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Um dia singular

Um dia singular

Antônio Carlos Magalhães •

Senador pela Bahia, Presidente do Congresso Nacional, Governador da Bahia

Hoje é um dia singular na democracia brasileira.

Costumo repetir que todos os movimentos, desde trinta para cá, até mesmo antes da República e até mesmo da Independência, todos esses movimentos, civis ou militares, foram feitos com o apoio da opinião pública nacional. Sem o apoio da opinião pública nacional, jamais teriam acontecido! Sem o apoio da opinião pública nacional, Tancredo Neves não teria sido Presidente da República!

Hoje, aqui, homenageamos dois grandes brasileiros de uma só vez: Tancredo Neves e o Presidente José Sarney. O Presidente José Sarney, de quem tive a honra, por indicação de Tancredo, de ser Ministro por cinco anos, soube, como ninguém, portar-se em momentos difíceis, talvez o mais difícil da República. Sempre o tratei com o respeito indispensável que se deve tratar o Presidente da República. E até me lembro, neste instante – porque sempre o chamei Presidente Sarney -, que vários companheiros meus de Ministério o chamavam de Sarney. Nunca o chamei de Sarney! Tinha sempre em mente que, quando Lacerda se elegeu Governador do Estado do Rio de Janeiro, um seu amigo, com certa intimidade, lhe perguntou: — “E agora, Carlos, como vou chamá-lo?”. Ele respondeu: — “O senhor poderá me chamar como quiser!”.

Assim, durante esse período, o hoje amigo de mais de 5 décadas – naquele tempo de 3 décadas -, eu sempre tratava com a reverência que o cargo de Presidente da República exigia, como hoje ainda exige.

Com ele discutíamos os problemas nacionais, sobretudo aqueles que antecederam a morte de Tancredo. A sua reação, em determinado momento, no nosso Partido na época, o PDS, foi a mais corajosa possível num dia ou numa manhã em que tudo poderia acontecer. Mas, com sua coragem e seus amigos, resistimos, e daí se forçou, dentro de pouco tempo, a fundação do Partido da Frente Liberal, como V. Exa ainda há pouco citou.

De modo que eu entendo que a candidatura Tancredo era aquela que o povo brasileiro queria. Não sei, se a eleição fosse direta, se ele seria Presidente ou não. O fato é que Tancredo era o homem que a sociedade brasileira queria para presidir a República pelo seu vasto conhecimento. Fora promotor em Minas, fora deputado estadual, deputado federal, senador, governador, diretor do Banco do Brasil. Enfim, conhecia tudo. Muito mais ainda: possuía uma inteligência notável, que só os estadistas da sua categoria possuíam.

A vida de Tancredo pode se transformar hoje na vida de um dos brasileiros contemporâneos mais eminentes. Juntamente com seu conterrâneo Juscelino Kubitschek, de quem fora amigo, acredito que, por mais que queiramos, não encontraremos figuras maiores.

Trabalhamos juntos, antes mesmo, e aí vai um pouco de história, da sua eleição na convenção do PMDB. Vários encontros tivemos no seu apartamento na Avenida Atlântica, e ele, sempre com lucidez, via os caminhos que o Brasil deveria percorrer. Assim, Tancredo se tornou insubstituível como candidato.

Em 11 de agosto de 1984, nós participávamos do PDS e estávamos com a candidatura de Mário Andreazza, que foi fragorosamente derrotado por Paulo Maluf, candidato da situação em vez de Andreazza. Por outro lado, grandes líderes queriam a permanência do Presidente de então, mas o povo não queria. O povo queria Diretas Já e, na falta de Diretas Já, aquele que as representava, e quem as representava, além de Ulysses Guimarães, era Tancredo Neves.

No dia 12, houve a convenção do PMDB. Havia dúvidas muito claras no ambiente político se José Sarney seria bem recebido na convenção do PMDB, ele que antes fora Presidente do PDS. Foi muito bem recebido, e, com Tancredo, consagrado Presidente e Vice-Presidente da República. Neste dia, ouso confessar, Tancredo esteve na minha residência e me convocou para trabalhar com ele no Ministério – 12 de agosto de 1984. Não me disse qual, mas assegurou-me que trabalharia com ele. Daí tivemos lutas sérias. Relembro o comício de Goiânia organizado por Iris Rezende; foi um dos comícios mais vibrantes da campanha. Como havia muita bandeira vermelha, o Exército ficou um pouco aborrecido e fez traduzir para Tancredo que isso não deveria ocorrer com tanta freqüência.

Mas Tancredo também tinha – como ainda há pouco li em uma entrevista de Aécio Neves – ligações com vários militares importantes da República; Tancredo dava-se e compreendia todos e, por isso, facilmente conquistava aqueles que com ele dialogavam.

Passaram-se os dias e houve um célebre 04 de setembro. Era meu aniversário; daí por que, eu sei, o Presidente Renan Calheiros citou meu nome. Aqui tem o depoimento do Ministro – até presente – da Aeronáutica de então, n’O Estado de S. Paulo, em que diz — perdoe-me, eu não quero ser imodesto; também devo dizer o que penso: — “A crise entre ACM e Délio foi uma virada na campanha de Tancredo Neves. Ali selou-se a sorte de Paulo Maluf. Até então nenhum político havia enfrentado um ministro militar”. Palavras do Brigadeiro Moreira Lima.

Daí vieram muitos acontecimento. Falaram que eu iria para Fernando de Noronha, que iria ser preso etc. Procurei munir-me de bons advogados. Fui em busca da grande figura, entre Ministros do Supremo, de Vitor Nunes Leal. Tivemos uma reunião, no Rio de Janeiro, com Pedro Gordilho, Vitor Nunes Leal e com uma pessoa que, a cada dia, agiganta-se no Supremo e na República: o Ministro Sepúlveda Pertence. S. Exa fazia parte do escritório de Vitor Nunes. Traçamos uma política de defesa da minha pessoa. Vitor Nunes, com a ética que lhe era própria, não quis subscrever porque fora advogado de Luftalla; não se sentia bem, mas iria dar-me toda a assistência, todo o apoio jurídico, por intermédio dessas figuras notáveis que acabei de citar.

Veio a eleição de 15 de janeiro. A vitória esmagadora de Tancredo Neves traduziu a vontade do povo brasileiro. Em seguida, como sempre acontece – agora está acontecendo, mas com Tancredo era bem diferente, digamos a verdade -, veio a formação de ministério. Tancredo tinha na cabeça todos os ministros que iria nomear; embora conversasse com várias pessoas, ele já tinha formado o ministério.

Tancredo passava a ser a esperança nacional quando adoeceu. E adoeceu com muita coragem porque não teve a vontade de curar-se talvez na hora própria; ele achava que o momento da Nação era mais importante do que a sua própria saúde. Até que no dia 14, ao final da missa na Igreja Dom Bosco, ele passara, batera no meu peito e dissera: — “Antonio Carlos, me acontece cada coisa!” E estava meio pálido. Realmente não deduzi coisa alguma, até que às nove horas fui informado do seu internamento, e da luta na ocasião porque o Presidente da República achava que o Vice- Presidente José Sarney não deveria tomar posse. Puro capricho de derrotado. O Dr. Leitão de Abreu também se fixou nessa tese. Outros juristas importantes, como Afonso Arinos, pensavam de modo totalmente diferente. Mas manda a verdade que se diga que tudo se esclareceu quando um jovem jurista militar, aqui presente e hoje tão jovem quanto ontem, o General Leônidas Pires Gonçalves, chegou no meio da reunião e disse: — “A Constituição está aqui. Quem vai tomar posse é José Sarney, como Vice-Presidente da República”. E José Sarney tomou posse.

Vou relembrar um pouco o nosso querido Aécio Neves, que sofria como ninguém naquela noite: admitimos até que Tancredo tomasse posse no hospital. Mas isso não ocorreu, inclusive pela própria vontade de Tancredo. E aí vivemos aquela agonia que não foi só a agonia de Tancredo; foi a agonia da Nação inteira com a sua doença, tanto aqui quanto em São Paulo. Até aquele dia 21 de abril – todo o povo brasileiro se recorda – quando um avião decolou com o corpo de Tancredo. Isso ficou na memória de todos. Passamos aqui, fomos para Barbacena e de lá para São João Del Rei. Todos estavam sofrendo muito, o Brasil sofrendo mais ainda; e, com o Brasil, sofria o Presidente José Sarney.

O Presidente José Sarney, com a dignidade que lhe é própria e que tem provado em vários momentos da sua vida, procedera como estadista, mas temeroso pela responsabilidade de substituir aquele que era popularmente no Brasil, talvez, a maior figura. Deu-se a posse. Devemos dizer a verdade: não esperávamos o desenlace; esperávamos todos os dias por aqueles boletins do InCor, geralmente anunciados por Antônio Britto e com os quais todo o Brasil sofria, até quando ocorreu o inevitável. Mas Sarney, honrando as tradições de seu Estado e criando uma tradição para todos nós que fazemos vida pública, soube proceder não só como estadista, mas como o amigo, mantendo todo o ministério para o qual Tancredo já havia assinado os decretos.

Devo dizer a V. Exa, Sr. Presidente, que até o fim do mandato Sarney procurou ser fiel e seguir Tancredo. Nós tínhamos encontros praticamente diários e podíamos ver como ele se interessava em não fazer nada que Tancredo não desejasse, se vivo fosse. Daí por que hoje ele é muito responsável pela democracia, que comemoramos vinte anos.

Quero dizer, Sr. Presidente, que nós temos o dever de honrar a memória de Tancredo Neves e continuar o trabalho democrático, que não se esgota nesses vinte anos.

Li hoje algumas frases e uma me ficou bem na cabeça, a de Claude Pepper, que dizia: — “A democracia é a melhor de todas, porque todos têm o direito de errar”. Na democracia, mesmo errando se acerta. O povo pode corrigir, de quatro em quatro anos, os erros que nós cometemos. Eu digo, neste instante, que Tancredo provavelmente poderia repetir as palavras do Visconde de Rio Branco: — “Confirmarei diante de Deus tudo quanto houver afirmado aos homens”. Ele pode confirmar, onde quer que esteja, que foi um homem que só pensou no Brasil, lutou pelo Brasil e pelo Brasil morreu, deixando um nome que hoje tem que ser reverenciado pela Nação brasileira.

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