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Antônio Olinto: sobre “O Dono do Mar”

Antônio Olinto: sobre “O Dono do Mar”

Antônio Olinto•

Da Academia Brasileira de Letras. O Estado do Maranhão, Caderno A, 26 de janeiro de 1996.

 

Personagens vivos e fortes

Pouco sabemos dos mistérios da criação literária. Como de qualquer outra criação. Explicações técnicas, temo-as aos montes. Análises sintáticas, melódicas, biológicas, sociais, ou puramente vocabulares, ou sociológicas, psicanalíticas, ou simplesmente ligadas ao adjetivo do momento. Algumas em separado e todas em conjunto, aclaram meandros, facilitam visões particulares, embora possam deixar um lado lunar inatingível. Esses estudos de decomposição revelam às vezes desconhecimento do fenômeno da composição. A autópsia mostra, mas não surpreende a vida em ação. Fica faltando, ao analista puro, uma intimidade maior com aquilo que Bernard Guyon chamava de “o êxtase da concepção literária”.

Na apreciação de um romance, um poema, um ensaio, todos os recursos disponíveis podem ser usados, contudo cada obra especifica precisará de um chão. Elemento básico da análise será a terra, com t minúsculo de hoje ou o T maiúsculo de antigamente, pois sobre ela repousam passos e caminhadas. A terra dá sentido aos escritos de Thomas Hardy, de John Cowper Pows, Euclides da Cunha e, em tempos brasileiros mais recentes, aos de José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Dalcídio Jurandir. Juntamente com a terra surge o elemento água como avanço conquistado, caminho de aventura, desafio. Os poemas clássicos procuravam-na, e tanto a Odisseia e a Eneida como Os Lusíadas se fixam no mar em que, mais tarde, um, polonês naturalizado inglês colocaria a estranha figura de Lord Jim, e para o qual um homem do Novo Mundo criaria sua baleia branca.

As relações do homem com leis inalteráveis, ligadas à Terra e ao Mar, refluem para o lugar em que mora — caverna ou mansão —, para a melodia que inventa, para o livro que escreve. País de longa faixa costeira, tem o Brasil, em sua literatura, uma forte presença de mar. Dentre muitos romances cheirando a maresia entre nós, citem-se Jana e Joel, de Xavier Marques; Mar Morto, A morte e a morte de Quincas Berro D’água e A história de Vasco Moscoso de Aragão, de Jorge Amado; Cais de sagração e Noite sobre Alcântara, de Josué Montello; O chamado do mar, de James Amado; Maria de cada porto, de Moacyr C. Lopes.

A partir do livro de contos Norte das Águas, passou o nome de José Sarney a integrar o grupo de escritores vinculados à força das marés e do vento nas ondas. No romance de agora — O Dono do Mar — vai José Sarney ainda mais longe nessa busca de um sentido para a vida na luta contra a violência das coisas.

Que vem a ser O Dono do Mar? Ficção não-realista da melhor espécie, de um surrealismo não apenas a-racional, mas também mágico. O litoral do Maranhão, com seus pescadores, suas aldeias, suas assombrações, suas lendas, suas verdades, herdeiras da imagens barrocas de Antônio Vieira e dos sonhos de Dom Sebastião — a costa maranhense, com suas mulheres de olhos postos no mar, seu povo de convicções e escolhas definidas, na pureza primitiva das coisas essenciais, nascimento, amor, prazer, ódio, morte morrida e matada — é neste palco de terra, mar e ar que a ação da narrativa a cada momento eclode.

Os personagens do O Dono do Mar vivem num tempo e num espaço que se interpenetram, em largo movimento que junta o combate diário para vencer as águas com alucinações e fantasmas, como se a história dos mares portugueses, que os foram todos, se concentrassem naquele norte do Brasil — naquele norte das águas. Tanto Gonçalves Dias, morto afogado no mesmo espaço de assombração, como o rei Dom Sebastião, afogado na areia, e outros náufragos de tempos e nações várias, confluem para uma região de homens e mulheres talhados inconsutilmente com seu chão.

De Goa e das lonjuras da Ásia vêm fantasmas de mil náufragos, Diogo Lopes Baião, o soldado Diogo de Seixas, da nau São Tomé, o Vice-Rei de Goa, Manuel de Sousa Coutinho, até Lord Cochrane — que Josué Montello botara no seu Largo do Desterro — comparece ao encontro dos fantasmas. Pássaros, peixes, cobras e outros bichos compartilham dos pedaços de terra e mar e ar que circundam os personagens, iguais na sua fereza. Há o pana-panã, a sucuriju, o capijuba, o urumaru, o barbatão e bichos fantásticos, à espera na sombra, como o pioco, ente que vive na profundeza das águas e tem um olho só, no meio da testa.

A linguagem de José Sarney incorpora palavras e usanças sintáticas dos índios da nação guajajara, num alargamento da narrativa que dá a O Dono do Mar um movimento de poema antigo, cantado em cadência de vento. O poeta Saint John Perse ia buscar nas ventanias de lugares descampados a inspiração rítmica de seus versos. Percorreu a pé trechos do deserto de Gobi na Ásia, ouvindo o vento levantar montes de areia, passou dias nos ventos da Patagônia. O escritor José Sarney tirou também das praias do norte brasileiro o ritmo geral de sua narração, com maresia, vento e visões de estranhas formas sendo personagens, vivos e fortes, de seu romance.

Com este livro reafirma José Sarney sua posição de escritor em busca da identidade de seu país. Outra não foi a natureza dos contos, romances e crônicas de Machado Assis, como outra não foi a meta de Euclides da Cunha em seu retrato de Canudos: surpreender e revelar aspectos dessa identidade. Plantada numa tradição luso brasileira de contarhistórias, utiliza o autor de O Dono do Mar os recursos da oralidade, entre mística e sentimental, mas com tons heroicos. Vai, assim, desenrolando seu fio narrativo, a que não falta uma linha irônica, misturada com diálogo de densa agressividade. O verso representar, usado no sentido habitual de atuar num palco explica o modo como Sarney dispõe sua gente nesse palco de terra, mar e ar do Maranhão. Presta ele, com isto, seu testemunho de como existe e se comporta hoje uma parte ponderável da população brasileira. Sob esse aspecto, o próprio Sarney representa o Brasil e sua gente, mesmo levando-se em conta a extrema diversidade — racial, geográfica e de comportamento — que é uma das nossas forças. Não prevalece entre nós a monotonia das nações sedimentadas, e a literatura de Sarney é um bom exemplo disto.

Para James Joyce, por exemplo, é o inglês um tipo humano de fácil identificação, e indica Robinson Crusoe como o inglês por excelência. Diz: “Os personagens importantes de Shakespeare são todos estrangeiros: Otelo é um líder mouro; Shylock, um judeu de Veneza; Hamlet, um Príncipe da Dinamarca; MacBeth, um usurpador celta; Julieta e Romeu, habitantes de Verona”, e acrescenta que o único “grande retrato de um inglês feito por Shakespeare é o de Sir John Falstaff”. Destaca então Daniel Defoe como tendo criado o inglês, Robinson Crusoé, “o verdadeiro símbolo da conquista inglesa… o verdadeiro protótipo do colonizador inglês, enquanto Sexta-feira… é o símbolo das raças subjugadas”. Eis como Joyce define Crusoe: “Todo o espírito anglo-saxônico está em Crusoe: a máscula independência; a inconsciente crueldade; a persistência; a inteligência
lenta, mas eficiente, a apatia sexual; a religiosidade prática e equilibrada; a taciturnidade calculada.”

Será difícil resumir o brasileiro em traços tão marcantes, mas, tanto nos contos anteriores como no romance de agora, José Sarney revela, principalmente na figura de Antão Cristório, o brasileiro, em tipos de homens que vêm, há quatro séculos, erguendo este país. Antão Cristório vem, assim, juntar-se a Diadorim, Ana Terra e capitão Rodrigo Cambara, a Policarpo Quaresma, Gabriela, Guma e Quincas, a Damião, Natalino e Severino, a Macunaíma e Fabiano, a Serafim Ponte Grande, numa galeria de gente de ficção que virou gente de verdade.

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