Os homens se unem por uma proteção comum — diz Hobbes no Leviatã — “por medo de morte e feridas”. É para isso que vivemos num Estado e fazemos um pacto social. Queremos acreditar que ele vale e podemos viver sem medo, mas infelizmente sabemos que a insegurança pública atinge a todos em nosso País. É o que repete sempre o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Os números deste ano confirmam a lenta diminuição dos crimes de morte violenta desde a implantação do Estatuto do Desarmamento. Entretanto eles ainda são Continue a ler
O Brasil levou muito tempo para alcançar um dos pontos essenciais da democracia, que é o voto. Durante o Império, o voto foi sempre objeto de ansiedade e preocupação. O primeiro ponto era a questão de quem a ele tinha direito. Desde a eleição para a Assembleia Constituinte o voto foi censitário, isto é, restrito a quem preenchia certas condições econômicas. A Constituição de 1824 manteve o critério: eram eleitores todos os cidadãos, excluídos os menores de 25 anos, os filhos família, os criados de servir, os religiosos e os Continue a ler
Dividi minha vida entre a literatura, minha vocação, e a política, meu destino. Num ponto, entretanto, esses dois eixos se uniram para formar o que foi minha causa parlamentar e política: a defesa da cultura. A cultura é o grande centro definidor de um país, de um povo. É sua identidade, com retrato, impressão digital e até DNA. Por isso nada é mais importante que a defender. Mas ela tem tantos inimigos! Um traço da visão míope dos economistas — que dirigem os governos como representantes do abstrato “mercado” que Continue a ler
Ao longo da História da Humanidade a casa — o espaço pessoal de uma família, fosse de pedra ou de couro, fixo ou móvel — sempre teve um caráter de refúgio, desde para o visitante, acolhido com o que se tinha de melhor, até à garantia de sua inviolabilidade. A Constituição acolheu esse princípio, estabelecendo que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador”. O que me levou a fazer política foi a ideia de que a sociedade só se sustenta — o Continue a ler
Fernando Lyra era grande amigo de Tancredo Neves, que gostava muito dele, por ter um jeito aberto, simpático, corajoso e por ser bom amigo. Todos sabiam que o Fernando Lyra seria ministro do novo governo. Julgava-se até que ele seria o Chefe da Casa Civil. Tancredo, com sua grande habilidade, estava montando o Ministério. Queria colocar Freitas Nobre. Teve dificuldade de encaixá-lo. Affonso Camargo dizia que não queria o Ministério do Transporte. Escolha fácil foi a do Carlos Sant’Anna: homem de caráter extraordinário, muito correto e leal a Tancredo, além Continue a ler
Fez parte das articulações para conter as resistências, na área militar, à candidatura de Tancredo Neves, um encontro dele com o então Ministro do Exército, General Walter Pires. Ficou encarregado de fazer esse contato e articular a reunião o Secretário da Receita Federal, Francisco Dornelles — depois ministro, senador, governador —, que tinha boas relações com o general. Foi tudo organizado em sigilo absoluto, de forma que ninguém jamais soubesse desse encontro, que não teria boa repercussão em nossas hostes. Feito o agendamento, Tancredo foi visitar o General Walter Pires Continue a ler
Tancredo contou-me que, no Governo de Raul Soares —Presidente (governador) de Minas Gerais de 1922 a 1924 —, em Minas, ainda havia no Palácio da Liberdade um corredor por onde entrava o Presidente do Estado toda manhã. Em bancos laterais desse corredor ficavam os pedintes, e ali o Presidente fazia o seu primeiro despacho: uns pediam passagem, outros, emprego etc. Entre aquelas pessoas, havia uma senhora que nunca lhe pedira nada, mas todo dia ali se sentava. Até que, passadas umas duas semanas depois que assumira, Raul Soares perguntou-lhe: — E Continue a ler
Bobbio dizia que a velhice era muito boa e cheia de encantos, o maior deles o gosto de matar saudades. Mas eu acho que o divertimento maior da velhice é o espaço de contar histórias, bom para encher e passar o tempo. As operações do Ministério Público e da Polícia Federal, seguindo o costume das operações militares, têm sido férteis em criar cognomes e às vezes até os símbolos gregos e latinos são usados para denominar o trabalho. Assim é que encontraram o nome de Furna da Onça, que poucos Continue a ler
A UDN foi o grande partido do Brasil. Seus quadros constituíam a elite nacional, juntando conservadores com a esquerda democrática, como os dois irmãos que traziam incorporados em sua biografia a luta e o exílio curtidos na oposição a Getúlio Vargas: Otávio Mangabeira e João Mangabeira, brilhantes e combativos. Organizados em partido depois da queda do Getúlio, tinham por hábito reunir-se toda quarta-feira em sua sede, na Rua México, 3, onde as diversas alas e divergências cruzavam espadas. Quando eu cheguei ao Rio, em 1955, um ano após o suicídio Continue a ler
Severo Gomes e Henriqueta, sua mulher, pessoa de caráter e coragem, acompanhavam Ulysses e Dona Mora no trágico voo de helicóptero em que desapareceram ao largo de Angra dos Reis. Joaquim Nabuco, ao escrever esse livro extraordinário que é Um Estadista do Império, nos dá uma lição que jamais aprenderemos: fazer perfis, colocar em poucas linhas um retrato dos homens. É quase impossível fazer sequer um desenho de Severo Gomes. Dizer que foi um patriota é pouco. Em Severo Gomes a ação política estava indissoluvelmente ligada à sua personalidade. Como Continue a ler
Ranieri Mazzilli, deputado pelo PSD de São Paulo, foi, durante muitos anos, presidente da Câmara. Tinha um aspecto de lutador de boxe ou barítono, com uma envergadura muito grande, e falava com certo ar de autoridade, o que lhe dava o respeito dos seus colegas e, ao mesmo tempo, condições para dirigir os trabalhos com muita competência. Quando veio a Revolução de 64, o Presidente Castello pediu-lhe, e à sua Bancada na Câmara, que apoiassem o nome do Deputado Bilac Pinto para substituí-lo, uma vez que já ocupava o cargo Continue a ler
“Pode de Nazaré vir alguma coisa boa?”, pergunta Bartolomeu a Filipe, no começo da vida pública de Jesus. Pois foi nesta humilde cidadezinha da Galileia que o Criador escolheu um casal de noivos, Maria e José — ela, a pureza absoluta; ele, um carpinteiro da linhagem de Davi —, para em Maria encarnar Jesus. Seu Filho vem para que tenhamos ao nosso lado a face de Deus compreensível para os homens, uma presença para nos amparar nos momentos maus, para nos consolar nas horas amargas, distantes da terrível presença de Continue a ler
Otávio Mangabeira fora deputado federal desde 1911, chanceler no governo Washington Luís, exilado, novamente deputado, deputado constituinte, governador da Bahia, senador, participara da fundação da UDN e era membro da Academia Brasileira de Letras desde 1934. Velho, nos últimos anos de sua vida, morava no hotel Glória; se não me engano, na suíte 901, no nono andar. Recordo-me de que ele tinha os pés já bastante inflamados e andava com chinelas de plumas, muito confortáveis. Ali recebia os amigos e admiradores e os líderes dos partidos políticos, que sempre desejavam Continue a ler
O doutor Milton Campos, um dos grandes nomes da UDN, intelectual brilhante, advogado, jornalista, foi deputado constituinte, governador de Minas, senador, candidato a vice-presidente da República, ministro da Justiça. Estava, certa vez, no aeroporto do Rio, quando se aproximou dele uma sessentona, daquelas mulheres engajadas na política: — Doutor Milton, eu sou da UDN, mas da UDN verdadeira: fui uma das viúvas da rotativa e sou da UDN da calúnia! Da calúnia, doutor Milton, como o senhor! O fato é que Carlos Lacerda promovera uma campanha para comprar uma rotativa nova Continue a ler
Quando cheguei à Câmara, lá estava o General Flores da Cunha, de terno branco, sempre de roupa clara, gravata borboleta, cabeça branca e contando histórias dos pagos gaúchos. Sua história já era, então, uma lenda: fora deputado desde a legislatura de 1913, senador em 1928, um dos líderes da Revolução de 30, governador do Rio Grande do Sul em 1935; exilado no Estado Novo, voltara ao Brasil em 42 e fora preso na Ilha Grande; constituinte pela UDN, tornara-se presidente da Câmara em 1955. No primeiro dia em que nos cruzamos, Continue a ler
Nos 150 anos da Independência, em 1972, o Coronel Otávio Costa, chefe da comunicação do Médici, teve a ideia de criar uma diplomacia dos ossos para reavivar o nosso sentimento patriótico: trouxe de Portugal os ossos de D. Pedro I, que percorreram o Brasil inteiro e, depois, tiveram o devido repouso no Panteão do Ipiranga, em São Paulo. O caixão não podia ser aberto, fazia parte do acordo Portugal-Brasil, porque havia sempre o perigo de ossos trocados. E os portugueses bem sabem disso: a urna que continha os ossos de Continue a ler
Um dos grandes amigos de meus primeiros anos de política foi Neiva Moreira. Alguns anos mais velho do que eu, Neiva era “americano” de Nova Iorque, município do Maranhão. Começou no jornalismo no Pacotilha, jornal de São Luís,que foi comprado por Chateaubriand, que levou Neiva para os Diários Associados no Rio de Janeiro. Fomos colegas na Câmara dos Deputados nas três legislaturas que lá passei. Neiva era um grande político, tinha espírito público e, sobretudo, um temperamento revolucionário, o que fez com que chegasse ao extremo: quando Brizola criou o Continue a ler
Goya foi uma testemunha muito especial do que aconteceu na Espanha quando Napoleão resolveu alterar a ordem mundial. Formam-se, então, dois pontos de vista: o do homem de Estado e chefe militar que se colocaria, não só em sua própria visão, mas na da História, num patamar mais elevado que os inúmeros outros que pensaram estar na mesma situação de fazedor de destinos; e a do artista — também o maior de seu tempo — que compreendeu a alma humana em todas as suas nuances, inclusive a da sua degradação Continue a ler
A glória política é efêmera. Como dizia Malherbe das rosas, vivem o espaço de uma manhã. Ela vive de instantes, de uma atitude, de um discurso, de um gesto e logo cai no domínio do esquecimento. Para citar um exemplo maior, veja-se a imagem do Winston Churchill, que é muito mais lembrado pelo anedotário dos seus apartes, do que como o extraordinário homem que, com uma coragem imensa, contra quase todos os colegas da Câmara dos Comuns, alertou para o perigo da Alemanha e, em seguida, comandou a Segunda Guerra Continue a ler
Em 1961, eu estava na ONU, na delegação brasileira — presidida por Afonso Arinos de Melo Franco e composta por Gilberto Amado, Antonio Houaiss, Araújo Castro, Guerreiro Ramos, Josué de Castro e outros — à 16ª Assembleia das Nações Unidas. Ali, no Comitê de Política Especial, tive oportunidade de ter como colega a “Mãe de Israel”, Golda Meir. Odylo Costa, filho, o melhor amigo que tive em minha vida, fez uma carta recomendando-me a Gilberto Amado, que era, desde sua criação em 1948, a figura central da Comissão de Lei Continue a ler
A sociedade se organizou como Estado para enfrentar o medo da morte violenta, diz a velha fórmula de Hobbes. Se não evita a morte, todo o Estado desmorona, como um castelo de cartas. E, infelizmente, há muito tempo o Brasil tem falhado nesta tarefa. Tenho escrito aqui repetidamente contra a violência, que nos cobra preço maior do que o de muitas guerras, atingindo os que morrem e suas famílias, também vítimas irremediavelmente marcadas. Os episódios recentes no Rio de Janeiro acentuam uma das faces mais terríveis desse massacre: o aspecto Continue a ler
Zé Bonifácio — Zezinho, entre os seus colegas de Parlamento, José Bonifácio Lafayette de Andrada —, que foi signatário do Manifesto dos Mineiros e presidente da Câmara dos Deputados, era tido como homem de muito bom humor que gostava de contar pilhérias e, não raro, fazia graça com seus colegas. Mas a mim sempre tratou muito bem e com grande amizade. Era um político muito esperto, de tal modo que, depois de 1945, transitava entre os grupos dos dois líderes que comandavam a UDN mineira, Magalhães Pinto e Milton Campos, conseguindo não Continue a ler
Diante das revelações que saem agora nos Estados Unidos, de que Trump queria acabar com a Constituição americana, com mais de duzentos anos de existência, e dar um golpe de Estado, vemos que a velha realidade do sonho de Monroe — da “América para os americanos” e de um continente integrado — desapareceu. Na verdade, sempre existiram três Américas. Uma, a América do Norte, rica, saxônica, de onde saiu o grande país que dominava o mundo, liderando política e economicamente os países dos cinco continentes e disseminando as ideias de Continue a ler
Falei, na semana passada, que precisamos de duas reformas urgentes: a do sistema de governo, adotando o parlamentarismo, e a do sistema eleitoral. Eleição significa representação. Desde a Revolução Francesa acabou-se com a ideia de que grupos podiam designar pessoas para transmitir uma reivindicação — o chamado voto imperativo — e passou-se a eleger quem representa os cidadãos. É o ato de votar que afirma a cidadania no Estado democrático. A grande dificuldade é fazer com que o representante represente de verdade o povo. Cabe ao sistema eleitoral garantir isso, Continue a ler
Não há palavra mais usada e gasta no vocabulário político do que reforma. Quando as coisas precisam mudar e parecem gastas o caminho a que se lança mão é o apelo a reforma. Vem do Império o primeiro chamado forte a ela, para conjurar a República que já surgia. E veio do conselheiro Nabuco de Araújo, conservador que se tornou liberal e bradou, num momento de grandes dificuldades: “OU A REFORMA OU A REVOLUÇÃO!” Dizia que se não se fizesse uma grande reforma no sistema político inevitavelmente viria a revolução. Continue a ler
Mais uma vez, esta semana, o Brasil proibiu a entrada de estrangeiros por via terrestre ou aquática. Curiosamente não proibiu o acesso por via aérea. Essa tentativa de impor barreiras físicas faz parte da rotina em todo o mundo desde o desenrolar da pandemia de Covid-19. Não é a primeira vez que se impõem restrições em razão de uma doença. Já o Levítico mandava isolar os leprosos. Avicena, o grande sábio que revelou Aristóteles para o Ocidente, recomendava a separação dos doentes com doenças transmissíveis. E na transição entre Idade Continue a ler
O mundo começa a se recuperar, com alívio, de um dos maiores problemas da pandemia: o cansaço da solidão, o desgaste psicológico do isolamento. Infelizmente, aqui no Brasil, ainda vamos continuar nessa provação de ficar longe da família, dos amigos, dos companheiros de trabalho, de toda a sociedade. Há um ano, ainda no espanto com as dimensões da doença, eu lamentava o meio milhão de mortos no mundo. Hoje esse é o número no Brasil. Há mais de um milhão de pessoas em tratamento, as UTIs estão cheias, e os Continue a ler
Tenho escrito muitas vezes que a Covid-19 mexeu em tudo e não sabemos ainda até que ponto chegará. Provocou de maneira mais dramática a saúde, com uma crise sanitária que pegou todos os países de surpresa, mostrando que raros tinham estrutura para enfrentar os problemas que surgiram. Gerou em seguida uma crise econômica que provocou a quebra das pequenas empresas, com repercussões na organização da vida nas cidades, no transporte, nos empregos, com todos os dramas familiares que se pode imaginar, a cujas lágrimas é difícil ter coração para resistir. Continue a ler
Todos elogiam e tiram o chapéu à liberdade de imprensa. Muitas vezes é um gesto repetitivo para agradar àquela que faz ou desfaz a opinião pública, outras vezes é medo de desafiá-la, mesmo que seja desafiar a verdade. Mas qualquer que seja a motivação, tudo será pouco no elogio ao trabalho desenvolvido pela mídia nos tempos trágicos que estamos vivendo da atual Pandemia. A Primeira Emenda da Constituição Americana, que faz parte das dez emendas do Bill of Rights, garante as liberdades individuais: de religião, opinião, imprensa, reunião, petição. Jefferson, Continue a ler
Assumi a Presidência da República em março de 1985. Meu espaço para deflagrar minhas próprias ideias era muito estreito. Não tinha partido político. Minha filiação ao PMDB era uma exigência legal. Minha base política era a dissidência que me acompanhara vinda do PDS, tendo à frente o grande homem público, exemplo de austeridade e patriotismo, Aureliano Chaves, junto de Jorge Bornhausen, Marcos Maciel, Guilherme Palmeira e outras lideranças. Eu vinha de um Estado sem peso político, o Maranhão, sem ligação com a grande mídia, sem apoio de corporações econômicas e Continue a ler