A Transição Democrática no Brasil
Estudo publicado em 30 Anos da Constituição Brasileira,
coletânea organizada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal
- Introdução
- Perspectiva Histórica
- Antecedentes de 1985
- A Tragédia de Tancredo Neves
- Os Mandamentos da Governabilidade
- A Constituinte
- As Dúvidas sobre o Futuro
- Os 30 Anos da Constituição
Introdução
Ex-Presidente da República, governei o Brasil em temposde tempestade, conduzindo um período de transição num país da América Latina. Transição do autoritarismo para a construção de um Estado de Direito. E a transição é a tarefa mais difícil da política. Ela tem sido o túmulo de grandes estadistas. Transforma heróis em vilões, santos em demônios, mártires em inquisidores, democratas em ditadores e reduz a cinzas grandes lideranças. Na transição tudo tem a marca do Já. Mudança já. Desenvolvimento já. Pleno emprego já. Paraíso já. A panela ferve. Tira-se a tampa, sai calor, fumaça, tudo queima e está em ebulição. A violênciaé uma sedução permanente. A demagogia ganha foros de seriedade. Propõem-se soluções simplistas para problemas insolúveis. A política passa a ser uma obra de engenharia meticulosa: anda-se no fio da navalha, na tentativa de harmonizar conflitos. Paga-se um grande preço político. A sociedade torna-se impaciente, corporativista. Todos julgam ter chegado a hora de receber uma fatia maior do bolo, e o bolo não existe. Nesse jogo, duas coisas são importantes: a paciência e o tempo. Dar o exemplo de tolerância para que a democracia passe da palavra para os fatos e possa ser um estado de espírito. A liberdade tem um grande poder criativo e, se tivermos tempo, ela vai corrigindo os excessos. O Brasil venceu o seu primeiro e grande dilema: autoritarismo ou democracia.
O País ultrapassou o seu gargalo institucional. Não foi um passo de circunstância, foi uma opção definitiva de sua História. Há uma consciência civilista consolidada; há uma opção liberal pela economia de mercado. Acabou-se a gangorra militarismo versuspopulismo. O jogo democrático passou a ser o único jogo. Não há oposição conspirativa, não há grupos de ação extremista. Nenhuma sombra golpista. O País viveu o choque da democracia e saiu em paz e ileso. É claro que pagamos e continuamos a pagar altos custos políticos, econômicos e sociais.
Perspectiva Histórica
Ao longo de nossa História, tivemos sempre dificuldade em cumprir os grandes compromissos da Democracia, que podem ser resumidos nos direitos proclamados pela Revolução Francesa e pela Declaração de Independência dos Estados Unidos: liberdade, igualdade, fraternidade; vida, liberdade (outra vez) ebusca da felicidade. Nossos episódios constitucionais tiveram origem e resultados muito diversos, mas, mesmo quando marcados por avanços importantes, foram vítimas deste descompasso.
A longa duração do período colonial, com seu obscurantismo só iluminado pelo despotismo do Marquês de Pombal, terminara com o príncipe-regente, em breve rei de Portugal, aqui refugiado, declarando o Reino Unido. Em 1820, formadas, revolucionariamente, Cortes em Portugal, enquanto estas se reuniam, na forma da Constituição Espanhola de Cádiz, o rei declarou que “os meus vassalos […] terão na Europa para as governar a minha real pessoa, ou um de meus filhos” (SOUSA, 1972 p. 134). Buscava, seguindo o conselhode D. Tomás António de Vila Nova Portugal, atender à mais premente das queixas do povo português. Em pouco tempo as Cortes Gerais e Extraordinárias, formalizadas em Lisboa, assumiam de fato o controle do resto do Reino e pressionavam fortemente, por meio de agitações de rua, a nova capital, exigindo que o rei jurasse as ‘bases’ da Constituição, bases essas que ainda não estavam definidas. O Príncipe D. Pedro, pela primeira vez consultado num assunto público, aceita ser regente em Lisboa, proposta do ministro em ascensão, o Duque de Palmela.
O jovem Príncipe, revelando sua lucidez, escreve sobre o juramento desejado: “…mandar as bases da Constituição é reconhecer a conservação dessas Cortes, reconhecida aí está reconhecido o governo e é indecoroso o veto” (SOUSA, 1972 p. 150).
Sai a 23 de fevereiro de 1821 o decreto, datado de 18, que primeiro propõe um projeto de Constituição que atenda ao Brasil: “…igualmente adaptável e conveniente em todos os seus artigos e pontos essenciais à povoação, localidade e mais circunstâncias tão poderosas quanto atendíveis deste reino do Brasil…”. O decreto convoca, com esse fim, deputados (“procuradores […] que as Câmaras das cidades e vilas principais elegerem”) (BONAVIDES, et al., 2002 p. 489).
Resolução efêmera, pois, rejeitada por todos os lados — a tropa, toda de origem portuguesa, se revolta a 26 de fevereiro, exigindo as bases, enquanto os nobres procuram alternativas —, logo a 7 de março saem dois novos decretos, pré-aprovando a Constituição. A solução não satisfaz. Mas é seguindo esses que são eleitos os deputados brasileiros.[1]Foi nossa primeira tentativa de termos uma monarquia constitucional.
Pressionados, primeiro D. Pedro, em seu nome e no do pai, depois o próprio rei — que decidira voltar a Portugal —, fazem o juramento. Mas não cede a fervura. É em meio a tumultos que são convocados os eleitores paroquiais, não em sua condição de primeira instância eleitoral, mas para decidir sobre a regência e escolhero governo do príncipe. E eleitores e não eleitores avançam: exigem o juramento da Constituição de Cádiz. La Pepa, como ficou conhecida a famosa constituição, fora reinstalada em Espanha, primeiro passo do Triênio Liberal iniciado com a revolução de 1820. Ante o grito, D. João cede. Manda lavrar o decreto de 21 de abril, em que declara:
…se fique estrita e literalmente observando neste reino do Brasil a mencionada Constituição espanhola. (__, 1889 p. 70).
Embora pelo espaço de apenas um dia, tivemos assim nossa primeira Constituição!
Poucas horas depois, D. Pedro mandava dissolver a reunião a tiros de pólvora seca, e o heroísmo se dissolvia ante a força. E o rei decreta:
…Hei por bem determinar, decretar e declarar por nulo todo ato feito ontem… (Ibidem).
Cito esse breve instante de constitucionalização para ressaltar um caráter importante do estabelecimento do Estado de Direito no Brasil: o signo do passageiro. Felizmente, pouco tempo depois, a chegada de José Bonifácio determina a independência e a instalação do Império do Brasil.
A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil teve seu projeto formulado por uma comissão, e, nesta, por Antônio Carlos de Andrada. Esse projeto, “da Mandioca” — assim chamada por ter como exigência eleitoral renda calculada em alqueires de mandioca —, tinha o retrato das constituições liberais daquele tempo, na esfera de influência da de Cádiz. Seu destino foi selado pela ação legislativa, tornada intolerável pelo nativismo português, que a derrubou ao derrubar o governo de José Bonifácio. Mostrou-se, assim, o lado autoritário, absolutista, de D. Pedro, raiz, assentada na Colônia, de um gosto teimosamente brasileiro de apelar para a solução brusca e isolada do governante ungido.
“Duplicadamente mais liberal”, foi o que prometeu o Imperador no ato de dissolução da Constituinte (BONAVIDES, et al., 2002 p. 557)sobre a que seria nossa primeira Constituição, por ele outorgada. Afonso Arinos mostrou, editando um livrinho interessantíssimo,O Constitucionalismo de D. Pedro I no Brasil e em Portugal, como Pedro, e o Chalaça, realmente meteram a mão na massa. Apesar do pouco debate, e da ausência de povo, em pessoa ou representado, a Constituição do Império se destaca por suas virtudes — a garantia dos direitos, a flexibilidade que permitiu a implantação progressiva do parlamentarismo, a rigidez que dificultava ser emendada.
Os Imperadores e os Regentes deixaram, entre erros e acertos, a marca das dificuldades que era (e é) governar o País, seguindo ou não a Constituição. Joaquim Nabuco, em um opúsculo em que previa o fim do Império — ele grande monarquista —, dizia: “…do que eu acuso o Imperador quando me refiro ao governo pessoal, não é de exercer o governo pessoal, é de não servir-se dele para grandes fins nacionais.” (NABUCO, 1949 p. 243). Já denunciara ponto mais grave: a inexecução, total e absoluta, da lei de 7 de novembro de 1831, que determinara a liberdade de “todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil vindos de fora” (NABUCO, 2003 p. 100). A esta primeira abolição progressiva, falharam o Parlamento, os governos, a Justiça (“a passividade cúmplice da magistratura”) (Ibidem), o rei. O Imperador teve grande orgulho de seu liceu, o Pedro II, mas a excelência dessa casa era a demonstração mesma de que a educação fora tratada com desleixo. Precariamente surgiram, depois do Ato Adicional, alguns liceus provinciais. O artigo 179, XXXII e XXXIII, foi, para a imensa maioria da população brasileira, uma ficção: ensino primário para menos de 2% da população, ensino superior para raríssimos afortunados — as poucas faculdades que tínhamos vinham do Reino Unido e do Primeiro Império. A universidade era dispensável ou “obsoleta”. Para as mulheres, o mesmo que nada. O preço está estampado em nossa defasagem para o excelente estado da educação na Argentina, em condições não muito diferentes. E o exemplo de que era possível outra realidade foi dado também pelo Negro Cosme, criando, em seu quilombo, durante a Balaiada, uma escola.
Se a Constituição tinha virtudes, os homens de Estado do Império também nos deixaram grandes sucessos. É o próprio Nabuco quem nos dá, em Um Estadista do Império, o retrato do que foi aquele tempo, ultrapassando os confrontos externos e internos, as revoltas e os desequilíbrios institucionais. Durante esse tempo o Brasil consolidou sua unidade, enquanto a América Espanhola pulverizou-se. Tornou-se, realmente, uma nação.
A República, a que o ‘povo assistiu bestializado’ — na frase clássica de Aristides Lobo —, que não se infiltrara no pensamento nacional, insinuara-se entre os militares, que aproveitaram o descontentamento com o governo, a degradação assinalada por Nabuco e o ressentimento de Deodoro para impor o regime. Logo o governo provisório determinou a preparação de nova Constituição. O projeto da Comissão Saldanha Marinho, iniciado já em janeiro, foi entregue para a revisão de Rui Barbosa em maio, e apresentado em junho de 1890. No final de novembro, instalada a Assembleia Constituinte, a Comissão dos 21 começou a rever a revisão, terminando o trabalho em pouco mais de 15 dias. A 24 de fevereiro de 1891 a Constituição foi promulgada.
Moldada por Rui na constituição americana, ela seria uma esperança. Adotou-se, desde logo, por sugestão de Campos Sales, com a Lei 426, o fim do voto secreto, sendo o voto a descoberto, permitido, de fato obrigatório, o eleitor recebendo do presidente da mesa o documento assinado com a chapa em que tinha votado. Argumentava ele que a República, cuja origem era o voto popular, tinha que ganhar eleições, mas o que acontecia, na realidade, é que o povo era monarquista e não votaria em republicanos. Sendo assim, propunha ele fraudar as eleições. Para ter certeza de que tudo ia bem, criou-se a degola, a passagem pela Comissão de Reconhecimento, com que Pinheiro Machado, que a assumiu, podia aceitar ou ignorar o candidato vitorioso nas urnas e dominar a política brasileira.
Esta Constituição também seria emendada uma única vez, em 1926, depois da longa campanha de seu principal autor, Rui Barbosa, e das inúmeras queixas contra o processo eleitoral, as intervenções, as oligarquias estaduais, a alternância café com leite e a própria dificuldade de emendar a Constituição, que exigia intervalo de um ano e três discussões com votos de 2/3 das duas Casas. Embora alterasse as competências dos três poderes e até mesmo o capítulo dos direitos, reduzisse o Habeas Corpuse introduzisse o veto por artigo, terrível na lei de meios e que perdura até hoje, essa emenda não mexeu substancialmente com o que se chamou República Velha: a recorrência das rebeliões tenentistas e dos estados de exceção, a cada vez maior distância de uma sociedade democrática.
A Revolução de 1930 veio como uma luz. Esperava-se a abertura de um novo tempo. Os ideais tenentistas e liberais esbarraram em Getúlio Vargas, que retardou a nova constituinte. Em 1932 os paulistas entraram em guerra. Finalmente a Constituinte — desta vez ‘exclusiva’, não legislativa, o que manteve o fluxo dos decretos-lei — foi convocada para maio de 1933, e foi nomeada a comissão incumbida de elaborar anteprojeto de Constituição. A Comissão do Itamaraty, presidida por Afrânio de Melo Franco, e em que se destacava João Mangabeira, rejeitou pontos centrais da Carta de 1891 e inovou na proposta: unicameralismo, Conselho Supremo, eleição indireta do Presidente da República, pontos sociais. Afinal a Constituição de 1934 manteve o Senado — mas não como parte do Poder Legislativo, e sim como responsável pela ‘coordenação dos poderes’ —, a eleição direta do Presidente da República, introduziu a representação classista (que já fizera parte do corpo constituinte) e inovou nos direitos econômicos e do trabalhador.
A Constituinte elegeu em seu encerramento o Presidente da República, afinal função não constituinte que era essencial para o caudilho. Antes da nova eleição deu o golpe de Estado de 1937. A Constituição de 1934 foi, portanto, efêmera e pouco implantada. Prevaleceram sobre ela os primórdios de nosso Estado concentracionário. Com suas qualidades e defeitos, foi a prova definitiva de que uma constituição não faz a democracia.
A Constituição de 1937 também foi efêmera: por desejo do Ditador, não teria sido posta em vigência, segundo seu único autor, Francisco Campos, recém-nomeado Ministro da Justiça e responsável pelo Direito do Estado — seria exagero falar em Estado de Direito. Vargas teria governado com poderes provisórios, mas que lhe permitiram, por um decreto, anular uma sentença do Supremo Tribunal Federal…
O renovar das esperanças mais uma vez veio em 1945, e a Constituição de 1946 refletia uma consciência das limitações do bacharelismo. Restaurou, mais do que as ideias de 1934, as de 1891, com um presidencialismo forte. Como sistema eleitoral, no entanto, ficou com o voto proporcional, defendido há mais 50 anos por Assis Brasil, já ultrapassado em 1932, quando o colocou no Código Eleitoral. Sua maior implicação, a falta de expressão majoritária, se estendeu à eleição presidencial. O partido nacional não evitou a ausência de democracia partidária, especialmente nos Estados. Ambos os problemas, subsistindo até nossos dias, estão na raiz de nossas principais crises.
Essa Constituição, a que teve menos influência militar até então, permitiu a sucessão de pronunciamentos armados, afetando alternadamente o Judiciário, o Legislativo e o Executivo, até culminar com a deposição do Presidente e a intervenção de 1964. A Emenda nº4 havia instituído um parlamentarismo artificial, afastando-o até hoje, infelizmente, de nosso horizonte.[2]
O regime militar teve também suas constituições, duas, a de 1967 e a de 1969. A primeira — votada à força, em um mês, pelo Congresso Nacional transformado em constituinte por força de ato institucional — exacerbou os poderes da União e do Executivo. Pouco depois foi emendada, por um ato institucional, emenda que foi de fato a nossa penúltima Constituição, que reforçou essas características. Sob sua vigência exerci a Presidência da República e convoquei a Constituinte de 1987.
Antecedentes de 1985
Tendo sido Governador do Maranhão, retornei ao Parlamento em 1971, como Senador pelo Maranhão. Durante esse tempo promulgara-se uma constituição e outorgara-se outra, e o País ansiava por sair desse mergulho autoritário. No MDB, mas também na Arena, partido a que eu pertencia, buscava-se a saída. Ela não viria facilmente. Mesmo o General Geisel, ao assumir o compromisso de uma abertura lenta, gradual e segura, não pôde evitar os passos atrás. A obra que se realizou não foi ação individual, mas teve a contribuição de muitos. Entre eles sobressaiu a figura extraordinária de Tancredo Neves.
Ninguém governa o tempo em que governa. Há tempos em que a gente administra realidades simples; há tempos em que se administram escassez, ou fartura, a rotina do dia a dia, as crises que permanentemente têm os governos. Porém, há instantes em que a História se contorce juntamente com a tarefa de governar. Contorce-se de tal maneira que as decisões dos governantes podem se transformar em mudanças de rumo, podem se transformar em retrocessos.
Correspondeu justamente ao tempo em que exerci a Presidência da República um desses momentos da História, em que ela, poderosamente, se movimenta, exigindo dos homens públicos assumir posições que em geral não são chamados a assumir quando administram tempos tranquilos.
Àquele tempo reproduzíamos a velha tradição brasileira, em momentos em que a História se movia, de sabermos encontrar um terreno comum para que o País pudesse prosseguir na marcha em direção ao seu destino.
Não é fácil falar quando se esteve, de certo modo, no centro dos acontecimentos. Mas a História do Brasil é marcada justamente por aquele mesmo sentimento que nos uniu naquele momento difícil.
Recordo que, na Independência, não nos matamos entre portugueses que aqui estavam e brasileiros. Foram José Clemente Pereira, Gonçalves Ledo, José Bonifácio que começaram a conversar com o Imperador, de modo a que ele depois dissesse o “Fico”, comandasse a Independência, convocasse a Constituinte. Dessa forma, o Brasil se inaugurava não como os países de língua espanhola — separados por lutas sangrentas, formados em campos de batalha, que se dividiram desde o tempo em que Bolívar pensou na Grã-Colômbia —, mas como uma construção do poder político, síntese de todos os poderes.
No Brasil, conseguimos construir nossa História com um espírito de conciliação que nos une sempre nos momentos de dificuldades.
Enfrentamos a abdicação do Imperador, a maioridade, o Ato Adicional, a questão da escravatura. Chegamos, finalmente, à República. Republicanos e monarquistas uniram-se para encontrar a saída para o País. Foi assim sempre, e isso explica a unidade nacional. O Brasil só é esse continente, só se manteve unido, porque os homens públicos brasileiros — essa construção política do Brasil — souberam manter o País na sua integridade.
Naquele momento, a História tinha colocado todo esse peso da tradição brasileira num homem, Tancredo Neves, que dizia: “Eu sou um conciliador.”[3]Essa era a sua essência. É por isso que ele falava muito em Honório Hermeto Carneiro Leão, o Marquês do Paraná, que tinha sido do Ministério da Conciliação. E, até para fazer uma pequena restrição, dizia: “Só não transijo com os princípios.” Era quase aquilo que Gandhi dizia, quando falava dos pecados do mundo: não há penitência sem dor e não há política sem princípios.
Tancredo vinha de uma carreira construída pacientemente, da Câmara de São João d’El-Rey, da experiência mineira, do drama de 1954, da crise constitucional de 1960, da chefia de governo, das dificuldades do governo presidencial de Jango. Trabalhou o fim do regime militar como um oleiro, amassando pacientemente o seu barro. E o fez com o cuidado, a sabedoria e a capacidade em que ninguém o superava. Toda sua vida fora dedicada a encontrar caminhos com as virtudes que só estadistas possuem, paciência, prudência, compreensão, diálogo, sem que isso implique na abdicação de princípios. Ele sabia que nem a revolução nem a sedição iriam derrubar o regime autoritário. A única arma era a competente negociação política.
Em março de 1978, Tancredo tornara-se líder da Bancada do MDB na Câmara. Em novembro, mês em que acabara o bipartidarismo, elegera-se senador. Articulara, então, a criação do Partido Popular-PP, de centro, que reunia dissidentes do MDB e da Arena, inclusive seu histórico rival Magalhães Pinto. Solução mineira: Tancredo é o presidente e Magalhães, o presidente de honra. Era a tentativa de criar uma opção de poder de centro, democrática, diferenciada da esquerda e da direita radical. No final de 1981, o governo Figueiredo passara o voto vinculado e abatera o PP que, então, reagira e se fundira com o PMDB.
Eu declarara, em entrevista dada em 1975, que o Brasil não podia continuar vivendo com uma Constituição outorgada por uma Junta Militar. O Presidente Geisel não gostou. No final de 1978, fui Relator da Emenda Constitucional que extinguiu o AI-5 e os outros atos institucionais.
Eleito governador de Minas em 82, Tancredo assume, em março de 83, e prossegue a luta pela redemocratização. “O primeiro compromisso de Minas é com a liberdade.” (COUTO, 2015 p. 314)“Liberdade é o outro nome de Minas.”(Ibidem) Então, age no Congresso, na imprensa, na prática permanente do diálogo e da conciliação. No governo de Minas, acerta com Aureliano Chaves o Acordo de Minas: se um dos dois saísse candidato a presidente, o outro apoiaria. Participa da campanha por eleições “Diretas Já” para presidente no início de 84. Prega a união nacional. Trabalha exageradamente e diz com ironia a frase de Assis Chateaubriand. “Para descansar, tenho a eternidade.”
No Senado já há muito tempo eu, Petrônio Portella, Marco Maciel, Teotônio Vilela, Daniel Krieger, Luís Viana Filho, Nelson Carneiro, Nilo Coelho, Marcos Freire, Franco Montoro e muitos outros constituímos um grupo que silenciosamente fazia a conspiração de encontrar uma saída para a restauração democrática. Em 1984 apareceu essa oportunidade. E a solução Tancredo Neves surgiu. Ele, com apoio de amplo espectro ideológico, compõe, costura e aglutina as forças de oposição e dissidentes do governo — como Aureliano Chaves, Marco Maciel, Antônio Carlos Magalhães, Jorge Bornhausen, Guilherme Palmeira, eu próprio e muitos outros — e sai candidato à Presidência no Colégio Eleitoral. Tece engenhosa articulação dentro do PMDB. Une os diversos grupos e correntes, rompe resistências no seu partido, recebe a adesão do Grupo Autêntico, atrai o apoio de Ulysses. Dialoga com setores do governo, vai à sociedade civil, conversa com as lideranças militares, quebra resistências, vence manobras políticas. Faz vibrante campanha por todo o País, recebendo a aprovação direta do povo nas ruas e praças, sempre com a bandeira da conciliação nacional, sem revanchismo, como saída para o impasse e a crise.
Transige e negocia. Transforma a energia política da campanha das “Diretas Já” em combustível da vitória no Colégio Eleitoral. Faz impensável engenharia política. Coerente, é sempre o moderado fiel à liberdade. Prega mudanças, promete a convocação de assembleia nacional constituinte, pede união e condena o sentimento de represália. O projeto é a democracia. Tranquiliza todos, militares e civis. Faz o que adora fazer: política. A grande política.
Do meu lado, passei por momentos difíceis. Coube a mim conduzir a criação do PDS, Partido Democrático Social, inserindo no multipartidarismo as forças que vinham da Arena. Procurei construir um partido moderno, com uma estrutura de democracia interna. Não tardou a surgir a discussão, precoce, das candidaturas à Presidência da República. Em torno a Paulo Maluf formou-se uma máquina de cooptação. Resolvi, em acerto com o Ministro Leitão de Abreu, fazer prévias eleitorais. Como elas tendiam para Aureliano Chaves, o Presidente João Figueiredo acertou-se com Maluf para desfazê-las. A partir de então não tinha espaço no partido. Resolvi deixá-lo. Fui seguido por um grupo expressivo, que se reuniu na Frente Liberal, representando uma parcela expressiva do Colégio Eleitoral, com votos mais do que suficientes (mais de 50) para assegurar o destino da eleição[4]. Formou-se então a Aliança Democrática.
No dia 15 de janeiro o Colégio Eleitoral, reunido pela última vez, elegeu Tancredo Neves por 480 votos a 180.
A Tragédia de Tancredo Neves
Como uma tragédia grega, Tancredo Neves lidera o final da transição política convivendo com doença que, sem dúvida, só ele sabe ter. Luta contra o tempo: receia crise político-militar de desenlace imprevisível caso não resista até ser empossado. Seria o comprometimento do projeto democrático, da Nova República. Estava informado de que o presidente Figueiredo não daria posse a mim, o Vice-Presidente eleito. Luta desesperadamente contra o tempo, sofre. Confere seu esquema militar de apoio à transição. A doença se agrava e, com ela, o temor de crise e de retrocesso político. Decide correr o risco de perder a própria vida. Imolação?
Depois de 51 anos de vida pública, a dor implacável a quinze horas da posse na manhã de 15 de março de 1985. A internação, a indicação cirúrgica e sua tenaz resistência. Não admite ser operado antes da posse.[5]Aos médicos resiste, luta, implora: “Eu peço, pelo amor de Deus: me deixem até amanhã e depois de amanhã façam de mim o que vocês quiserem. Mas eu tenho uma obrigação. É um compromisso que eu tenho. Eu sei, de fonte fidedigna, que o Figueiredo não dá posse ao Sarney.” No hospital, sua preocupação não é a saúde. É o País. É a conclusão da transição. Diz a Dornelles: “Não me operarei, o Figueiredo não transmite o poder ao Sarney.” Dornelles, no interesse de sua saúde, diz-lhe que acaba de estar com o Dr. Leitão de Abreu e que o Presidente vai transmitir o governo.
Então, aceita a decisão de ser operado. Sua longa operação rompe a madrugada até a manhã. Ao acordar da anestesia, sua preocupação é com a transição. Suas primeiras palavras: “Então, como foi? O Sarney tomou posse? Correu tudo bem?”
Ele sabia o que custara chegar àquele instante. Se ele aceitasse hospitalizar-se dias antes, a transição não ocorreria. O problema institucional estava implantado. Por isso, no silêncio da sua dor, com as mãos frias que tantas vezes apertei, havia o sofrimento.
A dor sem fim da família. O exemplo superior de amor e dedicação de Risoleta Guimarães Tolentino Neves.
O líder é aquele que consegue harmonizar vontades, unificá-las com determinado e altruístico objetivo. Liderar não é uma tarefa solitária; ela necessita de adeptos, de coadjuvantes, de coautores e de seguidores. Tancredo liderava líderes e, nesse nível, como dizia Guimarães Rosa em relação à vida, liderar é muito perigoso.
Ele corria esse perigo permanentemente, até mesmo porque essa atividade política é feita num terreno de vaidades, interesses, frustrações, inveja, ciúmes e todos os pecados capitais do exercício de comandar.
Ele caminhou até o fim. E até o fim foi fiel ao povo brasileiro.
Minha grande missão, da qual tenho profundo orgulho, foi a de administrar o legado de Tancredo Neves. Ele foi a minha inspiração. Nada fiz sem pensar no que ele faria.
Afonso Arinos resumiu, brilhantemente, a frase que o definirá perante a História: “Há homens que dão a vida pelo País. Tancredo deu mais, deu a morte.”(COUTO, 1995 p. 314)
Os Mandamentos da Governabilidade
Os regimes de exceção sempre são transitórios. A democracia se afirmou como o único sistema capaz de resistir às crises.
Os autoritarismos matam tudo, mas não matam a liberdade, porque esta não morre. As ditaduras, por uma boa lei inexorável, trazem em seu seio o gérmen da própria destruição. Elas não são eternas. A resistência logo surge, a curto, médio ou largo prazo, e, ainda que com um custo alto de sofrimentos, sairá vitoriosa. Voltam os direitos, volta a liberdade. Instala-se o chamado processo de transição, que é sempre um período difícil, instável, de exigências irracionais, de miastenia nas instituições que se criam novamente.
Oscila a sociedade entre o caos e a ameaça da força, cuja sedução é permanente. Os iluminados creem que chegou a hora de que se realizem as utopias, e os niilistas disparam em todas as direções. O poder assim constituído, devido a sua própria estrutura heterogênea, necessária à vitória, não tem meios nem condições de atender aos anseios que ele mesmo criou; a ausência de apoio político sólido não lhe permite dar respostas à crise econômica e social que sempre acompanha o processo e o alimenta.
Destapou-se a panela que ferve e lança fumaça e calor. A sociedade entra em ebulição. Reivindicações impossíveis são apresentadas sob o manto da viabilidade. Greves, violências, contestações, invasões, conspirações, indisciplina social, enfim, o fermento do excesso de crise, como dizem os franceses.
A administração pública se torna vulnerável à chantagem, à corrupção e à ineficiência. O governo se vê imobilizado pela própria dinâmica da instabilidade do período. Suas energias são destinadas a conter o pior. A demagogia adquire foros de seriedade. Propõem-se soluções impossíveis para problemas sem solução. Personaliza-se a responsabilidade. As ameaças mais próximas são o golpe de estado ou a revolução salvadora. Se isto chega a suceder, tudo começa novamente, num círculo vicioso. As transições têm de olhar os fantasmas do retrocesso e da ingovernabilidade.
Falamos de transição como um período nitidamente definido, da saída do autoritarismo para a democracia. É, basicamente, um fenômeno posterior aos anos 70, com a tendência mundial do colapso dos regimes autoritários. A partir de então adquiriu firmeza e dinâmica própria.
Talvez o primeiro caso tenha sido o de Portugal, em 1974, com a revolução dos Cravos; em seguida vieram as transições de Espanha, Grécia e Turquia. Ao contrário dos países que consolidaram liberdades públicas, houve os exemplos negativos das Filipinas e da Coreia do Sul.
Depois, coube à América Latina a maior onda de democratização do mundo, desde a Segunda Guerra Mundial: Argentina, Brasil, Uruguai, Peru, Bolívia, Paraguai, Chile, Nicarágua.
No mundo socialista, do mesmo modo, o autoritarismo se desmoronou. A China se liberalizou com a política de economia socialista de mercado, expressão que somente a estrutura mental de sua contradição é capaz de entender perfeitamente.
Na Europa, a Polônia, a queda do Muro de Berlim, que é um símbolo como a queda da Bastilha, originando a unificação da Alemanha, e, com a chamada ‘Revolução de Veludo’, na Tchecoslováquia, o desmoronamento do resto da Europa Oriental e a desintegração da União Soviética.
É necessário distinguir, na transição, dois períodos. Um, a restauração da democracia, outro, a consolidação da democracia. Em conjunto, a maior onda de democratização do mundo depois da Segunda Guerra Mundial.
A primeira lei da transição é a sobrevivência. Conduzi-la significa sempre um grande risco. O exemplo mais significativo é o de Adolfo Suárez, líder de uma das mais difíceis de todas as transições. Até porque foi pioneira. Depois Mário Soares teve grande êxito. Mas sofreu momentos de morte e ressurreição. A do Brasil é considerada de todas a mais exitosa pelo brazilianista Ronald Schneider, que escreveu um livro em que destaca a minha atuação e analisa:
[Sarney] foi talvez o mais bem-sucedido de todos os chefes de executivo empossados após períodos de autoritarismo (em escala mundial), a maioria dos quais teve experiências altamente decepcionantes, deploráveis ou mesmo quase desastrosas. (SCHNEIDER, Por publicar p. v)
Na etapa da restauração, o perigo do retrocesso é sempre uma ameaça. Porém é justamente neste período que surgem as disputas para a etapa de consolidação da democracia, pois se pensa que o período de implantação já ocorreu e tende-se a estimular as dificuldades, visando a ocupação de espaços futuros. Nessa luta se trata de bloquear a governabilidade, adota-se a teoria da crise, para se beneficiar dela, e mantem-se o país sob pressão. Como exemplo, enfrentei doze mil, cento e trinta e nove greves.
Temos na transição de lutar constantemente com os contestadores e baderneiros que ameaçam a estabilidade.
O ideal, a utopia a buscar, é lograr um consenso para um pacto, ou seja, uma agenda positiva que obtenha a adesão de todos.
Falar de todos não é o mesmo que falar de unanimidade, coisa impossível de obter-se, mesmo porque existe o conceito de que todas as unanimidades são finalmente sinal de pouca inteligência. Já unidade é conceito completamente distinto. É união de propósitos firmes, amparada sobre uma maioria ampla.
Agenda positiva ou pacto capaz de delinear um rumo e fazer com que todos se unam em seu redor.
Partir de consensos menores, na etapa inicial, para evitar impasses de maneira a que se possa chegar aos temas mais completos.
Sentar à mesa para discuti-los sob o império de uma lei: nunca pedir aquilo que seus interlocutores não estejam em condições de poder aceitar. Senso de realidade, para com isso obter confiança. Idealismo e determinação.
Nesse processo notoriamente o caso mais bem-sucedido foi o ‘milagre’ espanhol.
Resistir às resistências. Fazer o pacto ou acordo aberto a todos, a começar pela sociedade civil, em todos os seus segmentos.
Daniel Krieger, um dos que sempre acreditaram na restauração da democracia, certa vez me contou uma história de prisão, onde estava com o General Flores da Cunha:
— Vitoriosa a nossa causa, vamos imediatamente revogar todas essas leis da ditadura.
— Não — respondeu o General —, vamos aplicá-las aos adversários.
A transição deve ser um tempo de aprendizagem da convivência democrática. É bom repetir uma afirmação de senso comum:
— A democracia é um estado de espírito.
E outra, que nos ensina que a convivência democrática tem duas leis básicas:
— Eu posso estar errado. Não sou o dono da verdade.
Nenhuma solução pode ser totalmente a meu favor, isto é, não pode ser totalmente o que penso, tem que ser uma média de opiniões.
Ter consciência de que a democracia é o governo da maioria, com respeito da minoria, com esprit de minorité, fazendo-a segura de seus direitos e participante das decisões.
Por outro lado, a minoria não pode tentar bloquear o governo, exercitar a teoria da crise, tornando o país ingovernável e paralisado. Como nos tempos atuais não existe a saída da revolução ou do pronunciamento militar, como escapatória política, o preço dessa conduta será pago pelo país, pelo povo, com a paralisação econômica, o agravamento das questões sociais e, como caldo de cultivo desse clima, a perda da autoestima, o desalento, a inconformidade com as instituições.
Nenhum grupo político tira proveito desse clima. Cria-se apenas, por parte da sociedade, a crença de que as lideranças, todas, sem exceção, são incapazes, e os políticos sofrem a amargura do desprestígio e da impopularidade.
Infelizmente, alguns grupos deixam de acreditar na democracia. É necessário convertê-los à governabilidade. Eles são parte do país, são corresponsáveis na decisão e devem crer no melhor princípio do sistema democrático: a alternância de poder. Nela acreditando, ninguém vai lutar pelo caos.
De certa maneira, depois que deixei a democracia institucionalizada, com a prática das eleições periódicas, a busca de justiça social, o Brasil retornou a seu período de transição, prolongando-o, e seus defeitos, agravados pelas falhas da Constituição de 1988, até hoje estão presentes.
A Transição DemocráticaBrasileira
Muitos Presidentes, na História do Brasil, assumiram com a vocação de serem depostos. Como Deodoro, Bernardes, Getúlio em 1950, Juscelino, Jango, também posso dizer que fui um Presidente que assumiu com todas as condições para não terminar o seu mandato: não tinha um grande partido, não fora a pessoa que compusera o Ministério, não conhecia os programas de governo. Sempre dizia a Tancredo Neves que eu me preparava para ser o Vice-Presidente fraco de um Presidente forte.
Devo dar meu testemunho sobre o desprendimento de Ulysses Guimarães na noite terrível de 14 para 15 de março de 1985 e de sua admirável e histórica importância para restauração da democracia brasileira. Em nenhum momento ele colocou os interesses pessoais ou partidários acima dos interesses da transição. Ele podia, com legitimidade, avocar para si a Presidência da República. Em torno a ele, muitas eram as vozes que propunham essa solução. Convencido de que a Constituição e o processo indicavam meu nome, foi o primeiro a insistir comigo, a me dizer que era o meu dever tomar posse.
De repente, naquela noite, às 3 horas, o General Leônidas Pires me telefonou dizendo: “Às 10 horas, o senhor vai assumir a Presidência da República.”
Pensem o que é, para uma pessoa de responsabilidade, assumir a Presidência da República, com todas aquelas fragilidades! Meus olhos estavam voltados para o futuro e eu perguntava: o que vai acontecer? O que vamos ter? O que vai acontecer comigo? O que o destino quer fazer comigo? Por que me trouxe de tão longe para, neste momento, desafiar a minha capacidade? Porque ao assumir a Presidência, assumia o cargo, mas o poder passou para a mão de Ulysses, pela sua importância política, Presidente do PMDB e da Câmara dos Deputados, além de símbolo que encarnava de sua luta e liderança.
Fui quase que levitando jurar a Constituição. Foi um momento que jamais esquecerei na minha vida e que me marca profundamente. Foi obra coletiva, foi obra de Ulysses, foi obra de Tancredo, porque Tancredo dava o exemplo.
Quais foram as minhas dificuldades? Sempre pensei que eu precisava me legitimar e, muitas vezes, conversei sobre isso. Ninguém pode ser Presidente da República sem ser legítimo. Tracei um plano estratégico de como devia conseguir essa legitimidade. Não fui no escuro. Eu não estava no meio dos acontecimentos como se fosse levado por eles.
Em primeiro lugar, eu tinha de abrir totalmente o País, fazer um pacote político no qual todos os espaços nacionais fossem abertos às forças que emergiam da clandestinidade, dos partidos políticos que estavam banidos. Acabei com as eleições indiretas imediatamente, convoquei a Constituinte e eleições para novembro. Pensaram: “Que coisa mais absurda começar um governo com essas dificuldades e convocar eleições para novembro!” Mas eu pensava que deveríamos abrir espaços para, em vez de violência e gente procurando se afirmar pela força, termos a liberdade florescendo, e para que o País pudesse, respirando esses ventos da liberdade, encontrar-se com seu destino e sua construção.
Meu grande receio, e tinha fundadas razões para assim pensar, era o surgimento do terrorismo, que nascia com grande força em todo o mundo, sobretudo em lugares onde se fechavam opções políticas para determinados líderes e algumas tendências.
O Brasil que recebi não era mais uma ditadura, porém estava longe de garantir o pleno exercício da democracia. O mundo estava cheio de exemplos de transições traumáticas, como em Portugal e na Grécia, para não me referir aos sucessivos abortos institucionais na América Latina. Os próprios processos argentino, chileno e uruguaio preocupavam, pois foram feitos comhipotecas militares. Não era possível resolver tudo ao mesmo tempo. Tancredo tinha um projeto cauteloso de transição. Mas ele chegava ao poder com um cacife político extraordinário, uma verdadeira federação de apoios populares. Podia, portanto, estabelecer prioridades tanto na política como na economia. Eu, não. Eu chegava desamparado à Presidência, numa verdadeira armadilha do destino.
Para legitimar o meu governo, eu tinha de buscar um caminho próprio, que me levasse diretamente à opinião pública. Mostrar que eu tinha intenção e estrutura para comandar a transição. Eu resolvi, então, abrir todas as portas à liberdade. Correr o risco de ampliar espaços e estabelecer uma sociedade em condições de retomar a prática da liberdade em todas as dimensões de seu cotidiano. É claro que essa decisão tinha seus custos: 12 mil greves, imprensa com total independência e sequiosa de testar seus limites — que, como se viu, eram ilimitados. Legalizei logo o Partido Comunista e convoquei a Constituinte unicameral. O objetivo era claro: romper os bolsões de pressão, criar espaços onde a energia para a contestação fosse liberada. Era o caminho da minha legitimação. Quem melhor compreendeu essa estratégia foi o PT, que aproveitou esses espaços para se consolidar, enquanto os partidos de talhe tradicional disputavam posições de governo em vez de apoiá-lo em um programa e pacto para a transição.
O primeiro dever do Presidente é permanecer no poder e legitimar-se. Esta tarefa era difícil. Alguns ministros nem no olhar me poupavam de saber que não me aceitavam nem por mim tinham simpatia. Foi uma tarefa árdua avançar pouco a pouco, incutir-lhes a certeza de que não estavam lidando com quem não sabia nem previa o que estava acontecendo e o que seriam agora suas responsabilidades.
As Forças Armadas eram a única Instituição capaz de exibir uma posição de força. Só elas têm planos estruturados para uma emergência de crise. As Forças Armadas sempre têm programas para evitar o caos. Naquele momento, elas ainda eram as fiadoras do processo político. Essa foi outra área na qual tivemos o mais absoluto êxito. O que ocorria? Os militares ainda tinham grandes reservas, estávamos saindo de um regime difícil. Então, tive a oportunidade de chamá-los e de estabelecer com eles duas regras, com as quais conseguimos governar. Eles voltaram aos quartéis, profissionalizaram-se e mantiveram as Forças Armadas baseadas na Constituição e na lei, como estão até hoje. Foram as seguintes as regras, das quais o General Leônidas foi um dos principais interlocutores: primeiro, a abertura tinha que ser feita com as Forças Armadas, e não contra as Forças Armadas — e, com isso, evitamos a luta que podia ser desencadeada. Em segundo lugar, chamei todos os comandantes e disse: “Se sou o Comandante em Chefe, o dever de todo comandante é zelar pelos seus subordinados. A partir de hoje, os senhores não precisam mais fazer notas em ordem do dia, falando indiretamente, sobre qualquer assunto” — como sistematicamente se fazia. “Quem fala em nome das Forças Armadas sou eu e serei o seu maior defensor.”
Com isso, atravessamos um período em que não tivemos uma prontidão militar sequer; não tivemos qualquer insubordinação. Assim, foi possível que as Forças voltassem aos quartéis. Demos recursos para que pudessem trabalhar, modernizaram-se e hoje estão integradas à vida nacional, integradas ao poder político, que é a síntese de todos os poderes.
Um terreno estava à margem da disputa política: a política externa. Concentrei-me nela. Iniciei a prática da diplomacia presidencial amparada por um projeto coerente: o da afirmação de nossa soberania e de nossa inserção na América Latina. Avançamos muito. Firmamos a adesão do Brasil ao Convênio contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes. Criamos, por iniciativa do Brasil nas Nações Unidas, a Zona de Paz do Atlântico Sul. Iniciei, junto com o Presidente Alfonsín, o Mercado Comum Latino-Americano com o programa de integração com a Argentina e o Uruguai — depois o Mercosul —, e aberto a todo o continente. Promovemos iniciativas bilaterais com os países amazônicos para defesa do meio ambiente. Reatei relações com Cuba. Visitei os EUA, mas também a Rússia e a China. Por três vezes falei na abertura da Assembleia das Nações Unidas. Realizei duas grandes e importantes reuniões históricas neste País, com presidentes do mundo inteiro. Lembro da reunião realizada em São Luís, com presidentes dos oito povos de língua portuguesa, que gerou a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a CPLP. Lembrotambém a reunião que realizamos em Manaus, de sete presidentes de todos os países da Bacia Amazônica. Tivemos participação ativa no Grupo dos Oito, que ajudamos a fundar. Lutamos nos organismos internacionais por um tratamento político da dívida. E tudo fizemos para que o País pudesse caminhar num tempo de grandes dificuldades, que não foi um tempo somente nosso, mas de todo o mundo que assistia naquele instante a grandes transformações.
Deixei o Brasil escolhido pela ONU para sediar a 2ª Conferência Mundial do Meio Ambiente. Para isso, tivemos que mandar o Ministro de Relações Exteriores em visita a quase todos os países, pedindo que essa Conferência do Meio Ambiente fosse realizada no Brasil, o que afinal se concretizou em 1992, com grande repercussão mundial.
Mas o maior de todos os feitos que realizamos, de grande valor para a sobrevivência da humanidade, foi termos, Brasil e Argentina, banido a corrida nuclear da América do Sul. Sempre tive a convicção de que não há maior perigo para a existência da humanidade do que os artefatos nucleares, que podem destruir toda a vida no Planeta.
O Presidente Alfonsín e eu vencemos as resistências de setores das Forças Armadas dos nossos países que já estavam voltados para a busca da produção de artefatos nucleares. Isso foi feito sem o envolvimento das grandes potências, sem os traumas e as dificuldades enfrentadas em outras regiões, como no caso da Índia e do Paquistão, que terminou com nuclearização dos dois países, e, atualmente, nas crises nucleares do Irã e da Coreia do Norte.
É bom ressaltar o patriotismo e a visão do problema mundial que tiveram nossas Forças Armadas, compreendendo a necessidade de nos afastarmos desses caminhos; sem elas, era impossível que o fizéssemos. Considero esse fato, que passou ao largo das discussões políticas da transição, como o mais importante do período, como a maior conquista do Brasil em favor da humanidade.
Na busca de legitimidade econômica, fomos ver o que se tornaria o Plano Cruzado. Mandamos Pérsio Arida a Israel para procurar saber o que estava sendo feito lá, na busca de um plano econômico não ortodoxo, mas heterodoxo. Eu sabia que não poderia fazer um plano ortodoxo, nem seguir nenhuma norma de conduta de cartilha internacional. Se o fizesse, iria optar pela recessão, pelo desemprego, pelo atraso. Recusei esse caminho. Era o mais curto para a minha deposição.
Partimos para o Plano Cruzado, sabendo de todas as dificuldades. Não iniciei o Plano Cruzado sem saber os riscos que correríamos. Lembro-me da noite em que nos reunimos, quando eu disse: “Sei, perante todos os senhores, que estou colocando a minha cabeça na guilhotina, mas temos de ter ousadia. Vamos ousar! Vamos tentar romper essa barreira para tentar dominar a inflação!” Foi o começo de tudo. Sem o Plano Cruzado jamais dominaríamos a inflação. Foi o rompimento da ortodoxia.
A inflação não foi uma invenção minha, nem do meu governo. O Figueiredo já deixou a desvalorização da moeda perto dos 300% ao ano. No final de meu governo a economia sofreu como nos meses que antecederam o governo do Presidente Lula. A inflação subiu de 5%, em março de 1989, quando começou a campanha eleitoral, para 82%, em março de 1990. Essa inflação não foi minha. Era fruto da expectativa do futuro governo.
Posto muitas vezes diante da alternativa da recessão, minha opção pessoal foi de indexar os salários, corrigindo-os mensalmente. A correção mensal porque era o colchão no qual se apoiavam os assalariados para diminuir o impacto da inflação. Fala-se em inflação com correção monetária e em inflação sem correção, como se fossem a mesma coisa. São coisas impossíveis de comparar. Uma inflação de 6% ao ano sem correção monetária, como vinha ocorrendo com o salário do funcionalismo, é mais corrosiva do que a de 80% ao mês daquele tempo, corrigida mensalmente. Pergunte a qualquer trabalhador, com mais de 35 anos, o que ele acha das duas situações. O desemprego caiu de 8% para 2,36% — o menor de nossa História. E qual foi a inflação real em meu governo? O dado é da consultoria Tendências: a inflação em dólares foi de 17,3%.
Cometemos erros e acertos. Reconheço muitos erros que cometi. Mas também tivemos muitos acertos.
Aqueles não foram anos em que o Brasil se atrasou. Muitas vezes se diz que foram anos perdidos. A década de 80 não foi perdida. Se separarmos os períodos de 1980 a 1985 e de 1985 a 1990, verificaremos que, de 1985 a 1990, obtivemos números na economia que até hoje não foram superados no Brasil. Naqueles cinco anos, crescemos 119%[6]no nosso PIB; chegamos a ter o terceiro saldo exportador internacional, depois do Japão e da Alemanha. A renda per capita— tratando sempre de desempenho econômico —, cresceu 98%[7]. Isso demonstra que aquele não foi um período de paralisação. Ao contrário, o Brasil avançou, e muito, durante aquele período.
Enfim, saí do governo consciente de que ninguém, naquelas circunstâncias, teria mais desejo de acertar do que eu tive. Por exemplo: o déficit primário do Tesouro, em 1984, foi de 2,58% do PIB e, quando saí, deixei um superávit primário de 0,8%. Buscávamos o equilíbrio.
Vejamos outros dados:
A dívida externa passou de 54% para 28% PIB.
Na energia elétrica, a produção cresceu 24,1%; o número de consumidores cresceu 22,3%; os investimentos foram da ordem de 29 bilhões de dólares.
Passamos do oitavo para o sétimo lugar em economia industrial no mundo.
No petróleo, passamos de 2,7 bilhões de barris para 8 bilhões.
Tivemos três safras agrícolas recordes, passamos de 50 para 70 milhões de toneladas de grãos.
Em estanho, com 400 mil toneladas, passamos a ser o maior produtor do mundo.
Em manganês, multiplicamos por 4 nossa produção, chegando a 810 mil toneladas.
A Siderbrás passou de quinto para segundo maior grupo siderúrgico do mundo.
Passamos de oitavo para sexto maior produtor mundial de aço.
Nosso desafio passava por uma modernização da administração pública. Melhorei a eficiência do serviço público, dando aumentos reais ao funcionalismo, além do 13osalário. Criei a ENAP, a Escola Nacional de Administração Pública, seguindo o modelo francês, na tentativa criar uma carreira geral do serviço público, e começamos a implantar a isonomia salarial.
Extinguimos a conta de movimento do Banco Central no Banco do Brasil, unificamos totalmente o Orçamento Geral da União, com a inclusão de todas as despesas de natureza fiscal, inclusive as realizadas pelo Banco Central e pelo Banco do Brasil, como as operações de crédito rural, criamos a Secretaria do Tesouro Nacional. Criamos o Siafi, abrindo as informações sobre o Orçamento.
Abrimos o País para a modernidade. Houve conquistas extraordinárias na área da ciência e da técnica. Dominamos a tecnologia de enriquecimento do urânio, da água pesada, da grafite nuclear, dos lasersde alta potência, do radar, das fibras de carbono, das fibras óticas. Estimulamos a formação de recursos humanos em massa nos grandes centros de excelência do mundo. Demos mais de 113 mil bolsas de ensino superior, mais que o total dos 33 anos de existência anterior do CNPq.
Reformulamos a política nuclear, redimensionando-a, adequando-a às reais necessidades e possibilidades do País. Lançamos as bases para uma política de química fina e biotecnologia.
Na área dos transportes, foram restaurados 11 mil e 700 quilômetros de rodovias, pavimentados 4 mil e 508 quilômetros de estradas vicinais e executados mais de 7 mil e 100 quilômetros de revestimento primário. Passamos de 7 para 12 mil o número de postos de correio.
Houve um aumento de mais de um milhão de hectares da área irrigada, o que significa a ampliação de 56% do que se fizera até então.
Começamos a reforma agrária. Transformamos o programa em ministério no meu Governo. O nome sugerido era Ministério Extraordinário de Política Fundiária. Eu disse: “Não. Vamos chamar de Ministério da Reforma Agrária, porque essa expressão é maldita; temos de colocá-la na ordem do dia do Brasil.” Desapropriamos 4 milhões e 500 mil hectares, além da regularização fundiária de 4 milhões e 300 mil hectares, 10 vezes mais do que havia sido feito nos últimos 21 anos, desde a criação do Estatuto da Terra. Foram mais de 200 mil famílias beneficiadas.
O meio ambiente, o futuro do homem na face da Terra, a proteção da natureza passaram a ser prioridade e um tema dominante em nossas preocupações. Criamos o programa Nossa Natureza e o Ibama. Criamos 6 milhões de hectares de reservas ambientais.
Até nosso governo, desde Rondon, haviam sido demarcados 12 milhões de hectares de reservas indígenas; nós demarcamos 32 milhões de hectares.
Com o Programa Calha Norte, livramos a Amazônia do narcotráfico, do contrabando, do refúgio das guerrilhas, protegemos as populações e transformamos fronteiras mortas em fronteiras vivas.
Administrar, no Brasil, era sempre tratar de infraestrutura, dos grandes problemas de construção. A partir dali, colocamos a área social em evidência, e daí o nosso lema ‘Tudo pelo social’.
Transformei a Presidência numa grande gerência de programas especiais de combate à pobreza. Mandei pesquisar e identificar, município por município, quais as dificuldades mais prementes sofridas pela população. A mais radical diminuição da pobreza, no Brasil, ocorreu durante o meu governo. Por causa, evidentemente, dos programas de ação comunitária de ação direta, sem intermediação política ou administrativa. Vinte e seis milhões de pessoas foram beneficiadas com o vale-transporte; 18 milhões de beneficiados, diariamente, com o vale-refeição; 7,6 milhões de famílias atendidas diariamente pelo programa do leite; 11 milhões de crianças, gestantes e nutrizes no programa de alimentação suplementar; 2 milhões de crianças nas creches casulos; 50 milhões de estudantes e 8 milhões de irmãos de estudantes atendidos pela merenda escolar, que passou de 140 para 260 dias; e assim por diante. A farmácia básica da Ceme atingiu 50 milhões de pessoas com seus 44 medicamentos. A mortalidade infantil foi reduzida em 41% graças ao programa de saúde na comunidade. Foram mobilizados 230 mil voluntários nesses programas…
Criamos a universalização da saúde. Antes, no Brasil, o excluído — essa é a palavra que designava o trabalhador que não tinha carteira — não podia tomar uma injeção. Só podia recorrer às Santas Casas. A partir daquele tempo, criamos a universalização da saúde, o direito à saúde e o direito à assistência médica.
Nós, por um sistema de liberdade e de capilaridade, conseguimos que a sociedade brasileira como um todo se tornasse democrática. Abriram-se os sindicatos, abriram-se as universidades, abriu-se a imprensa, abriram-se todos os clubes de associações de bairros. Ninguém tinha medo, e o Brasil tornou-se uma sociedade democrática.
Esse o legado da transição de que fui o executor. Um legado de irmos além de restituir instituições democráticas.
As forças políticas brasileiras foram capazes de atravessar um período histórico dos mais difíceis para que o País começasse uma nova vida e um novo momento. De tal modo que, já em 1989, tínhamos um candidato à Presidência da República que era operário e que quase ganha a eleição. Chegou muito perto do primeiro colocado. Por quê? Porque a sociedade havia mudado. Se a sociedade não tivesse mudado, isso não existiria; sem a conquista da liberdade, isso não ocorreria; sem a conquista do social, isso não seria possível. E, quando se fala em construção das elites, vamos verificar que as elites, em especial as políticas, participaram juntas na construção dessa sociedade democrática. Cito esses dados porque acredito que se não tivéssemos tido esses êxitos a transição não teria se realizado. A falta de apoio político, com a deserção dos partidos que me apoiaram, os esconderam da discussão política e da sucessão.
A Assembleia Nacional Constituinte
Não há instituições que durem mais do que as circunstâncias que as tenham estabelecido, mas a aspiração de todo constituinte é que a Constituição que faz dure mais do que suas vidas e seja um documento permanente.Vivíamos em tempos de mudanças, e os homens, ao transformarem a natureza, transformavam-se também, reclamando novas normas de convívio social.
A convocaçãoque enviamos ao Congresso Nacional correspondia às circunstâncias políticas. Não há normas que determinem o modo de convocar-se poder constituinte; para os que a promulgam, a Constituição será sempre documento com intenção duradoura.
Pretendíamos que a Constituinte fosse um marco seguro no caminho da conciliação.
Atradição brasileira não era a da constituinte exclusiva, mas da simultaneidade de funções constituinte e legislativa: 1823, 1890, 1946. As constituições de 1824 e 1969 haviam sido outorgadas; a de 1967, formalmente aprovada pelo Legislativo em sua função constituinte. A Constituinte de 1933 foi a exceção, já numa antevisão das intenções do Presidente. Dar Poder Constituinte para os eleitos em 1986 era o melhor caminho para facilitar e estimular o debate político em torno do Estado. Era uma circunstância que favorecia a Nação. Não iríamos votar uma Constituição às pressas, com um poder constituinte escolhido no açodamento.
Ninguém mais criador que o povo. O debate amplo, que já se realizava de norte a sul do País, deveria conferir representação mais autêntica aos delegados constituintes.
O que faz a autenticidade das constituições não é a forma de convocar-se o Colégio Constituinte: é a submissão do texto fundamental à vontade e à fé dos cidadãos. Essa vontade e essa fé, para que se manifestassem, reclamavam discussão franca e serena reflexão.
De acordo com o compromisso que assumira Tancredo Neves, convoquei um ilustre grupo de homens, sob a presidência de Afonso Arinos — cujo pai, Afrânio de Melo Franco, presidira a Comissão do Itamaraty, para fazer o anteprojeto da carta de 1934 —, para encarregar-se de oferecer subsídios à Assembleia Nacional Constituinte. A comissão não substituía o Congresso, não se reuniria para ditar aos constituintes que textos deviam aprovar ou não. O aproveitamento de suas sugestões seria obra da Constituinte em sua indelegável soberania.
O Congresso Nacional aprovou a convocação da Constituinte em 28 de novembro de 1985. Em setembro do ano seguinte a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais entregou-me seu relatório, o Anteprojeto que pouca influência teve na Constituição de 1988. Um detalhe, entretanto, cabe mais uma vez explicitar: não o enviei à Assembleia Nacional Constituinte, mas não o fiz porque tive o veto explícito de Ulysses Guimarães, que me disse que não o receberia. Pensava assim resguardar a Constituinte de acusações de ser conduzida pelo Governo? Mas ele sabia que o trabalho fora feito sem a mínima interferência de nossa parte.
Ulysses dizia com muito orgulho que, durante a Constituinte, pelo Congresso passaram cerca de dez milhões de pessoas. E eu, num comentário meio jocoso, dizia:
— Ulysses, vamos recordar que a Constituição que tem mais de 200 anos, que é a Constituição americana, foi feita por cinquenta e cinco pessoas. E, se nós temos dez milhões, nós vamos ter, sem dúvida, uma Constituição que nos dará apreensões ou pode nos dar grandes alegrias.
Pois a Convenção de Filadélfia nos deu também outros exemplos. O primeiro é esse: ela começou com o Projeto de James Madison, e o foi modificando até chegar à forma final. O fez, também, de uma maneira que hoje seria anátema, mas tem a seu favor o resultado alcançado em 4 meses, sem crises adicionais: em sigilo total.[8]
A Constituinte sofreu de debates laterais, que tinham fins políticos, como a ideia de afastar-me do Governo. As várias tentativas só trouxeram desgaste para a Assembleia e o País, e deixaram como marca a fake news de que consegui mais um ano de mandato. Na realidade, em maio de 1987, abri mão de um ano, dos seis para os quais fora eleito, para os cinco que eram possíveis: com um mandato de 4 anos, a Constituição seria atropelada pela campanha eleitoral que se realizaria, neste caso, em 1988.
Não interferi nos trabalhos constituintes. Entretanto, em julho de 1988, ao iniciar-se o segundo turno dos trabalhos, achei que devia colocar, perante a Nação, alguns pontos que me pareciam preocupantes no projeto. Disse eu então:
Primeiro: há o receio de que alguns dos seus artigos desencorajem a produção, afastem capitais, sejam adversos à iniciativa privada e terminem por induzir ao ócio e à improdutividade.
Segundo: que outros dispositivos possam transformar o Brasil, um país novo, que precisa de trabalho, em uma máquina emperrada e em retrocesso. E que o povo, em vez de enriquecer, venha a empobrecer; e possa regredir, em vez de progredir.
Em suma: os brasileiros receiam que a Constituição torne o País ingovernável. E isso não pode acontecer.
O País sabe que nós não dispomos de recursos suficientes para atender a todas as necessidades e finalidades do Estado.
A futura Constituição, aprovados esses dispositivos, agrava o quadro ao determinar uma perda de receita próxima de 20% já em 89. No plano interno, em valores de junho deste ano, os impactos diretos e imediatos sobre o orçamento geral da União ultrapassam dois trilhões e 200 bilhões de cruzados — cerca de 12 bilhões e 600 milhões de dólares. Este número representa o dobro do que sobra à União na arrecadação do IPI e do Imposto de Renda, ou duas vezes os programas federais, estaduais e municipais de saúde. Ou 32 anos de programa de distribuição gratuita de leite. Ou, por fim, o dobro do déficitorçamentário da União este ano.
A situação da seguridade social é igualmente difícil. Muitos dos seus gastos não podem ser avaliados. Mas a parte calculável permite estimar custos adicionais da Previdência em mais de um trilhão de cruzados por ano (5,6 bilhões de dólares). […]
Eu não estou pensando no meu Governo. Ele será o menos atingido. O que eu estou pensando é no País, no futuro, nas dificuldades dos governos futuros, que não terão condição nenhuma de conduzir esta grande Nação, como nós desejamos que ela seja conduzida.
Como Presidente, eu tenho de visualizar o que é permanente, não o que é transitório. Tenho que enxergar além do meu mandato e tenho que evitar, na trajetória, que se instalem caminhos inviáveis, inconvenientes ao interesse nacional.
Refiro-me, particularmente, à brutal explosão de gastos públicos decorrentes de benefícios desejáveis, que todos nós desejaríamos atender, mas que infelizmente não temos como atender. Como pagar contas astronômicas sem asfixiar os contribuintes, sem inviabilizar nosso crescimento, sem suprimir empregos, sem conviver com uma superinflação?
O Governo tem três pontos de recursos: as emissões, os impostos e os títulos que lança pedindo dinheiro emprestado do público. São estas as três fontes. E nestas três fontes nós não fazemos milagres, porque elas são limitadas. […]
Quanto aumentaria a despesa pública se fosse promulgado, tal como está, o atual projeto de Constituição?
Esta é uma pergunta que eu faço a todos os brasileiros e a todas as brasileiras.
Sinceramente, tenho que responder que o valor é incalculável. Não há como estimar imediatamente o impacto da maioria das regras que criam o aumento dos gastos. Faltam informações fundamentais que dependem de reações da sociedade aos preceitos, de interpretações múltiplas, ou de dados adicionais relacionados com a futura legislação complementar. […]
Sem revisão profunda, o Brasil que resultaria do projeto, como ele se encontra, seria uma subpotência incapaz de representar-se e defender-se. O País do que poderia ter sido e que não foi. Eternamente promissor mas sem precedentes e, portanto, sem futuro.
Mas não é este o Brasil desejado pelos Constituintes.
Antigo parlamentar, sempre parlamentar, sei que meus colegas de 1987 e 1988 saberão encontrar as fórmulas para neste segundo turno corrigir o que precisa ser retirado do texto constitucional.
Como eu disse, eles são os primeiros que não estão satisfeitos com esse texto. Apresentaram 1.800 emendas, para modificá-lo.
A Constituição tem que ser um instrumento consensual. Um ponto de união. Um instrumento de mobilização e de unidade do País. E não uma fonte de contestação e ao mesmo tempo um instrumento que possa servir para dividir e não para somar.
E não penso apenas nos pontos de interesse da administração.
O Brasil corre também o risco de tornar-se ingovernável nas empresas, nas relações de trabalho, nas famílias e na sociedade.[9]
Na véspera da promulgação voltei a falar aos brasileiros:
A Constituição não deve mais ser discutida. Eu a critiquei, sempre com espírito público, na fase de elaboração.
Amanhã ela será lei. Ela é história. Serei o seu maior servidor. Eu a convoquei. Serei o primeiro a jurá-la. Lutarei pelo seu êxito.[10]
A Constituição de 1988
A Assembleia Nacional Constituinte foi realizada a partir de eleições completamente livres, creio que as mais livres da História do Brasil.
Cumpri o dever, tendo sido votado o primeiro turno, de alertar a Nação sobre os riscos que corríamos. A Constituição estava sendo feita com os olhos voltados um pouco para o passado, um pouco para o lado e bem pouco para o futuro.
Fui o primeiro a jurá-la. Fui o que mais determinação teve em cumpri-la. Estudei-a. Alertei a Nação sobre a ingovernabilidade que seria criada por alguns de seus pontos. Não para o meu governo, mas para os governos que me sucederam. Meu dever era fazer o que estava a meu alcance para viabilizá-la. Foi o que fiz, e me orgulho de ter institucionalizado a democracia que ela definia.
A Constituição de 1988, marcada pela hesitação entre o sistema parlamentarista e o presidencialista, não conseguiu formar um sistema de governo estável. A introdução das medidas provisórias — variante do decreto-lei das constituições autoritárias de 1937, 1967 e 1969 — deu ao Executivo a função de legislar, para sanção do Legislativo. Mas também o fez dependente das maiorias parlamentares — impossíveis de tornarem-se estáveis com a multiplicação dos partidos.
O veto presidencial pode ser, no Brasil, parcial[11]. O resultado disso é que a lei de meios, a lei maior[12], que passou ao longo dos anos da iniciativa do Legislativo para a do Executivo, não representa aquele ponto central em que um poder determina, o outro faz, que é a base do sucesso dos checks and balancesnorte-americanos. Ao contrário, com os 82 dispositivos constitucionais que controlam sua elaboração, inclusive as vedações de emenda, tornou-se um instrumento do Executivo para dominar o Legislativo.
O orçamento passou a ser uma peça de ficção: é votado no Congresso, briga-se e luta-se muito por ele, mas depois ele não é cumprido porque não expressa a realidade da administração das contas públicas diariamente. O esforço que fizéramos no começo de meu governo para unificação do orçamento, acabando com a conta movimento do Banco do Brasil, não frutificou. Tivemos que pensar em torná-lo ‘impositivo’, como se não estivesse implícita esta obrigatoriedade de execução pela sua simples natureza de lei.
A Constituição é muito detalhista, tornando difícil sua obediência. Assumimos compromissos conflitantes. Colocamos na Constituição muita matéria que devia ser regulada por lei ordinária.
Como todas as constituições, tem defeitos e tem virtudes. Ela é excelente na parte dos direitos humanos e sociais. Na mensagem de convocação da Assembleia Constituinte, eu já falava da necessidade de colocarmos os direitos sociais em nível constitucional. É preciso, aliás, estabelecer três pontos fundamentais da nossa História constitucional. Na primeira Constituição, a preocupação básica era a defesa da propriedade. Já na Constituição da República, feita por Rui Barbosa — a Constituinte que menos tempo durou, apenas quatro meses —, a preocupação era a defesa dos direitos individuais. Finalmente a atual Constituição trouxe o relevo dos direitos difusos.
Ela abriu, no entanto, conflitos na competência dos poderes, em sua autonomia e harmonia. Sobrepôs obrigações de Estados e da União. A distribuição de responsabilidades entre os entes federais foi feita em cima de critérios vagos, de modo que o caminho entre receitas e despesas é um emaranhado que freia todas as atividades públicas e ninguém é responsável pelos problemas, que são empurrados de um lado para outro. A extensa parte (196 dispositivos constitucionais) dedicada ao sistema tributário, falhou em torná-lo claro e eficiente, com uma discriminação de rendas equilibrada. Gerou dificuldades econômicas e administrativas.
Como atestado dos defeitos da Constituição, foram propostas milhares de emendas constitucionais, das quais 99 aprovadas, fora as seis da revisão constitucional, algumas retomando assunto já modificado. No texto constitucional propriamente dito, às 1866 normas iniciais foram acrescentadas 391, inclusive cinco artigos, e modificadas 318; houve um artigo revogado. Nas Disposições Transitórias — destinadas, normalmente, a situações de adaptação entre regras constitucionais do regime anterior ao novo — passou-se dos 70 artigos originais para 114, resultando em 551 normas, das quais 281 novas e 37 alteradas. Essa análise quantitativa, além de necessariamente superficial, é também muito passageira, pois o ritmo de normas novas tem sido de quase duas por mês, as alterações, em média uma a cada mês.
Conclusão
A transição democrática, resultado de um grande esforço de nossa sociedade, teve duas faces. Uma, o processo político, em que o Poder Executivo, sob minha liderança, teve um papel de protagonista principal. Deixamos o País pronto para os voos do futuro.
A outra face, a da nova Constituição, revela, em seus 30 anos, que tínhamos razão ao explicitar nossas preocupações. Apesar dos indiscutíveis sucessos do Plano Real, de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, e da grande ascensão dos pobres à economia, com os resultados dos governos de Lula, o País continua a sofrer crises econômicas, e nossa economia voltou a depender dos esforços do setor primário, situação que resulta, a meu ver, do excessivo comprometimento das receitas possíveis do Estado imposto pela Constituição, inviabilizando os investimentos essenciais para a continuidade de nosso crescimento e a solução dos gravíssimos problemas em setores como educação, saúde, saneamento e segurança pública, entre tantos outros.
O mais grave, entretanto, é o que acontece no espaço da estrutura das instituições. Nossa solução híbrida de sistema de governo nos fez cair numa incessante intervenção dos poderes uns nos outros, contrariando os postulados de harmonia e independência. Precisamos chegar rapidamente ao parlamentarismo, que é a forma superior de governo. Para isso, no entanto, são essenciais partidos fortes e maiorias parlamentares. Isso não é possível com o voto proporcional uninominal e todas as suas consequências.
A transição democrática foi bem-sucedida em seus objetivos: garantir a retomada do processo eleitoral — tivemos eleições em quatro dos cinco anos de meu Governo —, a alternância de poder, a liberdade de expressão, a garantia de nossos direitos fundamentais, muito bem definidos na Constituição. Ela foi, como tinha que ser, limitada a seu tempo e a suas circunstâncias, para ecoar Ortega e Gasset. Não lhe cabia a cura de nossas mazelas seculares, já denunciadas por José Bonifácio. A construção de um espaço em que cada um possa, em igualdade de condições, buscar a felicidade. Essa tarefa é permanente. Tem que ser exercida diuturnamente. É responsabilidade de todos, homens públicos e sociedade.
Num balanço destes 30 anos, podemos avaliar que a crise que atravessamos foi germinada ao longo desses anos por seus defeitos. Não podemos deixar de ressaltar que, no que respeita aos direitos humanos, civis e sociais, foi um grande passo e assegurou um grande avanço. O mesmo não podemos afirmar do seu conjunto, da falta de unidade da redação e de uma visão de futuro que é a grande fonte de nossas crises. A facilidade com que admitiu ser emendada transformou a atividade parlamentar, por ser tarefa mais fácil emendá-la do que votar qualquer projeto de lei. O resultado é que já temos 105 emendas promulgadas, cujos textos somados equivalem a mais de dois terços dos constantes na própria Constituição, sem contarmos com as leis complementares em que foi generosa — e ainda restam muitas leis complementares, determinadas em artigos, que não foram elaboradas. De tal modo foi pervertida a democracia constitucional que o excesso de crises que vivemos desembocará, não sei em que prazo, numa ruptura. A harmonia entre poderes transformou-se numa disputa de maior espaço.
A democracia é um regime de conflitos. No parlamentarismo o governo cai nessas horas e quase sempre com a dissolução do Parlamento. Nossa maneira de sobreviver tem sido com um Poder Moderador, que no Império foi exercido pelo Imperador. Graças a ele, avaliam alguns historiadores, foi possível construir-se a unidade nacional com uma monarquia constitucional. Na República, na ausência formal desse instrumento, e o novo regímen não tendo apoio da opinião pública, não havia também o poder de novas eleições. Assim, os militares agregaram a suas funções poder político, criando o militarismo e fazendo as intervenções chamadas salvacionistas, cuja última foi a de 1964.
Com a volta da democracia em 1985, essa função, como em todas as democracias modernas e consolidadas, é exercida pela Suprema Corte — que existe com várias denominações —, guardiã da Constituição. Aqui, pelos defeitos da Constituição, houve uma judicialização da política e uma politização da Justiça, criando a impossibilidade de que a Corte possa exercer essa maior de todas as suas atribuições. O resultado é o caos que estamos vivendo, com a coincidência de algumas mudanças mundiais como a sociedade de comunicação, a crise da democracia representativa, o advento de novos interlocutores da sociedade democrática, como a mídia, as redes sociais, a internet como um todo, e a agonia dos parlamentos, invadidos pela corrupção e em alguns países pela droga e pelo crime organizado.
Nossas saídas não são visíveis. Tudo pode acontecer, sem excluir aquele apelo que é atual e o mais perigoso e ignóbil de todos: o terrorismo. Ele costuma surgir quando os horizontes desaparecem. É a hora dos alucinados. Estas visões pessimistas, devem, ao contrário de nos levar ao desânimo, receber maior sacrifício dos homens públicos, abdicando de parcelas de poder em busca de uma solução sem traumas, em que todos tenham uma visão da salvação do País. É a hora dos estadistas e da conscientização dos três poderes de suas responsabilidades com o futuro da Pátria.
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[1]Documento essencial de nossa História é o Lembranças e Apontamentos do Governo Provisório da Província de São Paulo,redigido por José Bonifácio, em cujo esquema de Constituição levantava pontos que até hoje carecem de solução definitiva: a reforma agrária, a situação de índios e negros, a educação, entre muitos outros. Vale a pena chamar a atenção para o fato dos deputados às Cortes, escolhidos segundo as normas de Cádiz, não estarem vinculados a estas instruções, pois desde a Revolução Francesa esse ponto havia sido superado, o que colocaria nas constituições europeias fórmulas como a do Artigo 27a da atual Constituição Francesa: “Todo voto imperativo é nulo.”
[2]Fiz, na ocasião, a seguinte declaração de voto:
“Sou contrário à aprovação da emenda, embora seja parlamentarista. O que estamos fazendo não é a adoção de um sistema, mas a de uma solução artificial para uma crise cujas raízes se encontram nos próprios homens.
A opinião pública nacional ficou do lado do Congresso e o apoia em sua decisão de resistir. Temo que o recuo seja danoso à paz pública. As sequelas da quebra da norma legal têm efeito a curto e longo prazo na estrutura política. Esses efeitos virão. Não quero “perder a honra para ganhar a paz e ter a guerra”. A única solução para uma crise desta natureza política seria a fórmula impessoal da Constituição. Com as classes armadas divididas como estão, a vitória de um dos lados seria o fomento do ressentimento pelo outro. Dentro da Constituição, toda a fórmula é digna e a ninguém atinge. Fora dela, não! Fecham-se, numa fórmula de composição, as posições pessoais, mas abre-se uma divisão profunda. Com o Congresso sem base popular, os líderes falhados e trucidados por fórmulas artificiais, virá o clima propício para a ditadura. Estou com a minha consciência. Praza a Deus que eu esteja errado, mas no futuro, se acontecer o que prevejo, não terei a alma ressentida de ter sido pelo meu voto, quando ainda tinha forças para resistir e aceitar a continuidade do regime sem imposições.
Faço todas as restrições possíveis ao Sr. João Goulart, menos a de ser Presidente da República e prefiro combatê-lo como adversário durante cinco anos do que vê-lo fora do poder, jogando o País na convulsão irreversível.”
[3]Os episódios contemporâneos, quando sem fontes, são baseados em meu testemunho de assistente ou protagonista, ou, eventualmente, a mim transmitidos em conversas pessoais.
[4]O Colégio Eleitoral era composto por 686 delegados, sendo 381 do PDS, 273 do PMDB, 30 do PDT, 14 do PTB e 8 do PT, bastando, portanto, a mudança de 18 votos em direção à oposição para esta ter maioria.
[5]Testemunho transmitido diretamente ao autor por Francisco Dornelles.
[6]Fonte: Banco Central do Brasil, Valores em dólares correntes.
[7]Fonte: Banco Central do Brasil, Valores em dólares correntes.
[8]Só em 1840 foram liberadas, segundo sua vontade, as Notes of Debates in the Federal Convention of 1787, de James Madison, a única verdadeira fonte do que foi a constituinte americana. Madison sustentava que não se ausentara um só dia dos debates.
[9]A Futura Constituição do Brasil. (SARNEY, 1989 p. 367)
[10]Promulgação da Nova Constituição Brasileira. (SARNEY, 1989 p. 499)
[11]A partir da Emenda Constitucional de 1926.
[12]Orçamento é a mais importante tarefa do Congresso Nacional, que, ao estabelecer a receita e a despesa, deveria exercer o controle do Poder Executivo. Ao aprová-lo, o Congresso cumpre suas atribuições fundamentais, que são as de estabelecer prioridades, controlar, fiscalizar, acompanhar a execução, submetê-lo a um planejamento que o torne invulnerável à manipulação do Executivo, impedindo este de utilizá-lo como arma política e peça de coação e arbítrio.