Congresso Nacional, Brasília, DF, 15 de fevereiro de 1990
Senhores Congressistas,
Envio ao Congresso Nacional a última mensagem do meu mandato.
Renovo, mais uma vez, minha homenagem a esta instituição, coração e alma do sistema democrático.
Lanço os olhos no tempo. Recordo a manhã de 15 de março de 1985. Com a doença, e depois a morte de Tancredo Neves, coube-me dirigir a Nação no seu período mais difícil, porque mais cheio de cobranças políticas, em toda a nossa História.
Somavam-se esperanças e dificuldades. As liberdades, até então represadas, explodiam em reivindicações e gestos de intolerância. A ânsia de mudanças atropelava os fatos. Tive a tarefa gigantesca e quase impossível de administrar e dar equilíbrio a uma aliança de forças heterogêneas que fora construída, em precária engenharia política, para possibilitar a travessia do regime autoritário para o pleno estado de direito.
Há um tempo de semear e um tempo de colher. É possível que o tempo de colher seja mais glorioso. Mas é o tempo de semear que determina o que se vai colher. Num período de múltiplas transições internas e externas, que vivemos nos últimos cinco anos, coube-me plantar e poucas vezes colher.
Plantei o exemplo da paciência política, essencial à convivência democrática.
Plantei os ventos da liberdade que varreram o País inteiro.
Plantei as modificações institucionais promovidas sem hesitação.
De logo, toda a legislação autoritária foi revogada, restabelecendo-se ampla liberdade política e de associação sindical. Realizávamos a primeira eleição: de prefeitos das capitais e nos municípios de segurança nacional. Os partidos com estigma de clandestinos vêm à luz da legalidade, grupos e facções que operavam fora da lei são cooptados pelos novos tempos e exercitam suas ideias dentro do sistema partidário, sem medo e sem restrições. Acabam-se as discriminações, criam-se novos partidos. Registram-se centenas de novos sindicatos. As grandes centrais operárias se organizam e se legalizam. A imprensa falada e escrita adquire total capacidade de ação. Vivifica-se o tecido social e estimula-se o poder criativo de uma sociedade verdadeiramente livre e aberta.
Semeei o exemplo de respeitar, até o limite dos exageros, a liberdade de imprensa, do rádio e da televisão, porque entendo que a prática da liberdade corrige os excessos. Não apenas nos veículos de comunicação, mas em todo o processo de circulação de informações da sociedade. Nunca usei do direito legal de medidas judiciárias. A Presidência tem um poder que não deve ser usado como força inibidora da crítica, nem para intimidar, promover a autocensura, policiar consciências, discriminar veículos.
Paciência e liberdade
Semeei a conciliação e a tolerância políticas na busca da mais ampla convivência democrática. Os poderes da Presidência foram contidos para que maior fosse o poder do povo. A sociedade libertou-se do medo, e está pronta para exercitar seu direito de opinião e de crença.
Semeei o exemplo da paciência, da tranquilidade e da compreensão como antídoto às paixões deflagradas. Preferi ser injustiçado a cometer injustiças; silenciar, a fazer calar. E hoje me orgulho de ter contribuído, através de meu comportamento pessoal, para que o País reencontrasse, na paz, o caminho da reconciliação de uma sociedade dividida pelo ódio, pelo ressentimento, pela amargura e pela prepotência. O Presidente da República devia ser o árbitro e não o protagonista. O que a muitos parecia fraqueza, na verdade era a força da coragem para esta radical mudança na vida nacional, cuja consciência vivia submetida e entorpecida pelo receio da tutela.
A diretriz era a de, sob qualquer sacrifício, criar uma sociedade verdadeiramente democrática, e não um simples exercício simulado de elites.
Tornava-se necessário abrir espaços para a maioria desprotegida e pobre. Para que ela não somente tivesse o voto formal, mas também o poder de opinar, de participar, de decidir.
Inicia-se um novo tempo. O fim de uma era do monopólio dos privilegiados. Os trabalhadores organizam-se e têm liberdade para reivindicar de maneira firme. Deflagram-se mais de dez mil greves. O Governo absorve até mesmo os ataques mais violentos, as injustiças de que é alvo, sabendo que fazem parte de um momento de travessia. Os dissídios nunca mais serão caso de polícia: resolvem-se pela via do entendimento ou pelo julgamento superior da Justiça. Nenhuma prontidão militar, nenhum ruído quanto a hierarquia e a disciplina. Nenhuma manifestação terrorista conspiratória. Nenhuma violência. Os militares profissionalizam-se, modernizam suas Forças. O Presidente da República exerce em plenitude o Comando Supremo, consciente de que entre suas atribuições está a de zelar pelo prestígio dos comandados. Estes cumprem seu dever constitucional de garantir a transição, e exercem sua missão com impecável lealdade à Nação.
Em 1986, realizam-se eleições para governadores, senadores, deputados federais e estaduais. Novos quadros participam da política nacional. Concomitantemente, a democracia se derrama por um sistema de capilaridade irreversível a todos os setores. O povo se organiza. Associações são criadas: de bairro, de donas-de-casa, de moradores, religiosas, de lavradores, de operários, comerciantes, de pequenas indústrias, patronais, de produtores, de profissionais liberais, de estudantes, de intelectuais. Surgem milhares de novos sindicatos. Enfim, todos buscam participar. É a democratização da sociedade.
Mas, para que esse processo possa fluir livremente, é indispensável a liberdade. E a liberdade existe, não é retórica. Ela dá força, conteúdo, base, e permeia o processo. A união, a consciência da cidadania, dos direitos, são exercidos, e começa a pertencer a todos o poder político, que é a síntese de todos os poderes, e não a democracia formal e sem povo.
O grande ideal da República, de integração do povo, que há cem anos perseguimos, começa a se concretizar. Para muitos, esse panorama em ebulição é a anarquia, a debilidade, a exigir a força da autoridade. Para os verdadeiros democratas essa paisagem e essa efervescência constituem afirmação de vitalidade e mutação, e não manifestação patológica.
Compreender esse fenômeno é compreender a formação histórica. Estamos ainda muito próximos dos fatos, para visualizá-los em profundidade. Nós somos parte dos próprios fatos, protagonistas, participantes, atores e público, sujeito e objeto deles, como um todo. Deles não participei passivamente. Eu tinha consciência de que somente essa postura transformaria a sociedade. Outra atitude levaria ao confronto, à violência, à derrota da democracia.
A absoluta atmosfera de liberdade que respiramos sepultou o tempo dos temores, dos truncamentos institucionais, das ameaças de golpes, das conspirações, das fraudes, das interferências governamentais para influenciar e deformar a vontade do povo, das baixas práticas eleitorais, do subdesenvolvimento político, das manobras para a continuidade no poder.
E essa conquista a sociedade deve encará-la com equilíbrio e naturalidade, sem cair no fosso de um desencanto insatisfeito nem subir à euforia de quem acha que tudo foi alcançado.
Em nenhuma das eleições realizadas durante meu mandato houve qualquer arguição de interferência do Governo. Nenhuma denúncia de manipulação, nenhuma querela eleitoral. E tivemos cinco eleições: 1985, 1986, 1987 e duas em 1989.
Sei que é difícil ver esse trabalho com isenção, porque ele não se insere no rol dos bens materiais. É uma obra política e, portanto, impalpável. E a memória política vive do instante, das luzes momentâneas das vitórias ou da escuridão solitária das derrotas. Ela não tem a perpetuidade e a neutralidade do mármore.
A liberdade que conquistamos prova que viramos a vertente da História. E a História não fala somente daqueles que construíram estradas, levantaram templos ou monumentos; ela acolhe principalmente aqueles que criaram sistemas, apontaram caminhos, guiaram com probidade sua conduta de governo, edificaram e consolidaram as instituições democráticas e respeitaram os direitos do Homem.
Democracia sem recessão
O Brasil saiu de longa noite sem os olhos vermelhos dos pesadelos. Traz hoje nos lábios o sorriso aberto da confiança na liberdade. Entender e caminhar não são debilidade e omissão, e sim conduta de um efetivo e firme exercício de governo, eficiente para afastar violências e exorcizar traumatismos, consolidar o caminho da liberdade e assegurar o respeito aos direitos humanos.
Optamos, em caráter irreversível, pela democracia e contra a recessão. Preferimos crescer e defender o trabalho e o emprego, afastando toda medida que representasse ajustes desumanos. O desemprego líquida toda força de expansão do movimento trabalhador. Seu poder de participar das decisões é nulo. Com ele não há transformações políticas importantes e todas as decisões ficam com o capital. Não é por acaso que a maior liberdade no País, que é esta que vivemos, corresponde à menor taxa de desemprego aberto de nossa História.
O caminho do desenvolvimento passa pela democracia. É difícil, penoso, mas capaz de dar sentido ao direito de viver. Prestei uma contribuição valiosa, em nome do nosso País, para que este ideal fosse conquistado, também, no Continente. É latino-americana a maior onda de democratização que o mundo conheceu desde o último pós-guerra. Fui um dos que mais batalharam por esta causa. É necessário agora que os valores democráticos que construímos sejam capazes de responder às questões do sofrimento, miséria, pobreza, desigualdade, exploração e violência que se integram em nosso cotidiano.
Que esses nobres valores da democracia dêem esperança a essa juventude faminta e desprotegida da América, presa fácil da vida da morte das drogas — a antivida —, versão atual da adolescência miserável que perpassa pelas páginas mais tristes de Charles Dickens, Victor Hugo e Dostoievski.
A economia é o efêmero. É um dado momentâneo que atinge o presente, está em constante mutação e pode ser corrigida.
Já a liberdade é presente e é futuro, e quem perde a liberdade perde o futuro no flagelo da autodestruição, do desencanto, do pessimismo, do niilismo, da sedução permanente do terror contra a escravidão. A liberdade, com seu poder criativo ilimitado, tem asas para voar o infinito.
Gandhi, o Mahatma, disse que a missão do homem da lei é lançar uma ponte sobre o abismo que separa os adversários. Passamos a construir nossas aspirações sob o império da lei. Como intelectual e político, vivi a angústia entre o ideal e os meios. O intelectual é o homem da justiça absoluta; já o político é aquele que busca a arte do possível, com os instrumentos da contingência. Mas quem governa vive suas circunstâncias. Não decide sobre abstrações, mas sobre fatos. Minha opção foi esta: Governo de liberdade.
Apesar de todas as limitações, não descuidamos dos problemas conjunturais. O Brasil, que vinha de uma recessão, cresceu nestes cinco anos 25%, e o produto per capita expandiu-se em 12%, vindo de uma redução de 10,8% no período anterior. Em nenhum ano tivemos crescimento negativo. Abrimos o País para a modernidade. Houve conquistas extraordinárias na área da ciência e da técnica. Dominamos a tecnologia do enriquecimento do urânio, da água pesada, da grafite nuclear, dos lasers de alta potência, do radar, das fibras de carbono, dos materiais supercondutores, das fibras óticas. Estimulamos a formação de recursos humanos em massa nos grandes centros de excelência do mundo inteiro. Defendemos a universalização dos saberes, que não podem ser monopólio de poucos países ricos. Batalhamos pela transferência de tecnologia e acesso aos domínios da ciência. Registramos progressos notáveis em biotecnologia e manejo de solo, com aumento de produtividade, que nos deram força para colhermos as três maiores safras agrícolas de nossa História. Semeei a mística da irrigação, hoje, uma consciência nacional, irreversível, com frutos visíveis e programas de grande êxito.
Técnicas de marketing nos fizeram assegurar a presença brasileira no mundo inteiro, garantindo grandes saldos comerciais, obtendo depois do Japão e da Alemanha Ocidental o terceiro superávit mundial. Passamos do oitavo para o sétimo lugar no produto industrial do Ocidente.
Nossas reservas internacionais são altas e os estoques estratégicos de alimentos, outrora quase nulos, vão hoje a mais de dez milhões de toneladas de grãos.
A capacidade de energia elétrica instalada no País era de 41.600 megawatts. Passa para 54.790 megawatts, isto é, cresceu 31 %. E as linhas de transmissão são ampliadas em 57%. Em nenhum período presidencial houve avanço tão expressivo num setor fundamental ao desenvolvimento econômico.
As empresas, com saudável liquidez e capitalizadas, mostram a estrutura poderosa da economia, mesmo em tempos de crise, e estão prontas a retomar os investimentos em larga escala, logo que sejam resolvidos os desequilíbrios do setor público endêmicos desde o Império.
Os programas sociais são consequência e extensão das diretrizes da democratização. Oito milhões de litros de leite são distribuídos diariamente às crianças carentes, dentro de um programa de suplementação alimentar apontado pela Organização Mundial da Saúde como o mais importante do mundo e modelo a ser seguido por países que tenham elevadas taxas de desnutrição. A mortalidade infantil caiu mais de 30%. Dez milhões de crianças, gestantes e nutrizes recebem suplementação alimentar. A taxa de analfabetismo baixou. Interiorizamos o ensino técnico, através de dezenas de grandes estabelecimentos disseminados no País inteiro. Milhares de creches atenderam mais de 2 milhões 200 mil crianças. Centenas de centros de convivência de idosos se espalham pelo Brasil inteiro. A estas ações da Legião Brasileira de Assistência somam-se 70 milhões de atendimentos sociais:
— semeamos o seguro-desemprego;
— o salário móvel adotado em todas as políticas salariais destes anos;
— a valorização do salário-mínimo;
— o vale-transporte;
— a universalização da saúde, que passou a ser direito de todos, e muitas outras decisões que modificaram as relações de trabalho, em favor dos mais pobres.
A Secretaria de Habitação e Ação Comunitária beneficiou mais de 50 milhões de brasileiros, com 26 milhões de pessoas atendidas por 52 mil pequenos projetos de mecanização, telefonia, postos médicos, agrícolas. Criam-se mais de um milhão de pequenas e microempresas e empresas artesanais.
A política indigenista sofreu radical tratamento: demarcamos mais de 30 milhões de hectares de terras indígenas, fazendo em cinco anos duas vezes mais do que foi feito em 75 anos, o tempo de existência do Serviço de Proteção ao Índio, iniciado em 1910.
Ao Governo deve-se o primeiro passo no sentido de adotarmos uma política independente de proteção e gestão dos recursos naturais e defesa do meio ambiente. Nestes últimos anos, a política ambiental ganhou no País identidade própria, sem qualquer ingerência externa, e firmou diretrizes que se fundam na preservação de ecossistemas essenciais para a sobrevivência humana, na face da Terra, a fauna e a flora. A defesa do meio ambiente no Brasil é ato de soberania a ser resolvido dentro de nossas fronteiras, pelos brasileiros. Repelimos ingerências e resistimos a grandes pressões que se desencadearam contra o Brasil, com o objetivo de criar organismos supranacionais e, assim, abrir a porta à internacionalização da Amazônia, há tantos anos objeto de cobiça externa.
A Lei nº 7.505/86, a Lei Sarney, constitui o instrumento mais produtivo e eficaz da promoção intelectual. Em três anos, ela é a base de um renascimento cultural. Cadastraram-se entidades de investimentos, com milhares de projetos na área artística: cinema, música, teatro, artes plásticas, edições, restaurações e proteção do Patrimônio Histórico. Essa política faz com que a sociedade industrial passe a colocar os valores espirituais entre seus objetivos.
Na área das contas públicas existe total transparência. Hoje, sabe-se o que é o Orçamento. Ele mostra claramente o que se arrecada e o que se paga, sob a autorizaçao do Congresso Nacional e fiscalização do Tribunal de Contas da União. Fruto do esforço imenso de racionalização e de redução de gastos, inédito na história administrativa do Brasil. Só em 1989 o deficit do Tesouro Nacional cai, em termos reais, em 34%.
Mas não podemos falar somente do que se conseguiu fazer, mas também da frustração por mais não se ter podido fazer.
Confesso, com humildade, que não alcançamos êxito nas tentativas heroicas para mudar a economia. Não me faltou nem vontade nem coragem. Faltou-me a colaboração de algumas forças sociais que colocaram seus interesses acima da coletividade, forças dos que se favorecem da miséria coletiva. Não conseguimos ganhar a batalha contra essa manifestação antipatriótica do egoísmo. Setores que se beneficiaram nesse período nos negaram apoio na hora das dificuldades. Os problemas estruturais de nossa economia são grandes e têm causas que escapam da nossa decisão. Dentre eles, está a dívida externa, a maior do mundo.
Sem apoio, tivemos que enfrentar nossos credores, e o fizemos com coragem e sem concessões. Na moratória, isolados, sofremos sanções e combate, sem o necessário respaldo interno.
Cercados, ilhados, enfrentamos o boicote da comunidade financeira internacional, a suspensão de investimentos. Resistimos. Não entregamos um milímetro da soberania e do interesse nacional, como contrapartida para qualquer negociação.
A inflexível postura do mundo desenvolvido em face da dívida é preocupante. O remédio por eles proposto até hoje tem melhorado a saúde financeira dos credores. Para os devedores, uma receita de estagnação e empobrecimento. Sem a retomada do crescimento nenhuma solução é leal, e não é possível crescer quando se remete para o exterior, todos os anos, cerca de um terço da poupança interna.
Sem desenvolvimento não há solução, e não se pode pagar a dívida com a desgraça do povo.
Em todos os organismos internacionais levantei a tese, hoje aceita, do tratamento político da dívida, solução que até agora não veio.
Em meio a estas dificuldades convivíamos com a crise do Estado. Sua força debilitada, a União recebendo maiores encargos e menores receitas. Com o novo sistema tributário, tivemos uma sangria de 3,5% do Produto Interno Bruto. Reconheço que o problema do Estado é grave. Não é para nós um problema ideológico, mas a constatação fria da realidade. Minha experiência me faz afirmar que Estado fraco é fonte de instabilidade e ingovernabilidade. O Estado deve ser o regulador das atividades produtivas, árbitro de redistribuição de rendas na sociedade. No Brasil, ele desempenhou papel decisivo na transformação do País e em sua formação econômica, em nossa fase industrial e na criação de sua infraestrutura. Não pode ser julgado sectariamente, pela simples denúncia, nem pela realização imperfeita dos seus objetivos.
O Plano Cruzado, embora não tenha alcançado seus fins, foi um marco econômico e político em nosso País.
Foi a primeira grande redistribuição de renda. O povo brasileiro, em movimento inédito, assumiu seus direitos, sentiu sua força, até mesmo para condenar.
Ele será objeto e análise de historiadores e cientistas econômicos e políticos.
Sem dúvida, na História do Brasil, raríssimas vezes tivemos um movimento de massa, da consciência nacional, de tamanha profundidade. A partir daquele momento, o povo descobriu sua força e passou a exercer seus direitos e viver a cidadania.
Renovei o seu objetivo nos Planos chamados Bresser e Verão. Muitas vezes senti o travo da solidão na crença de seus êxitos. Mas perseverei no desejo de acertar.
Paguei custos políticos de grande envergadura pela ausência de resultados no combate à inflação e tornei-me o mais agredido e combatido Presidente do Brasil.
Mas, em benefício da transição, resisti a tudo e busquei forças no cumprimento do dever, na austeridade pessoal e no respeito aos meus concidadãos.
Fui severo com abusos, distorções e corrupção. Nenhuma denúncia deixou de ser apurada, remetida à polícia e entregue à Justiça, único poder constitucional capaz de julgar alguém culpado. Temos, como exemplo, um doloroso e lamentável balanço nos inquéritos, nas demissões, nos processos.
Não há governo que mais tenha punido a improbidade. A conduta de severidade na administração pública está expressa pelo seguinte número: em 1985 tínhamos 710.832 servidores — em dezembro de 1989 este número estava reduzido para 694.764. Extingui, com vagas ocorridas e cargos não preenchidos, 358.918 cargos. Nas estatais, em 1985 tínhamos 608.072 empregados e em 1989 o número era de 598.455, já incluídas as contratações previstas na Constituição de 1988.
Encontrei em 1985 um mundo de conflito ainda dilacerado pelas fronteiras ideológicas. Em 1990, temos uma paisagem transformada. Mudanças nunca imaginadas se processam. O mundo renuncia à política da força e busca os caminhos do diálogo. Não há mais lugar para radicalismos, embora esteja longe o tempo de um mundo sem angústia, tensões e medo.
Nestes cinco anos, a política exterior do Brasil alcança um momento marcante em nossas relações internacionais. Fomos protagonistas de decisões importantes e participamos ativamente do debate dos grandes problemas mundiais.
A zona de paz do Atlântico Sul, a abertura de novas formas de cooperação, sem preconceitos ideológicos, com o Leste europeu e com países de nosso porte, como a China e a Índia. Não ficamos prisioneiros das grandes potências nem de pequenos conflitos.
Coube-me semear e colher os primeiros frutos de uma política de integração com a América Latina, participando da fundação do Grupo dos Oito, promovendo uma diplomacia presidencial com nossos vizinhos, leal e objetiva, lançando as bases do Mercado Comum. Vivi e tornei-me andarilho desta causa, com grande paixão.
Desejo ressaltar, pela sua importância histórica, que transcende nossos dias para projetar-se no futuro, termos acabado com uma espécie de guerra fria, que jogava nações irmãs como a Argentina e Brasil numa disputa inútil. Afastamos qualquer sombra de competição na área nuclear.
O Brasil, antigamente de costas para os vizinhos, assume nova postura e dá as mãos para a tarefa fraterna e solidária de vencer o subdesenvolvimento, a fome, a pobreza, a miséria, a quarentena da História.
Em 1987 e 1988, vivemos a Assembleia Nacional Constituinte. Ela já encontra a sociedade brasileira liberta. Milhões de pessoas pressionam em favor de seus direitos. Assegurei todas as condições ao seu pleno funcionamento. Algumas vezes questionei suas decisões, até mesmo a governabilidade, mas o fiz no exercício do direito de discordar, direito exerçido no Parlamento, Casa em que durante mais de 20 anos aprendi a ouvir e a opinar, a respeitar o debate, o direito de dizer. A contradição tão salutar dos plenários legislativos.
A Constituição incorporou avanços importantes. Tive, como Presidente, o encargo de viabilizá-los. Direitos sociais e fortalecimento do Congresso. Não há democracia sem Congresso forte. Não há democracia com injustiças sociais. Tudo o que é injusto é uma aberração, e perece.
A Constituinte foi a primeira na história republicana que não anunciou um estuário de confronto. Em 1824, termina na dissolução do Parlamento. Em 1891, desemboca na espada de Floriano. Em 1934, cai no Estado Novo. Em 1946, cria a clandestinidade para as esquerdas. Hoje, abre-se no estuário da Liberdade. O Presidente da República nunca confundiu a História com o seu destino pessoal.
Vivemos grandes transformações, a que me orgulho de ter presidido. Elas marcam este sofrido mandato.
Em 1988 — eleições para prefeitos e vereadores. Surge a democratização dos instrumentos da cidadania. Oitenta milhões de eleitores, a terceira democracia do mundo ocidental, uma modernização de procedimentos e rotina, que é um avanço fantástico.
Em 1989 — eleições para Presidente da República, as mais livres, mais amplas, mais democráticas da História do Brasil.
O País viveu uma festa, a festa da liberdade. A transferência do poder se processa com normalidade, civilidade e educação política inéditas.
Chegamos ao fim de mandato. Os espaços foram abertos. Os trabalhadores chegam a dois palmos do poder, eles que outrora não alcançavam dois passos na esfera das decisões.
O povo escolhe, decide, manda.
Sob meus ombros pesaram, solitariamente, os fardos das dificuldades desse processo. Todas as culpas, todos os agravos. Mas nada ficou. Meus olhos, que eram de ontem quando assumi em tempo de tragédia, hoje são olhos do amanhã. De confiança no futuro.
Atravessamos o desafio institucional. Agora é ordenar e construir o processo de crescimento.
Dentro de 30 dias terá o País um novo Presidente da República.
Volto à minha casa de cabeça erguida. Lamento não ter podido fazer mais e melhor. Ter governado num tempo de imensas limitações e dificuldades. Cheguei à Presidência sem qualquer ambição de poder. A ela fui alçado no bojo de grave crise nacional. Busquei exercê-la com grandeza e respeitá-la nos menores atos e em todas as circunstâncias, com dignidade, com os olhos no futuro do País. A todos ouvi, espírito aberto, com deferência e sem preconceitos. Posso afirmar “que nunca, por meu desejo, cravei espinho algum no peito de ninguém”.
Tenho certeza de que prestei relevantes serviços à minha Pátria.
Tempos de mudanças. Os valores materiais se sobrepõem aos valores morais e espirituais. A sociedade permissiva e concessiva. A violência, a corrupção e o respeito se diluem na efervescente queima das transformações.
Eu acredito que a História, no seu conjunto, busca o racional, embora nem sempre pelos caminhos sensatos. A aceleração da História no rumo da democracia representativa, a que assistimos em poucos meses, em vários países, tornou obsoletas cristalizações ideológicas que truncaram, durante largo tempo, o caminho para a racionalização de muitos problemas econômicos. O mundo abre-se hoje à universalização dos mecanismos econômicos. A humanidade vislumbra caminhos que há menos de um ano pareciam vedados ou temerários.
O Brasil, estou certo, saberá inserir-se nesta nova conjuntura internacional que elimina preconceitos e idiossincrasias.
Não ignoro, nem subestimo as consequências de algumas decisões, sobretudo na área econômica, que fui obrigado a tomar. Por todas elas sou responsável, dentro das minhas circunstâncias.
Mas ninguém governa abstrações. E cada país tem de atravessar etapas. Tenho a consciência das que atravessamos. O passo adiante só pode ser dado porque o gargalo institucional foi transposto.
Nenhum outro governante precisará operar com a carga de preconceitos e de desconfianças com que tive de me haver.
Relembro Lincoln: “… no fim, quando estiver retirado das rédeas do poder, mesmo tendo perdido todos os amigos da Terra, ainda tenho um amigo, e este estará dentro de mim”.
Sei que, no exemplo de São Paulo, combati o bom combate, e guardei a minha fé. Conforta-me saber que maldito é o homem que, na face da Terra, recusa a companhia de Deus.
Meu mandato tem o valor da vida e de amarga luta.
Deixo o País em paz, a transição concluída, mas, infelizmente, vivendo uma grave crise econômica e do Estado.
Agradeço ao Congresso Nacional o apoio recebido nas horas difíceis. Se não foi total, foi o necessário e patriótico para chegar até aqui.
Creio, porque nele vivi, que no Congresso está uma grande reserva de valores cívicos que nos momentos críticos encontra, com patriotismo, solução para os anseios de nossa Nação, para que ela continue o seu caminho e ocupe o lugar que lhe está reservado no mundo.
Desejo renovar minha homenagem ao Poder Legislativo, afirmando que nestes anos, juntos, lançamos a base fundamental da sociedade democrática brasileira, o governo da liberdade! Os historiadores dirão sobre este tempo.
Ele será um instante solar das instituições democráticas, porque “todo poder humano é um conjunto de tempo e paciência”, como dizia Balzac.
A democracia, hoje, não é a planta tenra de que nos falava Otávio Mangabeira, mas o carvalho, de Rui Barbosa, a cuja sombra espero que nos deixem perpetuamente elaborar e cumprir os roteiros de salvação do povo secularmente sofrido deste País.