Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 18 de março de 1964
Senhor Presidente, Senhores. Deputados, a tônica de todos os discursos proferidos nesta legislatura, e já na legislatura anterior, é a grave crise nacional. Aliás, ela já se tornou um fato cotidiano na nossa vida. Acima das palavras, encontramos a gravidade do momento presente na própria divergência entre a estrutura social e a política. Há um ano, na União Democrática Nacional, ao inaugurarmos a legislatura, tentamos nós, um grupo de Deputados, fixar uma posição que desse ao partido e à Nação a clareza dos pontos de vista que nos traziam à Câmara e com os quais conseguíramos ser reeleitos em praça pública. Essa coerência de atitude já vinha de um grupo nosso, que na legislatura anterior achava que o problema que o Brasil enfrentava no momento não era somente da liberdade política, mas a inteira interdependência da liberdade política com a liberdade econômica e a liberdade social. Lançamos um manifesto em 1959, no qual procurávamos, dentro da União Democrática Nacional, estabelecer os rumos e os caminhos que haviam de nortear nossa atitude dentro do Congresso Nacional. Ao sabor das lutas que se processavam dentro do partido e fora dele, continuamos numa linha de coerência de atitude até o momento. Há um ano, dizia eu, o nosso grupo da União Democrática Nacional estabeleceu certos princípios, pelos quais procurava identificar, no presente, a linha histórica que fizera desse Partido um dos maiores do Brasil, resultando a sua presença em todos os momentos da vida pública. Se a União Democrática Nacional propugnou, no passado, pela liberdade política no Brasil, hoje, mais do que nunca, devia fazê-lo, mas não deveria deter a sua tarefa e a sua posição exclusivamente nesse terreno da liberdade política, porque ela nada vale se não aliada à liberdade social e à liberdade econômica. (Muito bem. Muito bem. Palmas).
Não havia nenhuma incoerência nessa conduta, que nós defendemos dentro da União Democrática Nacional, achando que assim estávamos cumprindo com o dever para com a nossa geração e, mais do que isso, com o próprio País. Neste momento em que realmente no Brasil esse impasse que há longos anos se processa, atinge aspectos dramáticos, não temos outra coisa a fazer senão reafirmar os pontos de vista que nos trouxeram à Câmara dos Deputados e, sobretudo, com determinação, com clareza e com isenção, focalizar e tornar presente à Nação que continuamos com a mesma coerência, com a mesma atitude, com os mesmos pontos de vista. Se nossos rumos se cruzam com os rumos traçados por outras correntes políticas no Brasil, isso não nos faz recuar em nossa posição, mas, ao contrário, nos traz a evidência de que este caminho é tão grande e verdadeiro que não é só nosso, mas se encontra entre todos os partidos, entre homens de pontos de vista de todas as condições sociais. Estamos chegando realmente, Srs. Deputados, a um impasse histórico neste País, o que a nossa geração está enfrentando e principalmente o Congresso Nacional — que é estuário de todas as representações do povo, com a conjuntura que ele tem — é o problema das reformas sociais, políticas e administrativas. Nós não podemos ladear esse problema e afastá-lo. Ele se liga, ele se intercomunica, ele se junta, indiscutivelmente, ao problema político e nós não podemos dar solução política sem que antes entrosemos essa solução política com as de maior profundidade que exigem o momento histórico e o povo brasileiro. Dizia isto porque realmente acho que o Brasil e a nossa democracia enfrentam momento extremamente difícil e perigoso. Não depende a nossa democracia, a sua sobrevivência, da vontade de ninguém, nem da resistência de grupos, mas ela depende sobretudo do esforço e da determinação de todos no sentido de dar uma solução que realmente atenda às necessidades do presente. Daí por que não desejo ladear, falando com a sinceridade que os meus companheiros de partido sempre ouviram de mim desde que aqui cheguei, falando com a sinceridade que deve nos nortear a todos e com a convicção de estar servindo ao meu País, a minha geração e a esta Casa, o nosso jogo é o jogo da realidade política. Não podemos neste instante estabelecer medidas de valor em relação a homens, a pessoas, a grupos. Certa vez, o Embaixador Osvaldo Aranha, quando Presidente da Organização das Nações Unidas, afirmou no seu discurso inaugural, em face da divisão do mundo e das correntes que se digladiavam dentro das Nações Unidas, que a massa das soluções políticas é a massa da realidade do mundo político. Nós não podemos obscurecer que as pedras que temos de jogar para solucionar o problema do Brasil de hoje têm presente todas as correntes, todos os grupos, todas as inquietações. Não devemos solucionar pela força, subjugando a minoria ou a maioria, porque democracia é regime de maioria e, muito mais do que isso, é regime que assegura às minorias o direito de existir, o direito de sobreviver. Há uma vontade da maioria que está exigindo de todos uma reforma profunda nos métodos sociais, políticos e também administrativos. Daí por que não desconheço que o Congresso Nacional, que as instituições políticas, correm perigo, mas elas não hão de correr perigo tanto pela vontade de um só homem, pela vontade de algum grupo, mas correm muito mais perigo pela tática que os homens públicos estão a empregar — a mais errada para solucionar o problema do Brasil de hoje.
Não podemos dar solução para a sobrevivência do Congresso tendo, ao invés de um Congresso forte, capaz de cumprir sua missão constitucional, um Congresso que ladeie soluções e se lance no intrincado jogo da inércia política. Daí não podermos recusar, como uma prática para a sobrevivência das instituições e do Congresso, o debate das reformas que está posto. Não queremos saber se foi oportuno ou inoportuno. Não queremos saber se está a jogá-lo ou a comandá-lo o Sr. Presidente da República; não queremos saber se estão a condená-lo grupos que não deviam condená-lo. Devemos considerar é que o problema das reformas está presente e exige uma decisão de todos os homens públicos do Brasil. (Muito bem.) No fim, se esta decisão não atender à média daquilo que representa a necessidade e a tranquilidade do povo brasileiro, aí, então, corremos o maior perigo, porque as dificuldades, os embaraços que as soluções possam trazer serão gravosas e terríveis para o regime democrático.
Mas não devemos morrer antecipadamente, procurando, em vez de cumprir nossa missão constitucional, ladear o problema para buscar soluções políticas.
Acredito, pessoalmente — e, assim fazendo, penso interpretar a vontade de uma parcela ponderável desta Casa — que precisamos fazer que o Congresso Nacional funcione a todo vapor, discutindo os problemas lançados ao seu debate. Por que nos recusarmos liminarmente a essa discussão? Se jogarem ao Congresso o problema das inelegibilidades, estaremos aqui para discuti-lo, para dar-lhe solução constitucional, que a maioria deste plenário há de exigir. Não devemos entender que o simples debate do problema seja desairoso para o Brasil.
A reforma agrária, devemos discuti-la, votá-la, urgentemente. Será a sobrevivência desta Casa e do próprio regime. Em caso contrário, poderemos ficar à mercê da vontade, do temperamento, da exploração ou das palavras não só do Presidente da República, mas de qualquer grupo de políticos que desejem fechá-la, fechando o caminho das soluções democráticas para o Brasil.
Eu e minha geração temos autoridade para fazer tais afirmativas. Nasci e cresci num período em que a liberdade política não existia neste País, em que não havia o direito de opinar. Eu mesmo, menino ainda, aos 14 anos fui preso nas ruas de minha cidade, quando lutava em prol das liberdades políticas. Temos sido coerentes até hoje. Nosso comportamento mantém-se ilegível. O mesmo acontece com a maioria do Congresso, porque foi através do processo democrático que o povo brasileiro conseguiu chegar ao ponto a que chegamos.
O regime de opressão e de opróbrio jamais satisfez ao povo, mas às minorias que conseguem empolgar o poder. Foi através da democracia, da manifestação do pensamento em praça pública e do voto que os trabalhadores conseguiram conquistar a situação de que hoje desfrutam. Por isso mesmo recuso-me a acreditar que uma política popular possa em algum momento conjugar-se com as supressões das liberdades políticas. (Muito bem.)
O Sr. Celso Passos — Deputado José Sarney, no momento em que V. Exa inicia seu discurso, lembrando que há um ano exatamente um grupo de deputados udenistas lançava, em seu partido, um manifesto em que alinhava princípios colhidos no programa partidário como norma de atuação parlamentar, quero dizer que, em meio às decepções, às calúnias, às injúrias e às incompreensões de que temos sido vítimas nesta Casa e, por aí afora permanecemos, com raras e excepcionais defecções, com o mesmo pensamento de então, isto é, de que dentro do programa do nosso partido, dentro dos princípios que norteiam a organização de um grupo de vanguarda, estão as verdadeiras soluções para os grandes problemas nacionais. V. Exa não fala só para nós, mas para todos aqueles que permanecem fiéis ao manifesto da vanguarda udenista. (Muito bem.)
O SR. JOSÉ SARNEY — Muito obrigado a V. Exa. Verifico a inteira sintonia dos companheiros da União Democrática Nacional que integram nosso grupo com as palavras que venho expendendo desta tribuna. Mas entendo que esse ponto de vista nosso é muito mais do interesse do futuro do Brasil e de correntes que se integram em todos os partidos do que nosso.
Demonstra clarividência e patriotismo. Há muitos anos, dentro de um partido democrático como o nosso, nos orientamos por esta linha. A nós, vêm hoje juntar-se setores ponderáveis da opinião pública do Brasil.
O Sr. Roland Corbisier — Nobre Deputado José Sarney, para nós, do Partido Trabalhista Brasileiro, é uma satisfação ouvir a palavra de V. Exa que representa, sem dúvida, os setores mais lúcidos e esclarecidos da União Democrática Nacional. Porque, ainda ontem, nesta Casa, ouvimos constrangidos e surpreendidos e, diria mesmo, estupefatos, a declaração de que a expressão “reformas de base” ou “reformas de estrutura” era um pregão comunista. Esta afirmação, nobre Deputado, traduz, revela incompreensão tão grave, tão dolorosa, tão dramática incompreensão do que está acontecendo atualmente no País, que realmente é constrangedor verificar que homens que participam de uma parcela ponderável das responsabilidades do poder, homens responsáveis pelo encaminhamento nesta Casa dos grandes problemas nacionais e, sobretudo, as suas soluções revelam tamanha impermeabilidade por aquilo que hoje representa, não o capricho do Presidente da República, mas uma exigência objetiva, como temos dito e repetido tantas vezes do próprio processo de desenvolvimento em curso no País. E mais que isso, Deputado José Sarney, essas reformas hoje chamadas de base, da estrutura que estão sendo preconizadas com tanta energia pelo Presidente da República não são de modo algum reformas socialistas, predatórias, confiscatórias, subversivas. Longe disso ao contrário são reformas que visam consolidar o regime, são reformas capitalistas a começar pela própria reforma agrária, que procurando tornar a terra acessível a todos àqueles que nela trabalham e a fazem produzir com seu suor, os seus esforços e o seu trabalho, não faz senão multiplicar o número dos que terão interesse na manutenção e consolidação do regime. A reforma agrária é uma exigência do próprio capitalismo brasileiro porque não é possível falar em desenvolvimento, isto é, em industrialização do País, sem falar em consolidação e expansão do mercado interno. No entanto, apesar disso, embora essas reformas sejam reformas capitalistas conservadoras que visam consolidar o regime, a incompreensão de certos setores conservadores e alguns deles reacionários, essa incompreensão, essa intransigência pode realmente agravar até o limite do intolerável a contradição existente entre o Poder Legislativo e não propriamente o Poder Executivo: a contradição existente entre o Poder Legislativo e o clamor do povo brasileiro, que clama por essas reformas que se tornam cada dia mais inadiáveis e mais urgentes. V. Exa está de parabéns ao exprimir neste momento, nesta Casa do Parlamento, o pensamento dos setores mais lúcidos e mais esclarecidos da União Democrática Nacional. Obrigado.
O SR. JOSÉ SARNEY — O aparte de V. Exa eminente Deputado Roland Corbisier, dá-me a mesma alegria com que V. Exa recebeu o meu aparte, sobretudo porque reconhece que no partido de V. Exa — se V. Exa aludiu ao problema do partido neste momento, deve ter sido de certo modo por uma impropriedade vocabular, porque justamente o que eu procurava focalizar é que não há realmente problema de partido, e se V. Exa exprime também esse ponto de vista há de reconhecer que no seu partido, como em todos os partidos, há homens que pensam exatamente aquilo que V. Exa acaba de dizer e por uma deturpação dos fatos reconhecem que as reformas de base podem ser em algum momento termos de uma política extremista — reconhece V. Exa, dizia, que no seu partido também há homens que pensam de outra maneira como existem em todos os partidos. No momento em que vivemos, se fizermos um corte na nossa história política, ele há de demonstrar que essa bandeira contraria a reforma que V. Exa encarna. Ela não é somente de alguns setores da União Democrática Nacional, e se alguns companheiros nossos defendem esse ponto de vista, eles se identificam com muitos companheiros não só do partido de V. Exa como do Partido Social Democrático, como de todos os partidos desta Casa. O que nos dá a prova e, sobretudo, a evidência da veracidade daquele impasse que nós verificamos no País é que as estruturas políticas se diluíram, que as querelas pessoais se dissolveram, porque acima e mais profundo do que tudo isso outra força está nascendo, que está dividindo os homens, cavando sulcos profundos nos partidos, capazes de não os identificarmos mais através de legendas partidárias, mas tão somente através de compartimentos estanques que se classificam dentro de opiniões sobre partidos políticos, opiniões sobre legendas partidárias, opiniões sobre reformas, enfim, um conjunto de nuances que nos dá a fisionomia inteiramente amorfa da atual realidade política do Brasil.
O Sr. Ernani Sátiro — Nobre colega Deputado José Sarney, quero começar congratulando-me com V. Exa pela maneira inteligente e sempre eloquente como desfez a intriga com que o aparteante anterior procurou colocar V. Exa contra o seu próprio partido. V. Exa revelou-se nesse episódio o grande parlamentar que nós sempre admiramos.
O SR. JOSÉ SARNEY — Muito obrigado a V. Exa.
O Sr. Ernani Sátiro — Quanto à posição de V. Exa, como de outros companheiros, entre os quais quero colocar o que aqui há pouco acabou de apartear V. Exa, o nobre Deputado Celso Passos, V. Exas sempre tiveram, dentro do nosso partido, essa atuação de vanguarda, sem que disto resultasse intolerância, nem intransigência, nem desapreço da nossa parte. E se porventura houve acusações e houve ofensas, a que se referiu o Deputado Celso Passos, elas nunca partiram nem da direção, nem da grande maioria do nosso partido. Eu mesmo, conhecendo a posição de V. Exa, divergente em muitos pontos da minha posição, fui dos que mais se bateram para que V. Exa, com justiça, fosse eleito um dos Vice-Presidentes do nosso Partido.
O SR. JOSÉ SARNEY — Muito obrigado a V. Exa.
O Sr. Ernani Sátiro — No que diz respeito às reformas, a nossa divergência, ou seja, as do ponto de vista de V. Exa como as de muitos outros, quer dizer, da maioria da União Democrática Nacional, essas divergências se situam principalmente no processo, porque enquanto nós, a maioria da União Democrática Nacional, nos batemos aqui pelas reformas, inclusive pela reforma agrária, através do projeto Milton Campos ou do Projeto Aniz Badra, o Sr. Presidente da República, demagogicamente…
O Sr. Armando Carneiro — Não apoiado.
O Sr. Ernani Sátiro –… porque de usar a roupagem reformista, o Sr. Presidente da República nunca quis essas reformas…
O Sr. Armando Carneiro — Não apoiado.
O Sr. Ernani Sátiro —… porque só lhe interessa a reforma da Constituição, não apenas para reforma agrária, mas para violação da Constituição da República que lhe permita continuar como Presidente da República, inelegível que ele é. (Não apoiados.). Por conseguinte, o ponto de vista de V. Exa pode conciliar-se inteiramente com o nosso. Agora mesmo existe na Ordem do Dia o Projeto Aniz Badra, que o Governo procura bloquear, como bloqueou o Projeto Milton Campos para que, através de sua demagogia, para que através dos seus processos, procure atirar contra nós a acusação de que somos anti reformistas. Estou de acordo com V. Exa no que diz respeito ao ideal de reformas daquilo que naturalmente deve ser reformado. Mas não para a transformação, não para se modificar na sua profundidade as instituições democráticas como se diz nessa Mensagem que é mais um manifesto comunista do que uma Mensagem de um Presidente da República dirigida ao Congresso Nacional. (Palmas e não apoiados.)
O SR. JOSÉ SARNEY — Sr. Presidente, recebo o aparte do nosso eminente líder, Deputado Ernani Sátiro, como mais uma demonstração da clareza e da veracidade da tese que estou defendendo nesta tribuna. Em segundo lugar, não temos por que recusar a evidência também de que S. Exa realmente usa de absoluta franqueza ao dizer que as nossas são divergências de processos. Ao iniciar este discurso, tive a oportunidade de focalizar nosso pensamento de que os problemas políticos do Brasil de hoje não podem resolver-se, absolutamente, na área política, mas têm de receber soluções mais profundas. As de cunho político não resistirão: vigirão inteiramente fora da realidade as soluções alicerçadas na política. Daí por que, ao enfrentar o problema da posição do Presidente da República, acho questão muito pequena, em face do problema muito maior. S. Exa, por imperativo constitucional, exerce mandato perecível, mandato que tende a extinguir-se. Mas aquelas soluções que hão de marcar o futuro e a presença do Brasil no nosso Hemisfério e no mundo são imperecíveis, obras de muitas gerações. E a nossa há de dar sua parcela, sem embargo das soluções absolutamente divergentes. V. Exa diz muito bem, não é motivo de desonra para o nosso partido, mas muito mais de enaltecê-lo, que nossas divergências possam ser colocadas dentro do partido como fora dele, na tribuna da Câmara como na tribuna das praças públicas, porque até hoje constituímos um partido livre e democrático. No dia em que a União Democrática Nacional não tolerasse a existência de nossas coerências e de nossos ideais, se esse partido democrático ingressasse pelo caminho da intolerância, teríamos chegado ao fim, pois esse território de debate, o único que existia, já não estaria aberto aos homens que desejam pensar livremente. Se amanhã a União Democrática Nacional não nos der o direito que nos deu em Curitiba, que nos dá agora e nos dá na nossa bancada, nós aí teríamos, sim, necessidade e motivos para deixar de achar, não que abandonávamos a UDN, mas que a UDN nos abandonava naqueles ideais que tinham feito toda a nossa vida dentro dela. Daí por que acho que V. Exa faz muito bem, trazendo a esta Casa os motivos das nossas divergências, que não são tão profundas, mas são de natureza a marcar posições nítidas e a configurar posições políticas de extrema coerência. Estou defendendo aquilo que V. Exa me viu defender desde o dia em que me teve como companheiro nesta Casa e que o povo da minha terra também me viu defender desde os dias em que pleiteei o seu apoio para chegar a esta tribuna mais alta.
Tenho amor à democracia porque só através dela eu, que percorri os caminhos mais difíceis do povo, vim das suas camadas mais humildes, sem pertencer a castas nem grupos, pude chegar a esta situação de dialogar com os companheiros na mais alta tribuna do País. E se hoje correntes políticas do meu Estado me escolhem para que seja o intérprete contra a oligarquia que lá domina há tantos anos, só é possível isso através da democracia, dos caminhos da democracia. Mas reconheço que, muito mais do que a liberdade política, ela está perecendo, porque estão a solapar no fundo das suas bases, no fundo dos seus ideais, no fundo das suas pilastras e há aquilo que é muito mais terrível, que é a possibilidade de a maioria do povo ser esmagada por uma minoria que, muitas das vezes, não há compreendido a necessidade que têm as democracias para sobreviverem, de adaptarem-se às contingências e às soluções dos problemas sociais.
O Sr. Wilson Martins — Permite V. Exa um aparte?
O Sr. Presidente (Aniz Badra) — A Presidência informa ao nobre orador que lhe restam apenas três minutos para concluir a sua oração.
O Sr. Wilson Martins — V. Exa expõe não somente o seu pensamento, mas, conforme foi frisado pelo nobre Deputado Celso Passos, de um grupo de deputados da União Democrática Nacional. No entanto, quando V. Exa com eloquência expõe esse pensamento comum, julgo necessário vir à tribuna para, em aparte a V. Exa, aduzir alguma coisa que possa expor com maior franqueza o nosso pensamento em torno do assunto, neste instante. Somos reformistas, inclusive com a modificação da Constituição, mas não admitiremos que se modifique a Constituição no capítulo das inelegibilidades. Devo dizer também que, quanto a mim, o comportamento do Sr. Presidente da República não me dá absolutamente segurança de que ele não almeje o continuísmo. No último comício, realizado na Guanabara por S. Exa, que ouvi pelo rádio, discordei profundamente dos termos com que o do de S. Exa, o Deputado Brizola, se referiu ao Parlamento Nacional. No instante em que V. Exa aborda nossa posição em relação ao momento político atual, creio que não podemos silenciar neste aspecto. Meu pensamento, neste particular, se choca, colide frontalmente com a posição do Deputado Leonel Brizola no que ela tem de atentatório às liberdades públicas, às liberdades políticas e à liberdade desta Casa do Parlamento Nacional. (Palmas.)
O SR. JOSÉ SARNEY — Muito obrigado a V. ExA.
Sr. Presidente, irei concluir. Realmente, meu pensamento foi bem interpretado pelos companheiros de partido. Não acho possível, para enfrentar o problema com a maior clareza e sem subterfúgio algum, que dependa da vontade do Sr. Presidente da República ou da nossa vontade — vontade pessoal — o problema do seu continuísmo ou do seu não-continuísmo. Se ele deseja continuar e tiver à sua frente um Congresso vitalizado e vital, um Congresso que cumpra a todo o vapor suas funções constitucionais, em sintonia com a realidade política do Brasil, sua vontade não prevalecerá contra o Congresso. Se, por outro lado, o Presidente da República não tiver vontade de continuar e o problema social agravar-se cada dia mais, e ao Deputado Abel Rafael juntar-se o Deputado Corbisier, juntarem-se centenas de partidários seus, e na praça pública, em vez do debate que aqui se trava, exclusivamente do jogo floral das palavras, se em vez desses relatos do Deputado Abel Raphael tivermos os relatos dos mortos em praça pública e se, ao lado disso, se trouxer à consciência da Nação o problema da República que possa prevalecer, mesmo que ele não deseje ficar, mas sair; porque, nesses momentos, sua permanência ou saída será um simples acidente, pois não poderá salvar a democracia no Brasil.
Esta realidade o Congresso Nacional tem o dever de enfrentar sem meias palavras e sem nenhum subterfúgio. Na realidade, o que nos pode salvar é a unidade de todos, a fim de enfrentar os problemas sociais e econômicos do Brasil.
Não estamos fazendo coisa nova, e temos um exemplo histórico, o maior dos nossos exemplos, nos Estados Unidos da América do Norte. Lá também, deve ter havido, no passado, em circunstâncias em que o mundo não se encontrava tão amadurecido, a necessidade de aquela nação definir os rumos que lhe dariam no futuro o comando da humanidade, e os rumos haveriam de lhe dar talvez o caminho de uma nação socialista.
Mas, na verdade, não pode existir democracia capitalista, como a desejamos, nos termos em que ela é praticada nos Estados Unidos, em que os fatores da produção também não estejam representados dentro do processo político.
O capital é importante nas democracias capitalistas, mas também muito importante, igual a ele, é o trabalho. Nos Estados Unidos, o Presidente Franklin Roosevelt, aquele inexpugnável sentinela da democracia tal como a desejamos e praticamos, também teve de enfrentar no momento mais difícil daquela nação, situação talvez tão angustiosa quanto a nossa. E que fizeram os grandes homens de lá? Conjuraram-se para uma solução política capaz de sufocar os grupos que estavam querendo modificá-la, aprisionaram, desterraram, mataram ou jogaram o país na subversão? Não. Alguns homens tiveram a grandeza, que significou a consolidação da democracia americana, de unirem-se em torno de um programa político que constituiu o New Deal. E, hoje, nos Estados Unidos, quem conhece o funcionamento da democracia americana há de compreender que ela vive num equilíbrio em que as corporações dos trabalhadores têm poder tão grande, igual ao das corporações das empresas. Isto deu a eles o quê? Os trabalhadores têm os salários mais altos de todo o mundo, porque os problemas entre o capital e o trabalho estão inteiramente superados. Quando vejo, nesta tribuna, defender-se a necessidade de continuarmos a consolidar a democracia capitalista no Brasil e, ao mesmo tempo, julgar-se insolúvel o problema dos sindicatos, não compreendo como se pode conciliar o sistema de caminhar no sentido da democracia capitalista liberal, que se deseja, e o problema de alijarem-se deste processo as forças do trabalho, dos trabalhadores, dos sindicatos, dos operários e dos estudantes. Eles existem, são uma realidade. E a democracia só pode sobreviver no momento em que não houver a preponderância de um grupo mais forte contra uma minoria, mas possa ser o encontro de opinião entre os proprietários progressistas e os trabalhadores. Nesse dia, ela poderá sobreviver. Fora daí, não vejo como possamos realmente dar outra solução.
Este o sentido das minhas palavras, este o sentido da minha presença nesta tribuna: marcar uma posição no momento em que considero que cada um deva marcar sua posição. Temos como resultado de tudo isso uma inflação em termos dos mais terríveis e também não podemos concebê-la como fenômeno monetário simplesmente, mas como fenômeno estrutural, associado a forças muito mais profundas.
Daí por que estas minhas palavras devessem ter o sentido de dizer ao Congresso que não nos salvará uma caminhada apressada de 60 dias para nenhuma cidade; que não nos salvará uma reunião de líderes; que não nos salvará a formação de blocos; que não nos salvarão as brigadas do Deputado Abrel Raphael, como também não nos hão de salvar as represálias ou as brigadas do Deputado Roland Corbisier. A democracia só poderá ser realmente salva no dia em que possamos tê-la para defendê-la; no dia em que ela não precise de grupos, mas tenha a defendê-la a vontade da maioria do povo brasileiro, consolidado nas consciências e no Parlamento. Fora daí, eminente companheiro, fora daí, Srs. Deputados, fora daí, Sr. Presidente, o que estamos fazendo é esperar que de um momento para o outro sejamos mortos, que vejamos rolar este País num processo que ninguém sabe para onde vai, que ninguém pode prever para onde vai, mas que, certamente, selará nossa presença nas páginas de nossa história como uma geração que se há demitido, que não teve a clarividência de ver, no devido momento, as dificuldades que enfrentamos.
Minha palavra não tem o sentido de dividir, mas de unir; não representa uma controvérsia, mas uma unidade, unidade que desejo conseguir para que tenhamos força a fim de retirar do debate eminentemente político a solução de nossos problemas e dar ao Brasil, à Câmara e às nossas instituições a solidez que todos desejamos que elas tenham, para praticarmos no Brasil uma democracia que seja duradoura, justa e humana. (Muito bem; muito bem. Palmas. O orador é cumprimentado.)