Quando se formavam as bases da democracia moderna, no período entre as revoluções inglesa, americana e francesa, ou entre Locke, Voltaire, Rousseau, Madison — isto é, quando se invocava o predomínio da razão —, surgiu uma palavra para negar valores: niilismo. Etimologicamente, a palavra vinha de “nada”, podia-se dizer que era a negação das ideias. Nietzsche lhe deu sua carta de alforria. O niilismo, segundo ele, esvaziava a humanidade de significado, propósito, valores. Mas a frase definitiva é de Dostoiévski: “Se Deus não existe, tudo é permitido.”
Ser um niilista representava, quando eu era jovem, a manifestação de uma vontade desagregadora, desesperada e inútil. Eu, meus amigos, os políticos com que convivíamos, tínhamos ideias, sonhos, divergíamos sobre a teoria e a prática da política, mas víamos uma sociedade a ser transformada com a ação do homem. Nossa repulsa ao niilismo era definitiva.
O outro lado do niilismo é o agir negativo, o anarquismo. Este tem derivas para o socialismo e para o terrorismo. Na mesma família surgem os populismos concentracionários, nazismo, fascismo, comunismo etc. Com a vitória do capitalismo a anarquia volta-se para a antiglobalização e, naturalmente, na negação do Estado, o anarcocapitalismo. Daí para o atual populismo de direita, para a alt-right foi um pequeno passo.
Para cada corrente surgem logo os teóricos. O anarcopopulismo, a mistura de demagogia bagunceira que varre o mundo, tem como cérebro Steve Bannon, que não chega a formular um pensamento, mas desdobra-se em ações. O objetivo é desintegrar o Estado de Direito.
Entre nós, se escapamos do desastre maior do 8 de janeiro, vivemos hoje um Parlamento sem valores, sem ideias, sem programas. Atomizada a representatividade, torna-se quase impossível governar. O sistema de votação virtual, introduzido sob pretexto da pandemia, acabou com o debate parlamentar, reduzido às pautas corporativistas. Inevitavelmente os poderes entram em conflito. Há apenas o fascínio por um mundo a ser conquistado por todos os meios — e destruído.
A Inglaterra fez o Brexit como solução para a crise partidária e, com o seu desastre, vê o aprofundamento desta crise. A falta de lideranças abala a Europa. Putin se especializa no assassinato político e se coloca com Zelenski acima do sofrimento de seus povos.
Mas o mais incompreensível exemplo vem dos Estados Unidos. Vivi na convicção, forjada na leitura dos Fundadores, de Lincoln, de Tocqueville, de que a Constituição americana, com seus “checks and balances”, era inabalável. Agora a vejo vacilar diante da segunda onda do ataque de Donald Trump. A Suprema Corte, em crise moral e politizada, decidiu examinar, nas calendas gregas, se um presidente americano tem imunidade absoluta.
Um jornalista do NY Times examinou o programa de governo de Trump. Diz ele que seu projeto não é eliminar o Estado: é usar o Estado para o benefício dos super-ricos que o apoiam — e, possivelmente, lhe darão o dinheiro para pagar as multas de mais de meio bilhão de dólares que equivalem a toda a sua fortuna. Um dos pontos é acabar com a separação entre Igreja e Estado: pobres Jefferson e Madison, que a fixaram como ideia central da liberdade de pensamento e devem estar girando sem parar em seus túmulos.
Um mundo incompreensível para mim.