Leio que os Estados Unidos, já dando como certa a queda do Maduro, articula negociar a transição e nesta o ponto principal é a anistia. Certamente nenhuma transição, com as características da Venezuela e do chavismo, pode ser feita de maneira negociada sem alguma anistia. Há duas formas de transição: com negociação, necessitando de uma engenharia política difícil, que leva tempo; ou pelas armas, o que impõe uma derrota da parte coatora, com o preço alto de uma guerra civil. E não devemos menosprezar aquilo que nos lembra Afonso Arinos, num artigo sobre a crise brasileira, que escreveu para o Jornal do Brasil, em que diz que as ambições do perdedor não são menores que as do vencedor, lembrando Machiavel. Eu, com a experiência de quem viveu e presidiu uma situação dessa natureza, posso afirmar que a maior de todas as dificuldades é estabelecer um nível de confiança, em que o medo de represálias possa ficar controlado, de modo a não ser a cilada em que tudo pode desmoronar.
O instrumento que temos não é outro que a anistia. O Brasil tem lidado com ela, de maneira admirável, em todos os movimentos de ruptura em nossa História. Sempre a fizemos abrangendo os dois lados. A mais difícil delas talvez tenha sido a da Revolta da Armada, nos tempos de Floriano Peixoto, que deixou como lembrança o debate na Câmara dos Deputados entre Rui Barbosa e Gomes de Castro, a quem o próprio Rui considerava estar entre os melhores tribunos da Casa.
Outros exemplos são a dada por Juscelino na Revolta de Aragarças e o perdão concedido por mim àqueles que agrediram, à picareta, o ônibus que me levava para entregar uma condecoração a Bidu Saião, no Paço da Cidade, na Praça da República, e a complicada anistia do final do regime militar.
Há uns cinco anos, o brasilianista Ronald Schneider escreveu uma biografia minha daqueles anos, em que diz que fomos a mais exitosa das transições democráticas, pois não negociamos hipotecas militares, como o Chile, que teve de fazer o Pinochet senador e criar um fundo do cobre para as Forças Armadas, ou como Alfonsín, que teve de lidar com três sedições militares e uma divergência contínua com os quartéis. Aqui nada tivemos e já no próximo ano, em 15 de março, vamos comemorar 40 anos de democracia. Tivemos a sorte de ter, no Ministério do Exército, o General Leônidas Pires Gonçalves, o melhor Ministro do Exército de nossa História, que modernizou sua Força, iniciou sua entrada na era digital e devolveu a tropa aos quartéis, sem nenhuma reação.
Sou sempre um otimista, mas neste caso da Venezuela acho muito difícil que Maduro seja homem que negocie ou que tenha sensibilidade para evitar uma guerra civil. Não há mais lugar para a simples intervenção americana, que a América Latina não deve aceitar, mas não se pode perder tempo, pois ele não tem espírito público nenhum. Já demonstrou a que veio e tem uma ficha de violência na qual existe uma legião de políticos presos, mortos, e uma Venezuela mergulhada num caos econômico e sete milhões de venezuelanos fugidos do país, párias mundo afora.
Realmente precisamos meditar sobre o grande esforço nacional para voltar ao Estado de Direito. Começamos o regime militar com o Castelo que tinha o objetivo de fazer eleições e foi atropelado pela linha dura. Com a volta do Geisel, da linha castelista, Golbery começou a abertura “lenta, gradual e segura”. Petrônio, Krieger, Aureliano, Marcos Maciel, Virgílio Távora, eu, de um lado; Fernando Santana, Marcos Freire, Ulysses, Paulo Brossard, Tancredo Neves, e muitos outros, e seus interlocutores Lula, Montoro, Olavo Setúbal e outros mais; das Forças Armadas, como o correto General Euler Bentes Monteiro, e muitos e muitos outros, com grande patriotismo.
Assim a transição veio de longe, e a base dela foi a anistia.
Mas por aí não vão a Venezuela, Maduro e suas Forças Armadas. Ele não é democrata. Mas reconhecemos que não há solução pacífica sem anistia. Se ela não funcionar, o impasse ficará no mesmo pé em que está.