. As distâncias, o estilo de vida que foi criado nos fez dependentes da velocidade, do patinete, da bicicleta, da moto, do carro, do ônibus, do trem, do avião. Já não tem sentido escrever cartas. A civilização é oral, é o telefone. Escrever passou a ser algo atrasado. Escreve-se para confirmar o que se falou. Fala-se por telefone, por fax, pelo computador, pelo cinema, pela televisão, pelas redes sociais na internet.
Vemos perplexos que somos um grande laboratório e que estamos nos transformando com todas as mudanças que acontecem no mundo. É como se estivéssemos chegando ao desaparecimento da espécie de homem que foi o homem e que fez a História que chegou aos nossos dias.
Estamos em meio a estas perplexidades que são mais de segurança que de dúvidas. Nossas reações são condicionadas pelas inseguranças que nos rodeiam. Já não sabemos o que é bom e o que é mau. Nossos códigos de ética e comportamento individual, aquelas leis que cada um de nós processa dentro de si ao longo da vida, de um momento para outro estão questionadas pela realidade virtual. São os meios de comunicação que nos condicionam, e de tantas informações que nos chegam já não podemos distinguir o que é verdade e o que é mentira… As verdades são tantas que é impossível saber qual delas realmente é a verdade. Abrimos os jornais, vemos televisão, navegamos na internet, e a soma de informações que nos chegam são tão grandes que não podemos estabelecer uma escala de valores para absorvê-las.
Estamos dentro da bolha da rede social na internet, da qual é impossível fugir. A tarefa de sair tornou-se inexpugnável.
São tantas as versões que existem sobre uma verdade que é difícil descobrir onde está escondida a verdadeira mentira.
Ilustração: “Squelette arretant masques” (1891): a obra de James Ensor é famosa pelos seus desenhos e pinturas de máscaras e multidões que utilizou como crítica social da hipocrisia e da mentira