A Duquesa vale uma Missa
São Paulo vivia um dia quente de verão, desses de sol e nuvens esparsas. As chuvas vêm à tarde, com um rebanho de nuvens negras que nos picos do Jaraguá se enrolam, e caem ligeiras e torrenciais.
Saí cedo de casa, com uma roupa leve. Nada me dizia que aquele dia seria uma data jamais esquecida. Levei uns vinte minutos num engarrafamento na Avenida Paulista. Cheguei ao meu local de trabalho, estacionei o carro e subi. Ao entrar na minha sala, o colega Sabino disse-me que minha irmã Selene já ligara três vezes, parecia muito ansiosa, e pedia que eu retornasse com urgência. Chamei e o telefone soou ocupado. Liguei então para a casa do meu pai já com o pressentimento de que algo de grave estava acontecendo.
A empregada Maria Sérgia atendeu e, sem arrodeios, anunciou a morte de meu pai: “Seu Jacques descansou”. Quis saber — “Como foi?”, “A que horas?” “De repente”, Maria precisou. Pedi que chamasse Selene ou um dos meus irmãos. “Eles estão lá no quarto.” Exasperei-me: “Vá chamar, sou seu Léo, filho dele. Você não calcula como eu estou?” “Já vou.”
Selene veio ao telefone, era só desespero. Ele fora vítima de um enfarte fulminante. Pedia minha ida. Há mais de uma hora tentava entrar em contato comigo.
Desliguei o telefone. Comuniquei aos colegas, comovi-me com a solidariedade deles na minha dor e fui arrumar a viagem. Foi com grande amargura que recebi a notícia. É certo que ele já estava numa idade em que a vida começa a terminar. Muitas vezes me disse que viver além dos oitenta anos era coisa que não tinha muito sentido nem gosto. Confessava já estar liberto das tentações do mundo, no completo silêncio dos desejos não mais atingíveis. O corpo realmente vai desmoronando nessas alturas da existência. É dor aqui, achaque acolá e a maldade de que “quando velho acorda e nada está doendo é porque está morto”. Ele acrescentava meio irônico que devia ser muito chata a vida dos santos, na pureza total, comendo açúcar de nuvens, sem tentação dos pecados, entregues à contemplação eterna de Deus e a divertir-se em orações. Confidenciava, em meio à incredulidade geral, que freqüentava uma casa de mulheres na Rua Cândido Mendes, comandada por uma argentina. Como trunfo, ele afirmava ter sido uma das atrações máximas nos melhores prostíbulos de Paris. O velho achava que podia repetir os desempenhos de sua mocidade, bem marcada por tempos de boemia, que depois se transformaram em obsessão pelo trabalho. Depois que minha mãe morreu, logo no princípio da viuvez, não levou vida das mais virtuosas. Gostava de blasonar: “Não posso viver só; mas casar-me de novo, nunca.” E assim justificava as ausências de casa, o que muito preocupava minhas irmãs. Juntando pedaços de confissões, elas achavam o velho nostálgico dos tempos de solteiro, propensas a julgá-los ressuscitados. Todos aceitavam como prova de vigor e disposição suas permanentes saídas, ultimamente justificadas pela necessidade de movimentar as contas bancárias. Ia só, recusava acompanhantes. Segundo murmúrios, suas visitas eram para uma caixa do Banco, de olhos e cabelos muito claros, que se chamava Tecla. “Oh, seu Jacques, se eu fosse mais velha, ia me apaixonar pelo senhor.” Ele ficava todo feliz. Ela com trinta anos e ele com oitenta e um, e essa conversa lhe doía nas entrepernas. “Ah! Não brinque com um velho.” Tecla soltava um sorriso que os da fila curtiam.
Um dia no Rio, para visitá-lo, fui surpreendido por sua pergunta a queima-roupa: “Você já tomou Viagra?” “Já.” “Pois eu quero experimentar.” “Mas o Senhor deve saber que o Viagra não faz sozinho o efeito que o senhor pensa. É necessário que a libido entre na coisa, é preciso excitação e companhia; se bonita, melhor. O velho, estufando o peito: “Disso eu me ocupo, é minha parte.”
Seu primeiro enfarte apagara o desejo de usar Viagra, incompatível com os nitratos que tomava. Mas o que me tortura até hoje é que, embora preparado para seu desaparecimento, quando soube, meu pensamento voltou-se não para ele, mas para o Quadro. “A quem vai tocar o Quadro?” Este era importantíssimo em minha vida. Julguei-me canalha. Num momento desse não era o amor de filho que me passava pela cabeça, mas o Quadro.
Depois de passar em casa e arrumar minha maleta de mão, tomei o primeiro avião da Ponte Aérea para o Rio. Não foi fácil chegar ao aeroporto com a Avenida Rubem Berta engarrafada pelo trânsito impossível de São Paulo. Meu chofer de táxi, Jovino, não parava de resmungar: “E a Prefeita a fazer essas obras todas. Para quê?” “Eu gosto dela”, retruquei. “É uma mulher inteligente e brava”, acrescentei. “Pois eu tenho horror a esses paulistas quatrocentões.” “Donde você tirou essa história de quatrocentões?”, indaguei. “Foi doutor Sodré, meu primeiro patrão, que só falava nisso. Ele dizia: ‘Sou quatrocentão, mas sou rebelde. Oh, Jovino, você é nordestino e nós aqui adoramos nordestino. Mas olhe bem, só serve para chofer, lavador de carro, empregado doméstico e pedreiro de construção.’” Mas logo o taxista ressalvou: “Era tudo brincadeira, doutor Sodré gostava de uma prosa, de me provocar. Que homem inteligente, seu Sodré. O senhor o conheceu?” “Claro, ele foi governador e tinha fama de galanteador.” Jovino engrossou a voz: “Se quiser chegar ao aeroporto não fale dele. Ele era meu amigo e das melhores gentes que eu já conheci. Para mim é santo, não se fala mal no meu ouvido.” Não entendi aquela do chofer: “Mas eu não disse nada.”, procurei desfazer o mal-entendido. “Claro que disse — corneador…”, Jovino replicou. Corrigi: “Falei governador.” O chofer acalmou-se: “Ainda bem que o Senhor esclareceu. Ele era meu amigo e faz muita falta. Gente boa. Ele não era homem de tomar mulher dos outros. Corneador era o amigo dele, Pasipinho. Esse gostava muito de mulher. Muitas vezes ia jogar na casa do doutor Sodré. Chegava falando logo de mulher. ‘Fulana era boa, beltrana melhor de cama, a carinha de sicrana não revela a mulher fogosa que é na realidade.’ E por aí o papo pegava fogo. Seu Sodré, não. Ele guardava segredo das coisas dele. Não era faroleiro. Eu também guardo segredo.” Com um gesto de mão, concluiu: ‘Cala-te boca.’ E eu emendei: “Ande depressa porque senão eu perco o avião. Preciso chegar ao Rio. Meu pai morreu.” “Meus pêsames, doutor. O meu morreu lá no Ingá, na Paraíba, há mais de vinte anos. Era vaqueiro na caatinga.”
No aeroporto, enfadado com aquela conversa, peguei a maleta, paguei o taxista e corri para o balcão da Ponte. O próximo avião estava atrasado. Tive que amargar meia hora de espera. Comprei um jornal e sentei-me quase em frente à porta de embarque. Ao meu lado logo se abancou um sujeito de bigode grande, desses que não se vê mais, e me incomodou: “Prazer, tem gente aqui?” Era minha bolsa de mão que estava no assento do lado. “Não”, respondi. “Joaquim Bolanhos, de Pelotas, Rio Grande”, ele se apresentou. “Prazer.” O cara queria conversa: “São Paulo está quente, talvez no Sul esteja melhor.” Enfiei o nariz no jornal. “O senhor pode me dizer onde fica o banheiro?”, o cri-cri estava mesmo a fim de me azucrinar a paciência. Ora bolas, vir sentar-se logo ali, depois de andar pelo saguão inteiro, e, naquele momento de tanta tristeza, vem o sujeito me gozar, perguntando onde ficava o banheiro? Eu não era guarda do aeroporto, não estava fardado de carregador de malas, mas era eu que tinha de indicar-lhe o banheiro? Ele, zanzando no corredor, devia já ter perguntado a outro e não a mim. Com o estado de espírito alterado, perdi a esportiva. Olhei aquela cara de imbecil e disparei sem vacilar: “Vá à bosta!”. O senhor Bolanhos levantou-se e me replicou em tom de briga: “Pois vá à merda!” Eu contra-ataquei à altura: “Não vou, nem você pode me dar ordens.” “Eu também não vou à bosta e se perguntei pelo banheiro é porque estou com dor de barriga.” “E o que eu tenho a ver com sua dor de barriga?” Ele avermelhou-se: “Olhe, diga de que lado quer levar um bofetão do punho macho de Bolanhos.” Não agüentei a provocação. Na confusão em que me envolvi minha maleta se abriu, a cadeira quebrou e o senhor Bolanhos não conteve os intestinos. Ele não sabia que eu tinha sido lutador de caratê e foi fácil imobilizá-lo antes de atingir-me.
Nesse tempo da prática de caratê me apaixonei pela Bianca, e com ela tive os maiores dissabores. Enfim, Bianca me largou por um colega de esporte, um japonês típico de Jabaquara, de quadris baixos, pernas curtas, que possuía uma lábia inacreditável com forte sotaque nissei, a que poucas mulheres resistiam. Ainda bem que me vinguei namorando a sua irmã e com ela fui passar umas férias em Poços de Caldas. Ele soube e eu tive de mudar-me de bairro. “Jamais dê bom dia para minha irmã.” Tomei juízo, pois ele era o campeão da escola, faixa-preta e atrevido. Avaliei, e cheguei à conclusão de que levaria uma boa e completa surra.
O Bolanhos foi levado ao banheiro e eu, ao setor da Polícia Federal. Ali me submeteram a um interrogatório dos mais duros, com verificação de minha carteira de identidade, “onde mora?”, “o que faz?”, “para onde vai?” Pedi que me liberassem logo, pois tinha que ir ao enterro do meu pai. Estava no ponto para embarcar, quando o senhor Bolanhos me provocara etc. e tal. O delegado me olhou de frente e sentenciou: “O senhor está detido por agressão. Esse golpe da morte de pai já é velho. Semana passada um traficante de maconha quis aplicá-lo em mim.” Fui firme na réplica, era verdade o que dizia, dei telefone, nome e endereço para que fossem confirmadas minhas afirmativas. O delegado não quis saber de nada, levou-me a um cubículo junto ao escritório onde se procediam às revistas: “Tire a roupa, para vermos se não está levando nada entre as pernas. Outro dia encontramos uma cueca cheia de dólares!” Protestei. Não quis despir-me. Disse-lhe que nada tinha feito e aquilo era humilhante para mim. Ele retrucou: “O senhor espanca um homem no aeroporto. Mostra sua personalidade violenta e vem com essa frescura de humilhante.” Ele chamou três agentes fortes que me olharam duro. Um deles exclamou: “Tira logo a roupa!” E ordenou para o outro: “Segue a revista”. Tentei resistir. Solicitei ao delegado que, antes, telefonasse para o Rio a fim de saber se era verdade ou não a morte do meu pai. “O gaúcho já se cagou, e você, se resistir, vai se cagar também.” Diante dessa perspectiva comecei a tirar o paletó, depois a calça, camisa, gravata e cueca. O delegado queria me gozar. “Tire a meia.” Tirei a meia. Ele deu uma volta com os três tiras ao lado e um deles saiu com uma brincadeira de mau gosto: “Ainda dá um caldo, no xadrez da 15a DP.” Aí, tive medo, entrei em pânico. “Será que vão me levar à 15a Delegacia?” Quis me tranqüilizar em seguida quando o delegado gritou: “Vista-se.”, Porém, fiquei raivoso ao ouvir dele: “Antes, levante o pinto para ver se não tem nada debaixo do saco”. Não era para levantá-lo, me dei conta, pelo tom de gozação do delegado. Mas eu levantei o pinto assim mesmo, transtornado pela suprema humilhação. “O senhor está liberado, mas na quarta-feira da próxima semana compareça à 15a Delegacia para prestar depoimento”. Desolado, disse: “Sim, senhor”, e ainda soltei um “obrigado” estúpido e gratuito. Fiquei revoltado comigo mesmo por este covarde agradecimento. Tiraram xerox da minha identidade, carteira de motorista, cartão de crédito e todos os meus dados de residência. Nunca pensei meter-me numa encrenca dessas, num dia como aquele.
Com três horas de atraso cheguei ao Rio. A fila dos táxis comuns era muito grande e teria de ficar ali por mais meia hora. Peguei então um táxi especial, desses de corrida sem taxímetro, pois meu desejo era chegar o mais rápido possível ao Jardim Botânico, onde a família e os amigos já deviam estar velando o corpo de meu pai e censurando minha ausência. Não poderia dizer o que me aconteceu nem tinha desculpas para este meu aparente desprezo pela morte do velho. Mas no fundo eu estava profundamente abalado. Perder o pai é uma situação que ninguém pode avaliar. Há uma sensação de que se acabaram as referências anteriores e que agora tudo começa com você. Por mais que não se tenha estreito contato com o pai, more longe e a necessidade da sobrevivência o leve por outros caminhos, pai é uma instituição insubstituível. Ainda mais que a nossa família era marcada pela união, sempre gravitando em torno dele. O velho era o ponto de coesão. Somos cinco irmãos: duas mulheres e três homens. Meu irmão mais novo, o Luís Carlos, é meio metido a contestador. Entrou na onda hippie dos anos 60 e até hoje, já mais velho, continua sendo um biruta total. Eu não, nunca dei para muita coisa, mas procurei segurar-me na classe média e luto para nela permanecer. Depois da faculdade fiquei em São Paulo, de onde jamais saí. Tinha um colega de turma do Ceará cujo pai, ao ouvi-lo dizer que gostava de dinheiro, retrucava-lhe: “Vá para São Paulo, só se tira de onde tem, porque aqui no Ceará é só xique-xique e mandacaru.” O que não era verdade. O Ceará é árido e pobre, mas tem uma grande riqueza: o cearense.
O chofer do táxi, meio acanhado, perguntou-me: “O senhor sabe ir ao endereço?” “É a casa do meu pai.” “Então me diga, pois cheguei há pouco tempo no Rio e não conheço bem a área do Jardim Botânico”. Orientei-o. “Pois fique tranqüilo, passei minha infância inteira lá.” “As palmeiras são muito bonitas”, ele observou, talvez para mostrar que não desconhecia tanto a cidade. “Dizem que foram plantadas pelo Imperador. Não sei bem”, acrescentei. E ele: “O Brasil já teve Imperador?” “Não sei”, saí pela tangente, para evitar controvérsias. “Disseram-me que já teve.” “É…”, respondi, pedindo desculpas a Dom Pedro I e II. Passamos ao lado de um outdoor — “Beba Pitu.” Olhei para o desenho de uma lagosta pequena e não sei por que lá me veio à memória o Quadro. Julguei-me insensível, sem sentimento, um monstro. Não era possível que diante da morte do meu pai a idéia fixa do Quadro superasse a dor pelo seu desaparecimento. Afinal, eu devia pensar em sua vida de grande empresário, de um dos pioneiros no planejamento urbano e, sobretudo, de suas posições avançadas na política, sempre ao lado do Partido Comunista, apoiando-o, sendo considerado benemérito da causa. O jornal Classe Operária era publicado e sustentado graças a sua ajuda, como as passagens e diárias asseguradas a Prestes e a manutenção dos aparelhos do partido. Ele era um homem de convicção. Um socialista no estilo antigo, achava Stalin a maior figura da humanidade. Quando lhe falaram do relatório de Kruschev, contando aquelas atrocidades, não quis aceitar: “Era necessário. Lênin já proclamava que o terror é necessário para a implantação da sociedade comunista. Foi Stalin quem salvou o mundo dos alemães. E esse Kruschev era braço direito dele, colaborador estreito. Canalha! Jantava como um cachorrinho, calado e bajulador, todas as noites com o camarada Stalin.” Eu não concordava com tais opiniões, porém ficava calado respeitando suas convicções. “Sou amigo de Marighela e ele vai fazer a revolução. Não é o Prestes, está velho e estragado como eu. Marighela, sim. Não esqueça esse nome.” Eu ouvia e discordava. Tudo coisa do passado. Eu sempre fui capitalista, livre mercado, toda liberdade econômica. Quem não puder competir que se lixe. Meu pai, não, ele era fiel a Marx e Engels, embora sendo homem de negócio e grande empregador de operários na construção dos mais de cem arranha-céus que abriram as primeiras avenidas e artérias do Leme.
À porta de nossa casa, ou melhor, da família, puxei a carteira para pagar a corrida: “Quanto lhe devo?” O chofer, boa praça: “Nada.” “Como nada?” Ele retrucou: “O senhor está vindo para o velório do seu pai e eu quero fazer-lhe esse gesto.” “Não é possível. Como o senhor soube que eu vinha para o velório do meu pai?” indaguei, surpreso. “O senhor mesmo disse. Estava falando só aí atrás, perdido em suas conversas.” “Eu?” “Sim.” “Não me lembro.” “Pois é, a gente fala às vezes das coisas e do pai sem prestar atenção que os outros estão ouvindo.” “Mas eu não falei nada.” “Falou e ficou martelando sempre nas coisas de sua casa, e dizia ‘o quadro, o quadro’.” Devia estar com alucinação. “Muito obrigado”, e dei-lhe uma gorjeta de vinte reais, talvez o preço mesmo da corrida. Ele agradeceu, deu-me pêsames e foi-se.
A rua não mudara nada. Nela, os prédios altos ainda não tinham chegado. As velhas casas subsistiam, embora ameaçadas pela aproximação das demolições. A vez da nossa iria tardar. A área estava repleta de carros. Uma respeitável confusão. Parei antes de entrar. Olhei as grades, fitei as janelas retangulares com cercaduras brancas, a cor rosa clara das paredes e aqueles batentes da porta que tantas vezes eu cruzara, compostas duma pequena escada, encaixada entre curvas encimadas com pinhas portuguesas.
Vi a janela da biblioteca aberta e calculei que o corpo estava sendo velado lá.
Lembranças, angústias e raivas se abalroavam em minha cabeça. Eram duas horas da tarde. O enterro sairia às cinco. Fervilhavam pessoas em todas as dependências. Fui cumprimentando uns e outros e ouvindo o murmurar de “meus pêsames, eu era muito amigo do seu pai”. Um deles me puxou pelo braço e cochichou: “Olá, Léo, onde você estava? Todos estão querendo saber de você.” Era o Luís Barros, antigo vizinho, que me conheceu menino. Chamava-me pelo apelido. Já tinha vendido sua casa, morava então num apartamento na Barra. Fui namorado de uma filha dele, a Julieta, que agora virou um bofe. O corpo do meu pai estava ali na biblioteca, o lugar da casa de que ele mais gostava. Tinham tirado sua mesa de trabalho do local, mas as estantes, altas, envidraçadas, ali continuavam, belas, esbeltas, com seus pontaletes trabalhados nas quinas. Avancei entre tantas pessoas e me acerquei do caixão. Era bem trabalhado, de alças douradas. Ali estava meu pai na dignidade que nunca perderá com o passar dos anos. Antes de falar com meus irmãos, beijei-lhe a testa. Presumi que ele me olhava, mesmo com os olhos quase cerrados, apenas com leve abertura no contorno das pálpebras. Seu corpo estava enfeitado com flores, rosas brancas e, entre as mãos, um cravo vermelho, bem socialista.
Parei meditando, recordando sua vida, seu carinho, sua preocupação permanente comigo. No princípio, em cartas semanais, depois em telefonemas dia sim, dia não. Pensei também na nossa definitiva incompatibilidade de gênios. “Você não tem nada de mim. Puxou a sua mãe. É desorganizado e vive sempre com esse negócio de esporte, fazer ginástica e estudar artes marciais”, ele me repreendia. Eu lhe replicava que era uma coisa saudável. Vinha desde os latinos com o aforismo de Juvenal que atravessara quase dois milênios: “Corpo são em mente sã.” Ele reagia: “Nada disso. Isso é um lugar-comum que ouvi a vida inteira. Eu nunca fiz ginástica e tenho saúde de ferro, já estou com sessenta anos, fumo charuto e bebo conhaque. Eu nunca vi elefante fazendo ginástica nem tartaruga estudando caratê.” Agora esse diálogo se encerrava para sempre. Meu interlocutor e confidente da juventude estava morto, ali, pronto para viajar. E sua alma? Fora embora. Li que um cientista doido pesava os agonizantes antes de morrer e, depois do último suspiro, outra vez. Chegou à conclusão da existência da alma pelo peso e à certeza de que tinha 28 gramas. Acabei por me recriminar por não concentrar o espírito nas virtudes de meu pai, que eram muitas. Selene, aos soluços e nas súplicas de “Nosso Pai” me reinstalou entre os crepes e mortalhas do velório. Eu me sentia um ordinário. Mesmo naquela situação extrema, só me inquietava com as coisas que me diziam respeito. A obsessão pelo Quadro bania as lembranças do velho.
Selene, era a irmã mais velha, casada com o italiano Vitório. Tinha seis filhos: três moças e três rapazes. A mana revelou-se uma parideira da melhor qualidade e nunca sonegou os volumosos seios para que os meninos se criassem com a melhor nutrição. De fato, a prole encantava a todos. Eram muito bonitos. Pena que o último, Roberto, tenha virado um carola de carteirinha.
Ela , inconsolável:
— Léo, meu irmão querido, perdemos nosso pai para sempre.
Achei desnecessário o “para sempre”, ridículo mesmo.
— O que será de nós? Diante da morte ninguém é forte. Quem vai nos socorrer?
Julguei também extravagante a perspectiva de desamparo e essa rima macabra; “diante da morte ninguém é forte”. Afinal, éramos todos independentes e meu pai já passara dos oitenta. Sabíamos que, com a saúde precária, sua vida estava chegando ao fim. Minha irmã, entretanto, é exagerada nas palavras e, na oportunidade, fustigada pela comoção, ficou muito mais ainda. Temia que ela desmaiasse. Porém, seus filhos se desdobravam na assistência e George, um deles, passava constantemente a mão em sua testa.
Voltei a contemplar o rosto de meu pai. Não arredei mais o pé de perto do caixão Estendia a mão formalmente aos que me cumprimentavam, mas com o espírito distante, absorto na reconstituição da importância do velho em minha vida. A morte é uma coisa transcendente, mistério mesmo difícil de aceitar e contrário à razão. Mas ela me engasgava, sufocava. Se não bastasse a garganta seca, os olhos começaram a umedecer. A vergonha de chorar me reteve as lágrimas por um bom momento. Enfim, consegui vencê-la, mas no meio do pranto, pipocou a lembrança maldita do delegado mandando eu suspender o pinto para ver se havia alguma coisa embaixo do saco. Eu devia ter berrado: “Embaixo está a xuranha de tua mãe!” O rosto inerte me causava terrível sofrimento. Tão abalado estava que engrenei o gesto de puxar o lenço que na verdade não tinha no bolso. Estava fora de mim.
Os irmãos se aproximaram e em silêncio me abraçaram. Luís Carlos — homenagem de meu pai a Prestes —, perguntou-me por que me atrasara tanto. Eles já não escondiam a preocupação com minha demora. Culpei o trânsito, a Ponte Aérea. Menti: o táxi tinha quebrado em meio a um engarrafamento na Avenida Brasil, esquecendo que meu caminho fora pela Rubem Berta.
A biblioteca do meu pai era dividida por um arco com frisos de madeira trabalhada. O último cômodo, bem menor, abrigava uma carteira e uma estante baixa com livros de consulta. A parede era revestida até a metade por uma barra de cedro antigo que terminava num lambri de curvas. Parecia um bar inglês. Meu pai dizia que ali era seu pub. Não raro, sozinho, no fim da tarde, tomava uma dose de uísque, não sem antes do drinque pedir permissão, com a expressão brincalhona — “Se a Rainha já começou a beber”, numa alusão ao costume londrino segundo o qual só se oficia o primeiro brinde depois da Rainha, isto é, depois do chá da Corte, às 5 horas da tarde. Na parede do fundo, um grande espelho do século dezenove, agora envolto na colcha marrom que cobria a cama de minha mãe. Naturalmente, uma cena fúnebre não devia ser reproduzida no espelho. Este, de origem austríaca, fora arrematado por meu pai na casa de leilões “O Luís”, situada na Glória. A casa era freqüentada pela nobreza carioca ávida de imprimir em suas residências um toque imperial. Aliás, o Rio, por ter sido a sede do Império, conserva até hoje suas marcas de nobreza, embora tenham desaparecido os barões, condes, marqueses e viscondes. Agora, essas marcas podem ser encontradas em apartamentos da zona sul, Leblon, Barra, nos brasões de armas e cartas de sangue nobre pertencentes a um círculo restrito e muito focalizado pelas colunas sociais.
Meu pensamento planava. Não desejava conversar com ninguém. Não devia afastar-me do corpo do meu pai. Meus irmãos estavam juntos, mais atrás, com uma expressão de infinita consternação, bem mais visível nos rostos de Joseph, assim mesmo, com ph, em homenagem a Stalin, e minha irmã Rosa, assim chamada também em homenagem a Rosa Luxemburgo, a lendária socialista que morreu assassinada. Até hoje se discute e se estuda sua célebre discussão com Bernstein sobre revolução e reforma.
À proporção que se aproximava a hora do enterro aumentaram minha angústia e as batidas do coração. Os netos pareciam mais sentidos que os filhos. Antônia, filha de Joseph, não conseguia conter o pranto. Ao mesmo tempo, de seus olhos escapava um sentimento profundo de carinho que não se discernia nos outros. Havia mais intensidade na dor de Antônia. Também, era a mais próxima dele. Logo no início do colegial, seus pais, desconfiados, verificaram que ela andava às voltas com um problema. Acabaram descobrindo que ela era vítima do que se tornou uma praga dentro das escolas — a droga. Antônia começou na maconha. E por aí perdeu a virgindade. Entre seus remédios de banheiro, bisbilhotados pela mãe, havia uma caixa da pílula do dia seguinte. Naquele tempo, os jovens já transavam discretamente com a pílula, mas os pais ainda se mantinham na resistência. O caso de Antônia escandalizou a família, motivou intermináveis discussões e recriminações.
Um dia ela fugiu. Foi para a casa do meu pai. Contou-lhe tudo. O avô compreendeu a neta, que passou a morar com ele. Pouco a pouco a crise da juventude foi passando e ela voltou ao esquema convencional. Hoje, estava tranqüila, cursando o último ano da Universidade, com um namorado firme, seu colega de turma. Rapaz de bons costumes, como se dizia no meu tempo, com a virtude extra de possuir um pai abastado. Antônia chorava convulsivamente. As conversas secretas que tivera com o avô deviam povoar a memória.
Como meu pai era ateu, não houve cerimônia religiosa. Na hora de fechar o caixão ninguém o encomendou a Deus nem nos consolou com uma anunciada ressurreição. Beijei-lhe a testa, passei minha mão na mão dele, como se dissesse: “Minhas despedidas, velho.”
E aí, olhando bem o seu rosto, naquela palidez macilenta, os cabelos brancos e ralos, me perguntei na impossibilidade absoluta de dirigir-me a ele: “Meu pai foi feliz?” Confrontei-me então com o problema da felicidade. Imaginei que todos morrem infelizes, com a sensação de que perderam a vida e realizaram todas as coisas às avessas. No colegial li livros que associavam a felicidade à juventude e a desventura à velhice. Recordo mesmo um tal de padre Antônio Tomás que, num de seus poemas escreveu — “Quando partimos no verdor dos anos, / as esperanças vão conosco à frente / e vão ficando atrás os desenganos.” E para os velhos, “diferente dos tempos de rapaz, / os desenganos vão conosco à frente / e as esperanças vão ficando atrás.” Guardei estes versos, mas sempre julguei banal a literatura que explora o tema Juventude / Velhice para tirar conclusões contrastantes. É o óbvio chato.
A gente, quando toma conhecimento efetivo e concreto da vida precocemente na juventude ou na idade adulta, já se sente infeliz. Só a infância é feliz porque não se sabe de nada. É só alegria descobrir o mundo e as coisas. Eu, pelo menos, nunca soube ou desfrutei daquilo que dizem ser a felicidade. Sempre fui angustiado. Meu pai, também, acho não ter sido feliz. Não sei por quê. Penso que se ele tivesse que escolher os filhos, não me escolheria. Eu caí fora para São Paulo, fugindo da minha infelicidade, feliz com a Duquesa. Sua alegria nos últimos anos, francamente, não sei qual era. Jorge Amado afirmou certa vez que “não via nenhuma vantagem na velhice”. Ao contemplar pela enésima vez o rosto de meu pai, refleti, matutei: “Será, então, que se deve morrer novo?” Idéia besta. Isso é coisa de poeta para se permitir, em versos arrebatados, incandescentes, a conclusão de que a única maneira de as mulheres não perderem a beleza é morrer cedo.
De repente, em meio a tais divagações, deu um escuro na minha cabeça. Não consegui pensar nem articular mais nada. Voltou, sem pedir licença, minha raiva do delegado, e do Bolanhos.
Os carros tomaram posição. Meus irmãos tinham contratado uma funerária conceituada e providenciado junto à Santa Casa os papéis necessários. A sepultura seria o jazigo da família Scheider, que já era uma catedral de ossos, pelo tanto de parentes e mesmo de longínquos antepassados que ali se acumulavam, enterrados. Ficava na Avenida Vieira Souto, como os coveiros chamam a alameda principal do Cemitério São João Batista, que começa no portão principal e se ramifica em alas menores e menos importantes. Em frente ao jazigo, uma estátua de dois metros, com vestes esvoaçantes, representa um anjo que leva a alma dos mortos, com um braço levantado. Obra de um escultor do Porto onde minha tetravó, a primeira a ser enterrada ali, sem o sobrenome de solteira — Madeira. Morreu com o de Scheider, seu marido, filho de judeus vendedores de tecidos na Rua do Acre.
Não era a primeira vez que vinha ao jazigo nem seria talvez a última. Pelo visto, nele caberão ainda muitos descendentes dos Scheider. Creio, todavia, que meu destino será uma sepultura rasa em algum cemitério do subúrbio de São Paulo. Recordei o enterro de minha mãe há dezoito anos. Naquele dia, eu estava realmente dilacerado, pois com ela minha relação era bem mais estreita do que com meu pai. Ela morrera sem completar sessenta anos, de um câncer que muito lhe fez sofrer. Meu pai, ao contrário, nunca apreciou muito meu jeito. Quando eu era criança, ele me achava efeminado. E se não achava mesmo, até hoje não me convenci do contrário. Ele sempre me dizia — “Homem não chora”, “você é homem, tem de gostar de mulher”. De tanto ouvi-lo repetir a lengalenga de mau gosto, fiquei com a impressão de que o velho alimentava dúvidas sobre minha masculinidade. É verdade que não casei. Permaneci solteirão. Contudo, o certo é que segui os conselhos dele. Nunca deixei de ser garanhão. Isso de constituir família é outra história. Não casei, mas sou macho. E bom de briga. O Bolanhos que o diga. E houve outros precedentes. Um dia, mandei lá um bofetão em meu irmão Luís Carlos, porque numa rusga de infância ele me chamou de “veado”. Possesso, berrei “pois você vai ver o que é macho” e taquei-lhe um tapa violento. Se eu fosse homossexual, não iria esconder, confessaria porque não tenho preconceito. Quem quer ser, que o seja. Mas restou-me a impressão da infância de que temiam que eu o fosse. Isso me afastou da família. E lá estava o delegado de novo no centro da minha cachola, pedindo para eu levantar o pinto, e o Quadro a preocupar-me.
O séqüito parou em frente do grande portão. Nós, os irmãos, nos dirigimos para o carro da funerária, cada um pegou uma alça do caixão. Muito compungidos, os netos nos seguiam logo atrás.
O carrinho de quatro rodas, apenas uma chapa de ferro lisa, recebeu o caixão. Formamos um cordão de frente; as mulheres, flores nas mãos, encabeçavam o cortejo de nossos semblantes sofridos. As filhas e as netas encostavam as cabeças nos ombros dos demais familiares nas lamentações e adeuses.
Eu, que não era de vidrar nas mulheres com jeito de gavião, divisei uma senhora com quem eu nunca cruzara antes. Ignorava de onde vinha sua amizade com a família. Usava um vestido cinza-claro, grudado ao corpo e uma calcinha escura, marcando os contornos polêmicos. Roupa imprópria para funeral. Tinha o rosto rosado, olhos longos e tristes, pele clara, um cravo na mão, muito recatada, apesar das vestes. Procurei saber quem era. A pergunta não respondida foi correndo em forma de sussurro por quase todos os acompanhantes do enterro. Quem estivesse de fora e visse aquele torce-torce de pescoço de um para outro lado no cochichado de vizinho a vizinho, pensaria que algum imprevisto havia ocorrido. Não podia imaginar ser minha pergunta a causa do silencioso rebuliço. Alguns se deslocavam, se postavam na frente, lançavam um olhar oblíquo na mulher e recuavam. Já quase perto do jazigo, tudo se clarificou pela cadeia de sussurros: “A de calcinha preta, de bunda arrebitada, de flor na mão, é Tecla, a caixa do Banco, o último caso do velho.” Aí, preso de irresistível curiosidade, aproximei-me mais dela. Usava um perfume doce. Grilei no seu decote. Era uma balzaquiana de mais de 30 anos, seios bem firmes e desafiadores. Instintivamente, sem pensar no meu pai, meus olhos e meu pensamento transbordaram de excitação. O Quadro se iluminou na imaginação, a Duquesa trajava o vestido de Tecla com os seios na vermelhidão alaranjada dos mamilos, os bicos duros, de uma beleza que não podia haver igual. Senti minhas calças se apertarem ou se dilatarem? Tecla era a lembrança por procuração do Quadro, em frente do qual praticara aquelas coisas no ardor irrefreável dos desejos adolescentes. Meus olhos despiram a moça. Celebrei-a nua, os seios apontados para mim. Despertei da miragem para o sepultamento.
Depois do advento das plásticas e dessas roupas que transformam as mulheres e seus corpos, não diria que os seios que me abrasaram no cemitério fossem naturais. Será mesmo que a balzaquiana ainda podia ter os seios duros, sem artifícios, com as pontas firmes para os beijos e carícias? Aquilo tudo não seria silicone ou armação, sei lá o quê? Não me detive em maiores especulações porque minha mente se concentrava no Quadro. Este retratava mulheres que seduziram Reis e usaram seus corpos com furor. Tenho um amigo cirurgião plástico, doutor Alberto Gattaz, a quem, quando encontro, vou logo perguntando: “Tem botado muito peito nas mulheres?” E ele, lacônico, mas franco: “Demais! Às vezes querem maiores, outras vezes, menores. Agora, a moda em Brasília é pêra.” A propósito, não me atraem esses peitos grandes, saindo pelo sutiã e se espraiando pelo pescoço. Mas a caixa do Banco era uma mulher bonita. Meus irmãos julgando que eu era veado, e eu ali, com esses olhares picardos para a amante do meu pai. Não quero nem ter a coragem de confessar a mim próprio que ela me despertou desejos. Calculei ainda: “O velho deve ter feito muita sacanagem com ela.” Com a mente doentia, imaginei-a na cama com meu pai: ela, de corpo modelado; e ele, com os ovos maracujás de gaveta e as pelancas redundantes. Será que ele ainda tinha gosto por mulher? Eu não acredito. O fato é que ele uma vez me pediu um Viagra. Lembrei-lhe que o medicamento só funciona com o desejo. Respondeu-me, como já contei: “Essa é minha parte.” Eu já tomei Viagra e senti uma quentura danada no rosto que me perturbou na hora. Um médico me recomendou: “Tome com um copo bem cheio de água. Melhora a absorção e o efeito bate em menos de uma hora. Em trinta minutos você pode partir.” Como partir se, solteirão contumaz, recebo as mulheres em minha casa? Mesmo assim, um dia, tomei um e fiquei esperando. A mulher me deu o bolo. Fitava pelo olho de vidro da porta, abria a porta, alongava a vista no corredor e nada. Também não quis mais nada com ela. Não aceitei suas desculpas. Ficar em casa esperando é um troço que me aborrece muito, mesmo tratando-se de mulher. Tenho horror por atraso e ainda mais naquela situação. Liguei e desliguei a televisão por causa do meu horror ao anuncio com mulheres passando bronzeador. Tomei dois copos de água para dissolver o mal-estar causado por tal imagem.
Fora do carrinho e conduzido por nós, o caixão foi depositado numa base mais baixa para permitir aos coveiros passar a correia e colocá-lo na sepultura. No sepulcro do lado li o nome “Lourenço Jacinto de Hagge — * 27 de junho de 1950 — ? 12 de fevereiro de 1990”. Cá com meus botões pensei: o defunto é novo, menos de um ano. Devia ser rico. A sepultura era de mármore com um retrato vitrificado em cima, bem trabalhado. O cara tinha um jeito de Clark Gable e uns traços do meu tio Laurindo, português com bigodinho triangular. Encarando o retrato – e sem qualquer relação – meu pensamento foi direto para o Quadro. Só nele me fixava, embora minha cabeça abrigasse milhões de pensamentos indesejados, como falam os psiquiatras. Naturalmente amanhã, cogitei, vou ter um encontro com ele, vou matar saudades. Despertei com o soluço de minha irmã Selene. O caixão já se encontrava no segundo andar da sepultura. Embaixo, na primeira gaveta, devia estar minha mãe. Todos jogaram flores. O pedreiro começou a colocar as lajes de concreto para fechar. Primeiro uma, depois a outra, finalmente a terceira, todas revestidas com juntas de cimento previamente preparado e trazido num balde por outro coveiro. Foi então que notei ao meu lado um homem em mangas de camisa, com aspecto de demente. Sem saber quem eu era nem se eu queria conversa, ele me segredou: “Escute aqui, eu faria tudo na vida para ser coveiro. É minha ambição. O senhor conhece alguém que possa me ajudar a conseguir esse lugar?” Encarei-o com raiva e nada respondi. Entretanto, o sujeito insistiu: “Eu sou maquista da Santa Casa, levo doentes na maca para a sala de operação. Muito defunto já empurrei, mas o que queria mesmo era ser coveiro. Por isso não falto a nenhum enterro. Venho todo o dia aqui. Me ajude.” Eu não agüentei: “Vá a puta que pariu. Estou enterrando meu pai e você vem com essa história de querer ser coveiro.” O homem saiu de mansinho, com um risinho entre os dentes. Realmente, tem de tudo no mundo. Fui virulento. Fosse um homem de paletó, talvez eu não tivesse aquela reação. Afinal, ele atrapalhou os últimos momentos de minha assistência ao corpo de meu pai. Passada a raiva, tive vontade de pedir-lhe desculpas. Eu estava perturbado com tudo que tinha acontecido naquele dia. Até hoje não esqueci a cara do pateta, de dentes cariados e a voz de língua presa. Algum tempo depois, pensando nele, concluí que há tipos estranhos nos cemitérios. Certamente a morte e seu ritual exercem inexplicável sedução sobre eles.
A última tarefa do coveiro foi pegar as coroas que estavam ao lado, em outro carrinho, e cobrir a sepultura com elas. Uma em cima das outras. Só então reparei nas fitas roxas das coroas com os nomes das pessoas que as enviaram. Não consegui ler os nomes, apenas a palavra “saudades”, do léxico surrado das funerárias. Começou a fila dos pêsames à família. Recebi poucos, pois quase ninguém entre os presentes me conhecia porque eu morava em São Paulo há muitos anos. A maioria das pessoas compareceu ao enterro por causa do marido de Selene, o cunhado Vitório. Ele era diretor da Associação Comercial e pessoa bem relacionada no comércio, dono de uma grande loja na Rua Sete de Setembro. Ele possuía muitos amigos e ocupava, na sua entidade de classe, a função de relações institucionais. Ou seja, encarregava-se de encaminhar à Câmara de Vereadores memoriais, arrazoados em defesa dos interesses dos comerciantes. Entre os empresários presentes, o clima era mais o de uma função protocolar de solidariedade e de apreço por Vitório do que uma reverência propriamente dita à morte de meu pai. O velho fora ligado, de preferência, ao setor industrial. Teve duas fábricas de material de construção civil, forros e paredes divisórias, bem como bloquetes de cimento, pisos, marmoraria. Ramo pelo qual nenhum de nós se interessou. Por isso, papai vendeu o negócio. Em suma, pelo morto mesmo, ninguém de seu tempo estava, nem mesmo a velha guarda do Partido Comunista. Esta, a bem da verdade, havia sido quase toda dizimada no tempo de Getúlio Vargas. Os sobreviventes foram posteriormente cassados ou mortos nos aparelhos clandestinos estourados pela polícia na Revolução de 64. Meu pai sempre foi um simpatizante entusiasta, mas nunca um militante ativo. Suas relações com o partido eram as de um burguês progressista que custeava atividades clandestinas. Atividades que ele nunca quis saber quais eram, mas que aconteciam graças ao seu dinheiro. Todos em casa dizíamos com orgulho que ele era amigo do Prestes, de quem, camufladamente, recebera visitas algumas vezes.
Deixando o cemitério, fomos para a casa da família. Era, na realidade, como disse, um palacete imponente no Jardim Botânico. Procuramos relaxar um pouco. Minhas irmãs tiraram os xales negros e nos sentamos à vontade nas cadeiras. Os comentários sobre o enterro se sucederam. Um observava: “Fulano esteve presente com toda a família”; o outro se queixava: “Mas beltrano, que tanto devia a papai, não deu as caras.” “A vida é assim”, alguns filosofavam. Minha sobrinha Antônia, recolheu-se num canto, chorando. Selene, minha irmã, era só reclamação: “As flores foram poucas, o caixão não valia o que pagamos, não gostei do crucifixo, era de latão, devia ser de prata.” À pergunta — “Quantas coroas vieram para papai?” — ninguém ofereceu uma resposta precisa. Vitório arriscou quarenta, mas Joseph corrigiu o exagero: “No máximo vinte.” Selene notou: “Mas veio uma do Prefeito.” “Eu não vi”, declarei por declarar, pois nem à memória de meu pai nem a mim a coroa do Prefeito do Rio de Janeiro nada acrescentava. E aí a conversa enveredou para a política. “O prefeito é um homem trabalhador, decente, correto”, alguém afirmou. “Trabalhador uma ova”, contestou meu sobrinho mais novo. “Mas afinal, quantas coroas?”, indagou Luís Carlos. Acostumado aos números, Vitório abriu o livro de presenças e conferiu: “Dezessete!” Uns se indignaram: “Não é possível!” “É pouco”. Luís Carlos ponderou então, modestamente: “É muito para um velho de oitenta anos que não era mais nada, com uma família de classe média meio dispersa e sem importância.” Selene protestou: “Alto lá. Somos muito importantes e tradicionais no Rio de Janeiro. Meu marido é diretor da Associação Comercial e figura destacada nos meios empresariais. Minha filha mais velha é professora da PUC com uma tese de mestrado muito elogiada sobre botânica, trabalho de fôlego reconhecido no meio científico.”
Aí meu saco encheu de vez. Eu que só pensava no Quadro, nos seios vermelhos da Duquesa. Aliás, no cemitério, o pensamento forte, compulsivo sobre os seios me aflorou quando me deparei lá com a mulher das roupas transparentes, o último caso de meu pai. Pensei nela nua, meu pai roçando a cabeça branca, quase sem cabelos naqueles mamilos endurecidos pelo toque dos lábios. E fazendo aquelas coisas que certos velhos garantem fazer a capricho. A calcinha dela devia ser preta, tipo sunga. No meu desespero contido do cemitério muitas coisas rolavam na minha cabeça. Todavia, a imagem do Quadro se sobrepunha a tudo. Fiquei gamado por ele desde quando o velho me contou quem eram as moças nele retratadas. E como elas instilaram doses maciças de sensualidade na história da França, no Reinado de Henrique IV, um tarado de quem não gosto. Se ele ressuscitasse e se eu pudesse, iria massacrá-lo de tanta porrada. Matá-lo outra vez, repetir Ravaillac. Várias vezes Julienne, a Duquesa de Villars, falou comigo sobre ele, suas amantes, seu instinto guerreiro e sua bravura, mas sobretudo sua falta de respeito com as mulheres. Falou inclusive de suas investidas com ela. Daí minha raiva.
Ali reunidos, falamos de nossas vidas, de nossos pais; contudo, ninguém se aventurou a abordar o problema do inventário. Ou seja, como seria a distribuição dos bens do patrimônio familiar. No meu espírito fronteiriço, a vontade de perguntar pelo Quadro era quase incontrolável. Contive-me, todavia. Rosa, resoluta, encerrou a reunião do primeiro dia de luto com a frase que me confortou:
— Depois da missa do sétimo dia, vamos reunir a família para tratar do inventário.
Quebrei então o mutismo relativo ao objeto de minha angústia e obsessão:
— E o Quadro?
— Trataremos na reunião — Selene afirmou, expedita.
Aí, tumultuando as despedidas, minha irmã Rosa levantou a questão: “Não seria bom fazermos uma nota aos jornais comunicando o falecimento e anunciando uma missa?” O protesto foi geral: “Como missa se ele era ateu?” Mas Rosa ponderou: “Nós somos católicos e a missa será rezada por nós, para que Deus receba sua alma para descansar em paz. É um gesto nosso e não dele. Sempre respeitamos as idéias de papai.”
— Mas se ele não acreditava em Deus nem em alma, como nós queremos entregar sua alma a Deus? — indagou Joseph.
Selene falou que “gostaria muito que meu pai tivesse se convertido, mas infelizmente ele morreu ateu e eu não posso mais modificar sua vontade”, mas eu acredito em sua alma.
Para acabar com a controvérsia, brinquei:
— Nessa história de religião eu não dou palpite. Minha simpatia é pelo Budismo.
Eu nem sabia o que era budismo. Falei por falar, mas o que eu não queria mesmo era voltar ao Rio para a missa de Sétimo Dia e toda aquela fingida cerimônia da Igreja.
A discussão terminou com a aprovação de um simples comunicado:
“A Família de Jacques Madeira Wolf Scafth comunica aos amigos seu falecimento no dia…”
Selene interrompeu a leitura:
— Nada de data. Parece que ninguém soube e só agora estão tomando conhecimento pelo jornal. Todo mundo deve ter sabido da notícia. Nosso pai foi um pioneiro da construção civil, engenheiro consagrado!
Joseph, comedido:
— Selene, todos nós temos orgulho disso. Não é um comunicado que vai tirar suas qualidades.
— Não — ela acrescentou – pensando bem agora, só aceito se for uma nota de agradecimento aos amigos pelas manifestações de pesar. Aí, sim.
— Escutem — falei alto —, eu tenho de regressar a São Paulo e vocês redijam o que quiserem. Estou de acordo.
Cumprindo minha parte, peguei a maleta de mão, dei adeus aos irmãos e pisei para o aeroporto na esperança de embarcar no próximo vôo. Eram oito da noite. Consegui lugar no vôo das nove. Queria estar de volta ao meu apartamento e resolver, passar a limpo minhas lembranças e tudo o que havia acontecido.
No dia seguinte fui ao setor de livros de arte da biblioteca de São Paulo. Pretendia conhecer a história de quadros célebres e verificar seus valores, cotações.
Eram dez horas da manhã do dia seguinte ao enterro — e a imagem do velho já se esmaecia nas minhas reminiscências. Minha obsessão era com o Quadro, e o que tanto ele representava para mim. Recordei-me que meu pai sempre falava dele com mistério, “como um dos mais sagrados segredos da humanidade relacionados a uma obra de arte”. Exagero. Ao recebê-lo, a identidade do autor não constava das anotações sumárias escritas nestes termos: “Retratos da Duquesa de Villars e Gabrielle D’Estrées, no banho, quando a Duquesa, com um gesto simbólico, anuncia que a irmã está grávida do Rei.”
Disse à bibliotecária que queria consultar uma enciclopédia de obras de arte. Ela me explicou que havia muitas e perguntou qual a escola que me interessava especialmente. Os clássicos, os renascentistas, os românticos, os impressionistas ou arte contemporânea? Eu não era conhecedor de arte. Não tinha noção exata de como escolher a escola do meu interesse. Meu cabedal resumia-se a algumas pinceladas de leituras bissextas.
A moça da Biblioteca trouxe-me um livro sobre os impressionistas. Eles tinham uma importância muito grande na pintura mundial. Ela não sabia o motivo da minha consulta e pensou que era apenas uma curiosidade sobre pintura e qualquer obra servia.
Procurei recompor o Quadro na memória e jamais poderia enquadrá-lo dentro do movimento impressionista. No Quadro os motivos, as mulheres, por exemplo, eram tão reais que inibiam os devaneios ou atavios da imaginação. Os impressionistas se distinguiam pelo fato de que, em suas criações, a natureza não estava presente; apenas a impressão do que produz da realidade. O meu Quadro não era impressionista. Essa definição tinha sido consagrada depois que Monet pôs o título de Impressões ao quadro por ele apresentado na exposição do Salão Francês de 1874, com a representação do pôr-do-sol. A obra alcançou grande sucesso. Desde então, os pintores que seguiam esse estilo foram chamados de impressionistas. A rigor, o impressionismo foi um dos momentos maiores da pintura mundial. Gosto de Renoir, com suas mulheres, e de Cézanne, com suas paisagens. O impressionismo teve seu lado revolucionário quando se contrapôs ao espírito greco-latino e ao romantismo choroso. Na minha única viagem a Paris, deparei-me numa exposição com um quadro que me causou forte impacto. Era de Renoir. Uma pintura de um verde diferente em que a mulher sentada num balanço estendia a mão a dois homens. Não recordo o nome do quadro. Na minha memória ficaram somente suas cores, misturadas aqui e ali por algumas tonalidades pretas.
A natureza não exibe cor alguma com uma forma constante e imutável. Os objetos têm a cor da ilusão, sendo a luz fonte geradora das verdadeiras cores e de seus matizes. Assim eles pensavam, segundo li no volume de consulta que possuía belíssimas reproduções.
Mas nada disso tinha a ver com o Quadro. Folheei mais alguns compêndios de arte, mas não tinha conhecimentos que me levassem a precisar claramente qualquer pista do Quadro. Achei bonita, ao folhear o livro, uma pintura de Rappaport, com uma modelo nua. Era uma composição em três planos e um triângulo negro. Este, ao mesmo tempo, sugeria os cabelos do púbis da mulher ou uma ilusão perdida na paisagem do quarto em que ela se despia. O quadro tinha coloração entre o verde e o azul. O jeito e a posição da mulher com uma perna estendida numa cadeira exacerbava a sensualidade da obra que mexeu comigo.
Nosso Quadro não era uma pintura clássica, dessas anteriores ao Renascimento, nem de figuras imóveis, coloridas demais, nem barroca com a extensão das formas, ou aquelas mulheres gordonas, de banhas para todos os lados, tão ao gosto de Rubens.
Com os livros que a moça me passava, vi as mulheres de Picasso, as damas nuas, as banhistas e os desenhos eróticos dos últimos anos de sua vida, em que o artista se escondia atrás de um biombo para apreciar e estudar os modelos colocados na cena do ateliê. Aristóteles dizia que era dever do artista melhorar o modelo. Picasso era um gênio devasso. As libidinagens que ele desenhou no fim da vida dizem tudo. São mulheres e falos que farejam, aguçam os sentidos na busca de sensações as mais lascivas Foram extraordinários seus últimos 10 anos de criatividade. Ele brincou de pintar, divertiu-se com os velhos mestres, redescobrindo e repintando vários de seus quadros. Não é o Picasso azul, disso ou daquilo, é o Picasso dono absoluto de sua arte a compor tudo o que desejava. Não sou nenhum entendido em pintura. Isso que estou dizendo é fruto do que estava lendo. E como uma coisa puxa outra que não tem nada a ver, gostaria de dizer que, por não ter na Paulicéia praias com mulheres em biquíni, só podemos ver mulheres peladas em exposições de pintura ou em outros recantos do exuberante litoral paulista. Adoro São Paulo. Tomei um misto de ojeriza e amor pelo Rio. Ninguém me cobre nada por tal contradição porque não sou muito chegado a coerência. Gosto do bizarro, na melhor significação que os franceses emprestam ao conceito. De corpo sou macho. De espírito, bissexual, paulista e carioca. Não sei bem por quê, mas acho o Rio uma cidade feminina e travesti.
O Quadro era de uma beleza tão grande, que eu na minha ignorância de achar que tudo que é perfeito é clássico, achei que ele era clássico. Li que a definição de clássico remete ao tempo antigo, à arte dos que primeiro se expressaram na pintura, escultura, desenho e tal. Mas na minha cabeça acho que clássico é aquele que elabora uma coisa tão perfeita e tão boa que ninguém pode imitar. Assim, tudo o que não pode ser imitado para mim é clássico. Não me satisfaço com a definição que estava escrita na história da pintura de que o clássico é grego e romano, anterior ao Renascimento. Para mim clássico não é isso. Clássico é clássico, aquilo que é eterno. Nessa concepção meu Quadro é um clássico, embora isso seja uma divagação sem base. Li que o conceito de clássico, como eu penso também, é nebuloso. Tem uma corrente de classicismo ligada ao século XIX, e a questão do clássico e do barroco se põe em relação ao século XVII francês. O Renascimento, escrevem eles, é o apogeu da busca do clássico, com seus traçados reguladores que encantaram os célebres Leonardo e Rafael.
Levei uns dias interessado em compêndios de arte. Não me extasiei com a Gioconda de da Vinci, que se banaliza na publicidade massificada. Aquela mulher com jeito de homem não me agrada. Gosto mais da Mulher com Arminho pertencente ao museu Hermitage, de São Petersburgo. É mais bonito, bem mais construído com aquela paisagem de fundo em negro vermelho.
Parei num retrato de Masaccio, esse florentino morto prematuramente aos 27 anos de idade em 1428, que pintou o retrato de um homem jovem, ninguém sabe seu nome. Obra fantástica pela força do olhar, pela expressão visionária, futurista do personagem, cujo chapéu parece reproduzir o movimento de ondas e de formas. Falei de chapéu, mas tenho a impressão de que se trata de um pano de cabeça. Em A Crucificação, de Perugino, tive a sensação de uma Nossa Senhora pouco sensível, ausente, enquanto São João me parecia posar para uma festa de Miss Universo. Gostei de Bellini, com seu arrogante retrato do Condottiere. Porém, os pintores de que mais gostei, de coração, foram os espanhóis. El Greco me embeveceu, foi uma sensação diferente para minha alma. O Enterro do Conde de Orgaz constitui marco inconfundível na pintura mundial. São soberbos os planos de Filipe II sentado lá em cima, e daquele manto diáfano, coisa de magia, subindo a alma ao céu. Os holandeses me são estranhos, narizes muito vermelhos e mulheres muito redondas. A pintura americana e a inglesa chamam a atenção sobretudo pela brancura imaculada das mulheres. Dos brasileiros adoro o Portinari dos primeiros tempos. Depois ele resolveu seguir os cubistas e outros istas de que não gosto. Di Cavalcanti, embora não sendo um pintor genial, tem cores belas, alegres e equilibradas. Suas mulatas de lábios carnudos são atraentes. Dos contemporâneos gosto de Bracher, Siron Franco, Floriano, Brennand, Cícero Dias, Calazans Neto, Scliar.
Depois desse rápido interesse por pintura, permaneci na mesma: sem saber a que escola e a que tempo pertencia nosso Quadro. Ao fechar aqueles livros, espantei-me com o fato de que meu pai, dois dias depois de sua morte, se distanciava cada vez mais de minha memória imediata. Nem seu semblante do dia do enterro eu conseguia reconstituir corretamente. Isso me causava vergonha e sentimento de culpa. Eu me sentia um ordinário. Sempre associava a lembrança dele ao Quadro. Porém, com um detalhe: o Quadro era mais importante que a saudade ou memória de meu pai.
Procurei saber mais sobre quem eram as duas mulheres retratadas no Quadro que me dominaram a infância, juventude, e me consomem de desejos até hoje. Ao sabê-lo, me perguntei: “Mas como estas mulheres irromperam em minha casa e ocuparam minha vida?” O Quadro não era um simples duplo retrato. Ele também contava um episódio da história da França e de duas mulheres da Corte. Nesse campo meu interesse foi maior, li e bisbilhotei o que pude. É fascinante reler o que aconteceu naquele tempo de sangue, guerras, mulheres e crueldades.
Na época a França se achava dividida entre católicos e protestantes, numa dessas contendas religiosas que marcaram a humanidade. Gabrielle d’Estrées, um dos amores de Henrique IV, está retratada no Quadro, ao lado de minha Duquesa, Julienne. Ele é um homem nojento. Henrique, que nessa época era apenas Henrique de Bourbon, príncipe de Navarra, num arranjo político para fazer as pazes entre católicos e huguenotes, casou-se com Margot, filha de Henrique II e Catarina de Médicis no dia 18 de agosto de 1572, diante das portas da Catedral de Notre-Dame de Paris. Não dentro, porque, ele sendo huguenote, não podia entrar na igreja. Na confusão desse casamento é que aconteceu a famosa noite de São Bartolomeu, quando as ruas de Paris e as águas do Sena ficaram vermelhas do sangue dos protestantes. Dois dias depois do casamento fizeram um atentado contra o famoso Almirante Coligny, chefe de governo de fato, e no dia 24 massacraram todos os protestantes que tinham ido a Paris assistir às bodas. O futuro Henrique IV, com medo, converteu-se ao catolicismo para não ser morto. A chacina foi brutal.
Governava a França o irmão de Margot, Carlos IX, que teve uma frase bem ao gosto dos brutos Reis daqueles tempos e que teria sido reproduzida por um Pierre de L’Estoile, em seu Journal.
“Que gentil a bunda de minha querida Margot, minha irmã. Não creio que haja outra igual no mundo. Deu-me condições de matar tantos huguenotes de uma só vez.”
Conta-se que Margot não queria casar-se com Henrique e na hora que o arcebispo pediu-lhe o assentimento — o famoso sim — ela não disse nada. O Rei deu-lhe um pescoção tão forte que ela abaixou a cabeça e com esse gesto o arcebispo interpretou o sim. Margot, cuja vida seria uma trajetória de depravação incomum, foi amante dos irmãos aos nove anos, teve mais amantes que as estrelas do céu, escreveu memórias que contam suas aventuras, fez versos, foi prometida a Felipe II de Espanha e até a nosso Dom Sebastião de Portugal, o Rei encantado que morreu em Alcácer-Quibir, escapando de ter mais chifres que todos os touros da Índia e os panos vermelhos dos toureiros.
Outra vez que, numa manobra política, Henrique converteu-se ao catolicismo, ele já era Rei da França, como Henrique IV, e para pacificar o Reino e assegurar o seu trono, converteu-se pela segunda vez ao catolicismo em que fora educado, depois de na mocidade se tornar huguenote, seguindo sua mãe, e de largar o catolicismo que lhe haviam imposto com a faca na garganta. Uma das pessoas mais importantes na segunda conversão ao catolicismo foi Gabrielle d’ Estrées, retratada no Quadro.
Gabrielle era amante de Henrique IV. Durante nove anos mandou na França. No processo de reconversão do Rei, tornou-se célebre a frase — “Paris vale uma missa.” Ela o convenceu a abjurar outra vez o protestantismo para que não perdesse o trono.
É que com a França dividida Henrique perderia a coroa. Felipe II de Espanha já tinha tropas em Paris, queria fazer rainha da França sua filha Isabel, neta de Henrique II, e o duque de Mayenne e os bispos, inconformados com um Rei huguenote, já tinham convocado os Estados Gerais para eleger um outro Rei.
Henrique IV continuava apegado a sua religião. Foi aí que Gabrielle d’Estrées procurou convencê-lo a converter-se, outra vez, ao catolicismo, sua religião. Os Marqueses de Ó e de Sully também o pressionaram. Mas foi ela que o conseguiu.
E assim, em 25 de julho de 1593, em Saint-Denis, ele escreve a Gabrielle, depois de abrir uma longa conversação com os bispos:
“— Cheguei à noite e fui importunado pela conversa sobre Deus até que dormi. Cremos na trégua e ela terminará hoje. Para mim, eu sou da Ordem de São Tomás. Esta manhã começo a conversar com os bispos. Beijo-te as belas mãos meu anjo e a boca de minha querida.”
De tarde conversou com os teólogos e disse, com profundo cinismo, que estava instruído para ser católico, e falou aos dignatários da Igreja, com lágrimas:
“— Ponho minha alma em vossas mãos.”
Daí o diálogo com o arcebispo de Bourges, na Catedral de Saint-Denis:
— Quem sois? — perguntou.
— Sou o Rei.
— Que queres?
— Ser recebido no seio da Igreja Católica Apostólica Romana.
— Quereis sinceramente?
— Sim. Quero e desejo.
Então jurou:
— Protesto e juro ante o Todo Poderoso viver e morrer na religião católica, renunciando a toda heresia contrária a ela.
Em seguida entrou na Catedral, confessou-se e assistiu à missa.
E assim se legitimou a monarquia de Henrique IV na França.
Com Gabrielle, que foi decisiva no processo, o Rei teve dois filhos e uma filha. O primeiro, César, Duque de Vendôme; o segundo, Alexandre, Chevalier de Vendôme; e a filha, Catarina Henrieta de Bourbon. Não sei como ela juntou-se com um soberano tão desclassificado.
Gabrielle era a mulher mais bela da França, segundo li nos testemunhos da época. Uma tal senhorita de Guise, embora não gostasse de Gabrielle, escreveu uma carta de incontida admiração por ela. De Guise sublinhou a certa altura: “Gabrielle possuía uma pele com a finura das águas, seus olhos tinham a cor do rubi e seus olhos azuis-celeste eram tão esplendorosos que deles o sol roubava a luz.” A cena do Quadro, como escreveu meu pai, era a do momento em que a Duquesa de Villars pegava o seio de Gabrielle para anunciar que esta se encontrava grávida do Rei.
Quando jovem, não sabia nada disso. Apaixonei-me pela Duquesa sua irmã, tão bela quanto ela. As duas deitaram comigo, me possuíram noites e noites e eu quase me acabo por elas e com elas. Da Duquesa ouvi muitos segredos e relatos da história da França, das intrigas da Corte e senti seu carinho e seu ardor de fêmea.
Tendo conhecido as intimidades do Henrique IV, com elas e até de uma sua investida para conquistar a Duquesa, a raiva e o ciúme ferveram em meu peito. A repulsa pelo Rei me traspassou.
Era um Rei sujo, fedorento. Andava sempre vestido com roupa de couro e perseguia todas as mulheres e teve muitos bastardos.
Ele chegou ao cinismo de prometer casar-se com Gabrielle. Mas só depois de sua morte conseguiu divorciar-se de Margot, graças aos seus conchavos com o Papa Clemente VIII. Então casou-se com Maria de Médicis. Os papas legitimavam os Reis na velha teoria de que o poder na terra vinha dos deuses. Casamentos e suas anulações começavam e terminavam no Vaticano.
A nova esposa de Henrique IV veio de Florença, onde seu matrimônio foi feito por procuração, para encontrar-se com o marido. Era virgem, tinha 27 anos. Ao chegar em Marselha o Rei não a estava esperando, divertia-se com a amante Henriette d’Entragues, Marquesa de Verneuil, em Grenoble. Oito dias depois encontra a nova rainha em Lyon. É noite. A rainha está de camisola. Ele não a conhecia. Invadiu o seu quarto. Ela ajoelhou-se, conforme o costume, aos pés do Rei. Ele levantou-a pela mão, beijou-a e disse:
— Rogo que a senhora me empreste a metade de sua cama que eu não trouxe a minha.
Tirou a roupa. Deitou-se com Maria de Médicis, consumou o casamento e ela dez anos depois seria a rainha da França.
Já ao corrente da história dos personagens do Quadro, recebi telefonema de Selene, a mana que comandava a família. Tomava conta de todas as coisas e fora incumbida do inventário dos objetos existentes na casa paterna. Ao longo da vida, o velho colecionara selos e gostava de fotografias antigas do Rio de Janeiro. Uma delas, fixada com destaque, no seu gabinete de trabalho, mostrava a igreja de Nossa Senhora da Glória lá no alto e a área próxima quase deserta. Aqui e ali, entre as árvores e o matagal, escondiam-se algumas casas.
Lembro-me de uma estatueta que papai afirmava ser de Santa Maria Egipcíaca, exposta em cima de sua mesa, revestida de um manto diáfano, o busto bem à mostra e um cordeiro nos braços. Pose muito avançada para uma santa. Dizia o velho que, inspirado nesta estátua, Manuel Bandeira escreveu o poema sobre a santa. Santa que, conforme a história, para atravessar o rio em busca de Jesus, “…entregara ao barqueiro / a santidade de sua nudez”.
Foi por aí, antes da reunião dos herdeiros, que Selene me deu a notícia, verdadeira bomba lançada no meio da família. A antiga empregada da casa, Gertrudes, ainda do tempo de minha mãe — que há muitos anos não aparecia nem ninguém sabia mais de sua existência — procurou Selene para dizer-lhe que seu filho Agamenon era nosso irmão. Feirante na favela da Rocinha, o cara tinha mais ou menos a minha idade. Gertrudes fora despedida por minha mãe porque não cuidava com eficiência de suas tarefas. Era uma morena baixa, de pernas grossas, cabelos longos e seios grandes. Nunca ninguém pensara que meu pai tivesse com ela alguma coisa que não as relações de patrão e empregada. A notícia fornecida por minha irmã provocou indignação e insultos: Gertrudes era uma vagabunda chantagista, puta e megera. Sabendo da morte do nosso pai, queria tirar proveito, participar da herança.
Ouvi tudo e não me surpreendi. Estas histórias não podem ser inventadas. Entretanto, o velho Jacques, nunca dera nenhum sinal de manter relação com a Gertrudes.
Então viúva, o marido morrera num tiroteio na favela, Gertrudes era mãe de cinco filhos. Quando ela se casou, o filho, nosso irmão, já estava crescido. Até ali, Gertudes não revelara quem era o pai do menino. O marido, por sua vez, nunca se importou com a estranha situação. Simplesmente adotou o garoto como filho do casal.
Gertrudes procurou Selene para uma conversa particular. Ela se informou da morte de meu pai pelo jornal, leu o anúncio de seu desaparecimento. Decidiu contar tudo, agora, “já que seu Jacques está morto”.
Consultado pela mana, recomendei que ouvisse a ex-empregada, polidamente, não a tratando de “vagabunda”. Meu pai não era santo. Gostava de umas saídas, e muitas histórias corriam sobre sua ficha de mulherengo. Um amigo contou-me que ele cantou a mulher de um engenheiro com quem trabalhava em obras de São Conrado. A mulher confessou tudo ao marido. Este, em seguida, de arma na mão, mandou-se para São Conrado à cata de meu pai. Foi demorado o esforço para convencer o homem de não assassinar o velho. Em contrapartida, seu Jacques nunca mais apareceu no canteiro de obras. Ultrajado, o marido pediu as contas. Meu pai mandou pagar tudo o que ele exigiu. Enfim, segundo o amigo, o velho tinha realmente um caso com ela. Ambos se encontravam na garçonnière que ele possuía perto da Lagoa. O escândalo explodiu porque uma amiga da mulher a par do caso brigou com ela e pôs a boca no trombone. Ao marido ela disse que tinha sido, de fato, assediada por “doutor Jacques”, mas repeliu suas propostas. Na verdade, não foi bem assim, o romance existia e continuou.
A mãe do meu amigo, que sabia de tudo, pois era amiga da Ludmila — eis o nome da mulher —, contava que papai tinha um ritual nos amores paralelos. Recebia com champanhe, colocava valsas vienenses na vitrola, usava robe-de-chambre e pedia que ela se despisse na penumbra. Quando ela, deitada na cama, sussurrava “amor”, ele acendia a luz e ficava em pé, parado, hipnotizado, estraçalhando-a com os olhos. Depois se atirava, num frenesi incontido.
Sobre seu caso com papai, Gertrudes garantiu a Selene que não faltara “com o respeito” em nossa casa. Seu relacionamento com o velho se iniciou depois que ela foi despedida e se mudara. Ela então procurou “Seu Jacques” no escritório para pedir emprego, e ele a fez arrumadeira da garçonnière da Lagoa. Nisso, ocorreu o clima e lá veio o menino porque ela não soube usar a tabela para evitar riscos de gravidez. Papai assegurou-lhe a devida assistência por muito tempo e ajudou na criação do menino. Gertrudes deixou de ter contato com meu pai assim que se casou. Bem acolhido pelo marido, o filho se incorporou definitivamente à família. Quando casou, ela abandonou qualquer contato com meu pai.
Não duvidei da veracidade do caso ao ouvir o relato de Selene. Na verdade, ela ligou para anunciar a convocação da reunião destinada a tratar do inventário dos bens deixados por papai: apartamentos e casas em conjuntos residenciais, por ele construídos em vários bairros cariocas. Papai sempre reservava umas unidades para si. Havia também bons saldos bancários, a casa grande da família, belos móveis e os objetos de arte. Entre estes, distinguia-se naturalmente o que todos julgavam ser o mais valioso, o grande tesouro, o Quadro, ali escondido com extremo cuidado.
Já me preparava para tomar a ponte aérea de sábado quando Selene cancelou a reunião. Joseph tinha um compromisso importante e pediu o adiamento. Fiquei frustrado. Havia passado a semana debruçado sobre os manuais de arte, em busca dos segredos do Quadro e das figuras retratadas.
O adiamento me aborreceu muito. Ora, eu ansiava por uma decisão rápida sobre a herança. Não que minha obsessão principal fosse o dinheiro do Quadro. Para mim, a reunião seria importante pela decisão sobre o Quadro, o que ele significava para mim, ponto central de minha ambição. Nada de fúria pecuniária. Era certo também que eu desejava um pouco mais de recursos para melhorar meu padrão de vida. Mas isso viria dos outros bens. Vivia bem com meu Gol, mas ele já precisava ser trocado. Antes mesmo da morte de papai, eu pensava em um Passat importado. Queria igualmente realizar obras no apartamento, ampliá-lo, ou quem sabe comprar um outro, novo. Estava decidido a não voltar ao Rio. Já radicado em São Paulo, construíra meu estilo de vida ali, e pronto. Solteiro, nunca quis casar. Não é bem assim: não surgiu a hora e a vez. Tive muitas namoradas. Com essa ou aquela desejei um relacionamento duradouro. Todavia, logo voltava atrás, por causa do meu perfeccionismo. Eu não queria quebrar a cara. Testemunhara muito casamento desastroso, pior do que escravidão ou internação em hospício. Acabava encontrando ou pondo defeitos nas moças, sempre desconfiado, talvez porque já estivesse mal acostumado nesse negócio de mudar sempre de mulher. Para o continuo troca-troca amoroso contribuíam, sem dúvida, os programas e noitadas que os amigos e amigas preparavam pelo prazer do convívio. Hoje é difícil um casamento nascer de uma gestação normal. É sempre um acidente. Minha índole recatada protegia-me da tentação de cair numa vida dissoluta. Não dispensava um cinema, apreciava o teatro, visitava exposições, comparecia aos eventos da cidade, freqüentava academia de ginástica e o clube da associação dos empregados da empresa em que trabalhava. Nos fins de semana ia com a turma amiga passear em Guarujá, São Sebastião e outras regiões onde havia sempre feiras e variadas atrações. Sempre fiz sucesso com as mulheres. Meu corpo atlético, meu jeito calmo, meu tratamento carinhoso e galante. Aliás, como diz o presidente Lula, todos gostam de sexo. É, eu também.
Marina, a amiga com quem tinha um velho caso e sempre se mostrava disponível para preencher meus vazios de companhia, se encarregava também de organizar os programas de fim de semana em hotéis-fazenda, lugares de festivais etc. Não gostava de livros. Eu era um técnico, minhas leituras se concentravam nas revistas especializadas do meu ramo. Às vezes, éramos surpreendidos com ocorrências que estragavam a alegria e o bom humor do programa. Acontece. Uma vez fui com Marina a Barretos para o festival do Peão do Boiadeiro. Já dentro da cidade, ao dobrar no cruzamento, bati num carro. Marina se feriu no rosto. Agoniados, voamos para o hospital de urgências. Ela levou cinco pontos. Seu medo, compartilhado por mim, era de que ficasse marca. Por isso, solicitei um cirurgião plástico para efetuar a sutura. O médico tranqüilizou-a, não ficaria nenhum sinal. Paguei com o cartão de crédito a casa de saúde. Quanto ao carro, não me inquietei, estava no seguro. Saímos do hospital e fomos nos hospedar no Hotel Brasil. A festa do Peão do Boiadeiro acabara-se para nós. Naquela noite agitada, desmanchei-me, entretanto, em carinhos. Jogamos muita conversa fora, entre meus cuidados para ser impecável nas amabilidades: “Você quer uma sopa? Quer água?” “Fruta? Manteiga”? E lá se iam cascatas de beijos e afagos, com intermitentes recorrências ao sobressalto causado pelo acidente. “Graças a Deus estamos vivos”, ela suspirava e me apertava a mão. Exagerávamos um pouco na apreciação do fato. Na realidade, a batida fora pequena. Não corremos nenhum risco maior, como se fosse uma batida em alta velocidade. Em meio às minhas mais ensaiadas carícias, Marina me surpreendeu o ouvido com a revelação indesejável: “Menstruei. Acho que foi o susto. Por favor, desça e me compre um absorvente.” E precisou, bem escandido – “Mé-di-o.”
Desci e perguntei na portaria onde havia uma farmácia. O rapaz me indicou, ficava a duas quadras. Bruta farmácia tradicional, muitas estantes e prateleiras e poucos clientes na hora. “Por favor, a seção de absorventes”, dirigi-me a uma das atendentes, simpática, elegante e bem pintada, parecendo mais a uma recepcionista ou aeromoça do que a uma vendedora de farmácia. Ela me deu uma olhada suspicaz e me gozou: “Para você?” E riu. Não achei a menor graça. “De que marca?”, tinha malícia na inflexão de sua voz. Antes que eu gaguejasse algo, ela se desatou a citar marcas: “Always? Sempre Livre? Modess? Carefree? Temos todos. Mas olhe, se o senhor quiser uma recomendação, eu dou — o que uso e acaba de ser lançado é o Delícia. Mais macio e mais confortável.” Confundi-me com a intimidade dela, a contar-me qual a marca que usava e também pelo seu olhar malandro. Ela indagou pelo tamanho. “Médio”, balbuciei. “Tem certeza que é médio?” Ah! Veio um sorriso. Era tudo que ela queria para se expandir: “De onde o senhor vem? O que faz? É a primeira vez que vem a Barretos ver a nossa festa?” Em seguida entregou-me o cartão — “Madalena. Recepcionista. Farmácia S. José de Barretos.” Agradeci e ela me mediu com o olhar de alto a baixo. Não sei por que eu fora escolhido para tal investida. Mas logo dei o desconto na vaidade: se por ali passassem cinqüenta homens certamente ela repetiria a técnica com a qual deveria colher bons resultados. Por via das dúvidas, pedi o Delícia, tamanho médio. Marina gostaria. Já estava saindo quando Madalena me alcançou com o cochicho: “Se o senhor quiser uma companhia para a festa, telefone. Vou ficar aqui até as dez horas.”
Voltei ao hotel, Marina me esperava com uma dor de cabeça dos diabos. Pediu-me para comprar um analgésico. Logo, com grande alegria e boa vontade, retornei à farmácia e Madalena me atendeu: “Veio trocar o absorvente?” “Não, vim comprar remédio para dor de cabeça, uma aspirina.” “Cuidado com aspirina”, ela me alertou, querendo puxar conversa de novo: “É perigoso se a pessoa for alérgica. Leve Bylenol.” “Obrigado, levo Bylenol.” A mulher jogava mesmo na ofensiva. Eu já tinha visto outras assim, mas esta, francamente impetuosa, disparava na frente. Não sei se ela achou alguma coisa em mim. Sou normal, nunca fui alvo de paqueras notáveis. Esse costume de mulher tomar a iniciativa não é brasileiro. Dizem que as crioulas da Guiana são assim. Até ali não estava entendendo bem Madalena. Passei então a estudá-la como mulher. Seus seios estavam quase à mostra — eu sou grudado em seios. Eram desses volumosos que as americanas gostam de exibir em decotes folgados. Não era bonita, mas tinha um sorriso cativante. As pernas eram grossas e as nádegas médias. Olhei fixamente seu ventre quase à mostra, livre, numa calça jeans, dessas caídas embaixo, no redengue, a sugerir o caminho, com o pequeno umbigo, bem no centro, encolhido, de pequenas pregas e bem formado. Que desculpa apresentaria a Marina para sair com ela? Na certa, ela pensou que eu havia voltado à farmácia por causa dela e não pela dor de cabeça de Marina. Despedi-me não sem lhe lançar uma piscada incrementada, de quem não dava a partida por encerrada.
Voltei ao hotel disposto a buscar algum meio para driblar Marina. Talvez o jeito fosse dizer-lhe que eu devia levar o carro à delegacia para registrar o ocorrido, pegar uma certidão da ocorrência para a companhia de seguros, etc. Ofereci-lhe água e perguntei-lhe se estava melhor. Disse que não. A dor de cabeça aumentara. Tomou o remédio e arrumou-se na cama como quem queria descansar. “Não posso deixá-la assim”, tentei afastar a hipótese de me perder na noite com Madalena. No lamento, reli discretamente o cartão com os números de telefone, inclusive do celular. Era uma chance que eu não devia desperdiçar.
Disse a Marina que iria à portaria procurar endereços de médicos, tínhamos de nos prevenir caso o estado dela piorasse. Ela engoliu o pretexto sem gemer. Desci, peguei o telefone e, todo excitado, liguei para Madalena, que tinha atingido seu objetivo — me assanhar. Ao cabo de cinco vezes chamadas, veio aquela voz eletrônica: “Você chamou Madalena. No momento não posso atender. Deixe seu telefone e recado que voltarei a chamar.” Deixei passar uns bons vinte minutos, tempo em que obtive os nomes e telefones de dois médicos. No segundo telefonema uma voz que me parecia conhecida atendeu. “Sou eu, o rapaz que comprou o absorvente e o Bylenol”, me anunciei. “Ah, sim.” A voz já não era a mesma. Talvez ela estivesse despistando por ter alguém por perto. “Olhe, reclamações somente amanhã, estamos fechando a loja.” “Não é reclamação, sou eu, o Léo, aquele que você convidou para ir à Feira.” “Obrigado, ligue amanhã.” Ainda insisti, liguei mais uma vez, e a resposta foi outra: “Este telefone está programado para não receber ligações.”
Eu caíra no conto do bobo seduzido. Subi ao quarto. Marina passava bem. Dormimos. Mas a moça da farmácia perturbou meu sono.
Regressei a São Paulo no dia seguinte com Marina em forma. Telefonei a Selene, à procura de notícias sobre a reunião. Ela me avisou que o encontro estava marcado para sexta-feira próxima com a concordância de todos.
A casa do meu pai era um imenso vazio. Faltava-lhe vida. Por todos os lados a gente podia sentir sua presença e sua falta. Fomos para a mesa grande da biblioteca. Era um bonito móvel de sucupira.
Selene estava acompanhada do marido, Vitório, e Joseph tinha Antônia ao lado. Eu, Rosa, e Luís Carlos completávamos o grupo de herdeiros. Selene tomara a providência de trazer o contador e encarregado de negócios de meu pai, Arthur Lameira. Ele faria uma exposição sobre as normas que regem os inventários e forneceria a relação dos bens a serem partilhados. Aberta a reunião — em minha cabeça só existia a solução que seria dada ao Quadro — o contador colocou uma preliminar de procedimento:
— Os senhores sabem, durante dezessete anos eu trabalhei para o doutor Jacques, . Não era seu empregado. Recebia por serviços prestados, mas com absoluta continuidade, e assim, eu tenho algumas questões a esclarecer. Desculpem-me, mas quero dizer algo sobre meus direitos trabalhistas. Minhas relações com o dr. Jacques eram especiais e tinham uma grande carga de amizade. Os senhores hão de compreender que numa relação coletiva de muitos herdeiros a situação é outra. Mas nada que não seja dentro do apreço que tenho à família. Primeiro, se vou continuar prestando os mesmos serviços. Segundo, quem vai ficar encarregado de meu pagamento. Terceiro, concluído o inventário, o espólio deverá pagar-me indenizações trabalhistas, calculadas de acordo com a lei, pois não desejo fazer nenhum procedimento judicial.
Vitório, que era o mais experiente nesses assuntos, observou:
— Seu Arthur, seus direitos estão todos assegurados e o senhor deve continuar a prestar os seus serviços até o momento em que for necessário. Acho que não há por parte de nenhum de nós outra decisão senão essa. Continuará tudo como se meu sogro estivesse vivo.
Não esperávamos que a reunião começasse assim. Todos tinham plena consciência da honestidade e dedicação do Senhor Arthur, e não havia desejo de enganá-lo. Não gostei. Mas ele voltou à carga:
— E quem vai pagar os meus salários?
Vitório precisou que os salários e demais gastos ficariam por conta do espólio. Disse ainda que doutor Jacques havia deixado o suficiente para cobrir tais despesas.
Resolvida a preliminar, discutiu-se a contratação de um advogado. Escolhemos o professor Antunes, antigo amigo do meu pai e que já havia trabalhado com ele. Nós o conhecíamos bem. Aliás, Antunes já prestava serviços profissionais a Vitório, e Luís Carlos. Houve unanimidade na decisão. Foi nesse justo momento que o senhor Arthur lançou a bomba no meio da reunião.
— Quero comunicar-lhes que o doutor Jacques deixou testamento.
— Como? — exclamaram todos, seguindo-se o “mas ninguém sabia!”
— Está registrado no 12PoP Cartório. Ele pediu-me que guardasse segredo e só comunicasse depois de sua morte.
O baixo astral se infiltrou perversamente na reunião. Na minha cabeça o Quadro virou pó. Meu pai naturalmente havia doado a obra ao Museu de Belas-Artes do Rio de Janeiro e tudo o mais não tinha nenhuma importância para mim. Era o Quadro que nos fazia herdeiros especiais.
O Senhor Arthur retirou da pasta um envelope branco, lacrado, explicando tratar-se do testamento registrado em cartório, cujo teor ninguém conhecia. Ou seja, as últimas disposições de vontade do nosso pai.
O silêncio invadiu a sala. Antônia, que fora a neta predileta e a companhia por excelência do velho nos últimos tempos, era a única que apresentava uma fisionomia normal, sem qualquer sinal de perplexidade. Todos olharam para ela com a sensação de que ela sabia da existência do testamento, das disposições contidas no envelope branco. A mana Selene, sempre espevitada, não se conteve e perguntou: “Antônia, você sabia desse testamento?” Antônia, franca e direta: “Sabia. Meu avô me disse.” “E você não disse a ninguém?”, Selene inquiriu, intrigada: “Não, e nunca ninguém me perguntou, a não ser a senhora, agora.”
O mal-estar se diluiu no mutismo de todos. Seu Arthur pediu licença para abrir o testamento. Os olhos de todos se plantaram no papel de todas as cobiças. Na medida em que ele ia sendo aberto, minha aflição crescia a propósito do destino do Quadro. “Virou pó, virou pó”, eu remoía a hipótese de meu pai haver doado a pintura a uma instituição qualquer. Aquilo, se confirmado, seria uma tragédia para mim. Logo a tela, o grande mistério de nossa casa que o velho guardava a sete chaves. Deu-me simultaneamente a vontade de ir embora, de não saber de mais nada, de trancar-me no gabinete ao lado onde estava o Quadro. Queria venerá-lo, admirar a beleza de suas cores, os rostos das duas mulheres em seu esplendor: uma de cabelos escuros, presos, os seios pequenos, roliços, bem torneados, com os bicos vermelhos cor de rosa; e a outra , com cabelos de fogo, as mãos delicadamente pousadas nas bordas da banheira, de onde pendia um lençol drapeado. Ambas de olhos bem abertos e com a atenção voltada para mim, que as contemplava com um fervor carnal indescritível.
Daí a compulsão de multiplicar as visões que tinha da obra e de suas personagens: a primeira, à esquerda, a Duquesa de Villars, com o indicador e polegar no mamilo da outra, Gabrielle d’Estrées; as duas nuas, de lábios pequenos e vermelhos, tudo enquadrado num cortinado pesado de carmesim e, ao fundo, num marrom dourado, a criada preparando um enxoval diante da lareira. Magnetizado pelas marcas da memória, revisitei as lembranças das duas mulheres da minha vida, com os sonhos da adolescência, concupiscentes e pecadores. A lembrança intacta de todos nossos colóquios e meus beijos em sua boca de carmim. Foram elas que me iniciaram na vida sexual, em longas noites de paixão e prolongados amores. Selene me tirou dos doces devaneios:
— Léo, venha. O Arthur vai ler o testamento.
Ele colocou os óculos e pegou o documento que não era longo. Todos quiseram se certificar de sua autenticidade. Não me importei. Já estava abatido e pessimista, só com a idéia de meu pai ter deixado testamento.
”Eu, Jacques Madeira Wolf Scafth, filho de William Scafth, emigrado para o Brasil em 1908, natural de Dublin, irlandês, e de sua mulher Georgina Maria Madeira, natural desta cidade do Rio de Janeiro, viúvo, desejo…” E aí começaram as disposições:
“Deixo a casa da família à minha neta Antônia, sem os pertences que nela se encontram, que serão divididos em lotes iguais, de modo que cada um dos filhos guarde uma lembrança minha e de minha mulher, mãe de todos, Georgina Maria, a quem amei como esposo devotado e sepultei com a maior dor que um homem pode ter, pois a amava sinceramente.”
Achei a confidência meio piegas e não muito do estilo do velho, que nunca foi chegado a declarações de amor ou de externar sentimentos pessoais. No documento, ela ajuntava:
“Os meus bens são os descritos na minha declaração de imposto de renda. Nunca fui homem de ter bens ou numerário não declarado ou em nome de terceiros. Meus impostos estão em dia e o valor deles consta no meu balancete feito pelo Senhor Arthur, meu guarda-livros.”
Fiquei intrigado e ao mesmo tempo aliviado e até contente, porque o Quadro não fora destinado a Antônia, nem a um museu, como imaginara. O Quadro figurava entre os pertences da casa a serem objeto de uma partilha posterior em lotes como o velho determinava. Se o Quadro era o bem mais valioso de todos os que papai deixara como colocá-lo num lote para pertencer a um e não a todos? Certamente o Quadro seria indivisível e, portanto, propriedade de todos. Causava-me estranheza o fato de ele afirmar não haver no testamento nenhum bem não declarado. Ora, o Quadro, todos sabíamos, era um segredo. Não tinha origem formalmente determinada, fora objeto de uma troca para financiar o Partido Comunista. Na realidade, tratava-se de um patrimônio que nunca fora declarado. Pelo testamento, parecia continuar na mesma situação, sendo incluído sem uma classificação específica entre os “bens de casa”. A história verdadeira era conhecida de todos nós, nascidos e crescidos num quadro familiar fortemente influenciado pela presença daquelas belas mulheres.
Quando os comunistas tomaram o poder na Rússia e expropriaram o patrimônio da burguesia “em nome do povo”, recolheram muitas obras de arte que foram incorporadas ao acervo artístico do Estado. Entre as mais valiosas, algumas foram selecionadas para “servirem” à causa da Revolução Mundial, de que se ocupava o Comintern, órgão estratégico na cúpula da hierarquia comunista russa. Assim, por intermédio do Comintern, obras de excepcional valor estético, histórico e patrimonial seriam levadas e negociadas no exterior. O montante de tais transações iria, em parte, custear o movimento comunista internacional. Pois foi dessa forma que nosso Quadro chegou ao Brasil. Meu pai ficou com ele, por ser considerado um empresário progressista, muito ligado ao Comitê Central do PC, “um benfeitor da causa”.
Esse esquema de financiamento do comunismo por meio das obras de arte teve de ser adotado porque, de um lado, o rublo era inconversível e, de outro, as transferências de divisas da Rússia para o exterior — e vice-versa — sofriam extremos controles.
Ficou famosa no jargão da guerra fria a expressão “o ouro de Moscou”, com que os países inimigos da Rússia denominavam o dinheiro distribuído pela antiga União Soviética para fomentar o ideário da revolução bolchevista
Todos nós sabíamos dessa história e nos divertíamos com a idéia de termos em casa uma representação artística do “ouro de Moscou”, pela qual papai pagara régia soma ao PC, ao longo dos anos. Sem dúvida, com o passar do tempo e a valorização das obras de arte, o Quadro virou autêntico tesouro, segundo os entendidos. Em suma, aquelas donzelas financiaram muitas ações clandestinas, subversivas, participaram da Aliança Liberal e do levante comunista de 35.
Seu acompanhamento das ações do PC deu-lhe grandes dissabores. Sofreu com os revezes do partido e com a perda de grandes amigos. As atrocidades de que eram vítimas causaram-lhe grandes sofrimentos.
Ao aterrissar de novo na reunião, Arthur se aprestava a ler a parte do testamento. relativa aos “bens de casa”, entre os quais se incluía o Quadro, esse objeto de menção especial pelo velho:
“Deixo também a vocês uma obra de valor inestimável, o Quadro da Duquesa de Villars, e de Gabrielle d’Estrées, a amante do Rei Henrique IV. Foi pintado entre os anos de 1596 e 1610. A Duquesa e Gabrielle eram irmãs. O Quadro retrata o momento em que a primeira, com um gesto enternecedor, significa que a segunda está grávida do Rei. Não sei a origem da pintura nem como ela chegou às mãos de Godoy, o codinome do membro do Comitê Central do partido. Devidamente habilitado, Godoy me conferiu em definitivo a propriedade da obra por conta dos recursos mais do que razoáveis por mim fornecidos ao movimento comunista, o que muito me honra e orgulha. A tela deve ser vendida e o resultado distribuído entre os herdeiros. Pode ser arrolado no inventário como obra de arte da casa e constituir um lote próprio de propriedade de todos os meus filhos. Do seu valor deve ser retirado numerário necessário a ser construída uma estátua de Prestes a ser colocada num logradouro do Rio.”
“Deixo o apartamento da Rua Domingos Ferreira, nº 88, e um outro pequeno na Rua Aires Saldanha, nº 1054, bem como a quantia de vinte mil cruzeiros para Gertrudes, que foi nossa empregada. Deixo à Tecla, caixa do Banco Espírito Santo, um apartamento no edifício Santos Vallis, na Rua Senador Dantas, 198. Imóveis esses de minha propriedade.”
Arthur prosseguiu a leitura da relação dos bens, muito extensa, compreendendo mais de cem imóveis e sítios em Teresópolis e Petrópolis, além de ações da Light, Banco do Brasil e Docas de Santos.
Concluída a leitura, seguiram-se os comentários sobre as disposições do velho. As maiores surpresas eram o apartamento para Tecla, e os dois para Gertrudes, . No caso da ex-empregada, Selene já havia preparado o ambiente, informando que recebera telefonema dela sobre a existência do irmão até ali desconhecido e foi logo dizendo: “isso vai ser descontado, se ele se meter a querer herdar”. Quanto à Tecla, chegamos à conclusão de que era pura generosidade de um homem idoso, carente de afeição e que acalentara os sonhos sexuais da velhice. “Será que ela era amante dele?”, perguntou Selene com um ar maroto. Todos ficaram calados. Com os meus botões disse-me — “É claro que o velho não era besta”. Pelas discussões em curso, o Quadro se revelava o bem mais difícil a ser partilhado. Vitório afirmava que a obra deveria ser levada para fora do Brasil, entregue a uma dessas famosas lojas de antiguidades, Christie’s ou Sotheby’s, para avaliação e leilão. No Brasil não havia comprador para ela. Teríamos que consultar um advogado para saber como proceder. Colocá-la no inventário seria muito perigoso. Uma vez declarada, sua origem seria investigada — e os antigos donos ou herdeiros iriam aparecer, já que se tratava de uma obra de grande valor. Ela certamente despertaria interesse internacional, um frisson entre os colecionadores.
Os demais bens que passaríamos a possuir com a morte do velho não foram motivo de maiores indagações. Admiramo-nos da fortuna que ficou em títulos do Tesouro, confiados ao Bradesco, onde também existiam depósitos em dinheiro. Estes eram ainda remanescentes do antigo Banco Brasileiro de Descontos, do Amador Aguiar, de quem meu pai fora amigo e cliente durante muitos anos, amizade continuada com seu sucessor, doutor Brandão, homem de grande austeridade e valor.
A primeira providência que tomamos referiu-se à contratação de uma consultoria para detalhar os procedimentos a serem seguidos no inventário e promover o arrolamento e a avaliação dos bens existentes na casa grande da família. Na hora, Arthur forneceu o segredo do cofre da casa – do qual era depositário – onde se encontravam as jóias de minha mãe e outros objetos preciosos. Ficou igualmente acertado que Vitório seria o novo depositário do segredo. O cofre, conforme o acordo, somente seria aberto na presença do conjunto dos herdeiros. Em seguida, lacramos o cofre com três rolos de esparadrapo comprados na farmácia da vizinhança e assinamos em cima. Por sugestão minha, xerox da cópia do segredo e do testamento foi entregue a cada um dos filhos.
Tendo herdado a casa, Antônia disse não dispor de meios para mantê-la. O pessoal decidiu que o espólio financiaria essa despesa, obrigação ainda mais justificada pelo fato de que ali se encontravam os bens a serem divididos, sobretudo o de maior valor e de maior significação para a família — o Quadro. Dali ele não podia ser removido. Era o magnífico esplendor da biblioteca, no seu trono majestoso, a irradiar a beleza das cores, das duas mulheres, de seus seios, entre cortinados abertos com as nuanças de um tecido raro, suntuoso. Era, enfim, uma peça que encerrava a magia das coisas eternas.
Nenhum de nós podia imaginar o que viria pela frente nem subestimava a dificuldade de enfrentar um inventário tão complexo. De certo modo, estávamos bem de vida. O único menos arrumado era eu, com um apartamento modesto, carro usado, um salário razoável, alguma poupança, o suficiente para minha vida de solteirão. Nunca fui de pedir dinheiro ao velho. Tampouco almejei uma casa ou vida de luxo. Vivia bem, simplesmente. Porém, ante a fortuna que iríamos herdar, a ambição me sacolejou a imaginação. Interessei-me vivamente em saber qual seria minha parte, em que ela consistiria em dinheiro, títulos, imóveis, quem tomaria conta de meu patrimônio. E por aí se desdobraram minhas preocupações. Preocupações próprias de quem se tornava rico. Entretanto, a maior de todas as minhas ambições era ser proprietário de uma parte do Quadro. Por mim, ele jamais seria vendido. Gostaria de vê-lo transformado em uma espécie de patrimônio eterno. Nasci com ele e com elas.
Foi na puberdade, com a voz adquirindo outro timbre e os pêlos crescendo, que me apaixonei pela Duquesa de Villars. Ficava horas e horas adorando seu corpo, deliciando-me com a luminosidade e o frescor de sua pele, com as linhas magistralmente desenhadas de seu rosto, com a expressão sensual e provocante de seus olhos. Ela saía à noite do Quadro, vinha pé ante pé para minha cama. A sensação de êxtase me contagiava quando ela se aproximava e se deitava a meu lado. Como celebrava pela noite adentro a formosura de seus seios! Ela exalava um aroma que só eu sentia. Debaixo do lençol ela me acariciava e eu enlouquecia numa paixão irreprimível. Só queria que a manhã não chegasse e que a noite se eternizasse.
Recordo a primeira vez que Julienne — era o nome da Duquesa —, me visitou como a glória inaugural de minha vida. É como se as cores da noite fossem azuis e um perfume de plenitude me invadisse o corpo. Ela entrou sem que eu esperasse e foi como se chegasse um bem inalcançável, uma deusa no meu quarto.
Eu passara a tarde do dia anterior no delírio da contemplação do Quadro, fixado na figura da Duquesa, objeto da minha paixão. Gabrielle era bela mas era com Julienne que meu delírio chegava ao êxtase. Foi nesse dia que me pareceu ouvir sua voz, como se fosse um canto de baleia, que me fez pensar fosse parte de minha felicidade de amar e sonhar:
— Vou estar contigo, Leonardo, esta noite.
Como todos me chamavam Léo e ouvi ela chamar-me Leonardo fiquei mais excitado. Parecia delírio mas poderia acontecer. Entre dúvida e vontade de vê-la esperei essa noite que não teve começo nem fim, pois toda ela foi um desvario a consumir-se na espera. No princípio tomei-me de uma dúvida de que ela jamais chegasse e que tudo se passara dentro de mim, num mistério. Mas preparei-me para acontecer. Sentia como se tivesse me preparado para esse momento. Cresceu dentro de mim essa expectativa como se em toda a minha vida eu a aguardasse.
Meus olhos estavam fechados e abertos para a festa da chegada. Meu corpo foi tomado de um rubor que eu poderia sentir mesmo na escuridão. Ali estava ela, sentada à beira de minha cama.
Chegara como uma leve batida de asas de um pequeno pássaro. O lusco-fusco de minha cama tornou-se uma luz amortecida e clara de uma noite de lua. Julienne era menor do que parecia. Tinha quase o corpo de uma criança e sua pele era branca que refletia minha sombra. Seu cheiro doce brotava dos cabelos.
— Leonardo, eu nunca pude pensar em deitar-me numa alcova do Brasil. Ele era para mim apenas uma longínqua e desconhecida terra dos papagaios e pesava na memória dos franceses uma leve lembrança da aventura de uma França Antártica, em que transplantamos a luta entre huguenotes e católicos.
Eu não entendi nada do que ela falava. Eu era só desejo e queria tomá-la nos meus braços, beijá-la inteiramente, acariciar seus seios e tomá-la como mulher. Pelo mistério da minha paixão ela via-me na plenitude do meu corpo acordado para a vida.
— Leonardo, você é um menino, jovem e homem. Aqui não há os perigos e ciladas da corte em que vivi. Ouvi seus desejos e fui seduzida a prová-lo. Você alguma vez possuiu uma mulher?
Entre tremor e frio respondi:
— Não.
— Então vou ensinar-lhe. Há quantos anos não sinto um homem dentro de mim.
Em seguida suas mão pequenas começaram a despir-me, passear sôfregas na minha nudez e deitar seu corpinho leve e ardente em cima do meu.
Relembro essa noite como uma festa do meu corpo e pela primeira vez senti a graça de Deus em ter criado a mulher. É como se eu soubesse o que era e como iria fazer, mas seria muito mais que a realidade para ser o gosto da carne, o respirar do desejo e o sublime de sentir-me o bicho homem.
— Julienne, Duquesa da minha demência…
Retirei o travesseiro de penas, coloquei-o no chão. Ajoelhei-me e ela nua estava deitada no lençol de nuvem de minha cama. Deixei a cabeça adormecer repousada em seu ventre. Quando o dia amanheceu, eu estava assim, preso de uma felicidade que só a luz testemunhava. Só e unido durante toda minha adolescência.
Dei para emagrecer. Minha mãe assustou-se, me apertou para saber o que estava acontecendo. Ela não poderia nunca adivinhar que era o corpo da Duquesa a causa de meu definhamento. Ora, eu não parava de amá-la. Pela simples visão do quadro na rotina dos dias, ninguém podia conceber o que ela era na cama nem como me ensinou os sortilégios do corpo.
Não consegui calcular o que iria decorrer nestes dois anos de duração do inventário. A constituição dos lotes deu um trabalho dos diabos, sem falar do que Gertrudes aprontou. Em São Paulo fiquei menos exposto às dificuldades e controvérsias em que a realização do inventário enrascou os herdeiros. Nisso, a família unida, sem brigas nem separações internas, havendo apenas o jogo natural das afinidades afetivas maiores ou menores entre uns e outros, converteu-se num clã dividido, desestabilizado pelas desconfianças. A primeira suspeita foi a de que Selene havia se conluiado com o contador Arthur e doutor Antunes para enganar os demais herdeiros. Suspeita suficiente para que cada um constituísse advogado, e passasse a vigiar seu suposto quinhão. Com os juros altos, os títulos dispararam, rendendo fortunas inimagináveis. O inventário perturbou minha vida. Passei a ler cotações em bolsa, a acompanhar o sobe-desce das ações. “Hoje ganhei tanto”, ficava eufórico, dividia por cinco e calculava minha parte. No outro dia, perdia tanto e caía na fossa. Tudo ilusão dos papéis. Porém, não tinha dúvidas de que Selene me enganaria. O diabo era que não tinha como pagar um bom advogado para seguir o inventário, cujo término ninguém se atrevia a prever. Minha vontade era contratar o melhor advogado, o Doutor Saulo Ramos, e colocá-lo na briga. Nesse aperreio e sem recursos, resolvi escrever ao cunhado Vitório uma carta fria, dizendo que queria tomar conhecimento de todas as etapas do inventário. Por outro lado, sublinhei, não concordaria com nada sem ser previamente consultado. Recebendo a carta, ele me telefonou para estranhar minha atitude, minha “falta de confiança” e ameaçou renunciar à função de inventariante. De fato, tudo não passava de insegurança de minha parte. Baixei a bola. Disse-lhe que precisávamos retomar as relações de confiança mútua, aquilo era apenas um momento de tensão, tudo iria se normalizar logo mais. Vitório aceitou ou fingiu aceitar minhas desculpas. Antônia continuava a morar na casa e o espólio pagava as despesas de manutenção.
Sempre ia ao Rio sob o pretexto de visitar a família. Para falar a verdade, pintava lá só para venerar o Quadro. Chegava, muitas vezes Antônia não estava, apenas a empregada. Dirigia-me à biblioteca, pegava um livro para despistar e ficava com a vista pregada na Duquesa e Gabrielle, de quem sabia toda a vida. Essas mulheres eram minhas amantes da juventude, por elas tive um desvario que quase me levou ao psiquiatra. Jamais me curei dessa alucinação. Mesmo agora, homem maduro, quando retorno à casa paterna, invento um interesse pelo livro tal para me refugiar na biblioteca. Lá, conforto, embalo e o desvio da juventude que se incorporou à minha personalidade adulta.
Nunca esqueci o trauma que sofri, desgosto provocado pelas providências tomadas pelo velho para me curar do “mal misterioso”. É que comecei a emagrecer. Não queria me alimentar. Adquiri uma palidez patibular. Meus olhos exprimiam uma tristeza insondável, um esgotamento profundo se apoderou de mim. Dei para considerar as aulas fastidiosas, não conseguia acompanhar as explanações dos professores, não me fixava em coisa alguma e da leitura não assimilava nada. Minha mãe foi quem primeiro deu o alerta: “Esse menino está doente”. E vieram os interrogatórios: “O que você sente?”, “diga à sua mãe”. E, finalmente, o velho, apesar de minha relutância, levou-me ao dr. Rubens, o médico da família. Exames. Ele nada constatou. Tratava-se, no seu entender, dos transtornos da puberdade. Só eu sabia o que tinha. Era uma doença da alma e não do corpo. O médico me receitou remédios à base de cálcio e recomendou que eu me alimentasse melhor. Com discrição, chamou-me ao lado e fez a pergunta que me chocou: “Você não está exagerando na descoberta do seu corpo?” Fiz-me de desentendido. Ele me lançou uma olhada matreira e sugeriu a meu pai: “É bom levá-lo a um psicólogo.”
Novo constrangimento. Era uma senhora meio balzaquiana, com cara de catedrática na leitura da alma humana. Pediu-me que lhe contasse minha vida. Retraí-me, não abri a boca. Aí ela mudou de tática: “Qual é o seu time?”, “Gosta de futebol?”, “Já vai a festas?”, “Tem bom relacionamento com seus colegas?”. Eu respondi monossilabicamente. Ela, competente, falou de futilidades, mas topou de novo na minha retranca. Mesmo assim, manifestou a intenção de continuar conversando comigo em nova sessão na próxima semana. Com a voz macia, frisou: “Eu estou aqui para ajudá-lo. Tenha confiança em mim. O que você me disser ninguém saberá. Nem seu pai, nem sua mãe. Não conte a eles nossa consulta. Diga-lhes que foi normal. Nós, profissionais da saúde, temos um juramento de segredo que não podemos quebrar. Mas é necessário que conheçamos as pessoas, o que as atormenta, a causa de seus males, para curá-las.”
Gostei de suas palavras e me dispus a voltar na outra semana. Esse período foi extremamente penoso para mim. A Duquesa não me deu folga, deixou-me à beira do colapso.
À noite a Duquesa vinha, deitava-se e, às vezes, repetia a história de que fora também seduzida pelo Rei. Isso para melhor me massagear o ego: “Mas um menino como você é meu Rei”. E prosseguia na lábia enfeitiçadora: “Eu me sublimo com sua paixão que é igual àquela que o Rei Henrique IV, após a morte de minha irmã, teve por Henriette, uma loura, culta e de cadeiras sedutoras, filha da amante de Carlos IX, Marie Touchet, velha assanhada, de quem a filha herdara essa qualidade. Um dia te conto essa história.” Eu acordava exaltado com as carícias e revelações que ela me fazia. Muitas madrugadas, inconformado com sua partida, levantava-me e ia nas pontas dos pés procurá-la no gabinete, onde a encontrava já reentronizada no Quadro, devolvida à sua bela dignidade e ao caviloso exercício de me acicatar com sua mirada provocante.
Voltei à psicóloga, Doutora Ester. Ela perguntou se eu já tivera relações sexuais, se era inseguro e muitas outras coisas indiscretas que me encabularam. Nesse dia ela entrou direto em minha vida íntima. Já exausto, ouvi dela: “Você está com uma paixão represada. Quem é ela?” Neguei. A doutora insistiu, disse que sabia cientificamente que era isso e me pediu para confessar: “Assim você se libertará e vamos ajudar-lhe a encerrar o caso.”
Depois de tantas indagações, sucumbi:
— Estou apaixonado. Sou amante da Duquesa de Villars. Estou totalmente dominado pela paixão, sinto-me feliz, embora a companhia permanente de sua irmã Gabrielle d’Estrées me perturbe. Gabrielle é amante de Henrique IV, e mulher muito vivida.
— Onde você a encontrou?
— No escritório do meu pai.
— E onde se encontram?
— No meu quarto todas as noites.
A Doutora Ester parou, fitando clinicamente meu semblante pálido, enfermiço. Percebeu certamente que se tratava de um caso de psicose:
— Você está feliz?
— Sim. Ela é minha paixão, embora esteja angustiado pela idéia de perdê-la.
“Por que você deu o nome de Duquesa à empregada de sua casa?” — ela deduziu, sem dúvida, com base na minha informação de que meu primeiro encontro com a Duquesa ocorrera no escritório de papai e que depois ela passara a ir ao meu quarto todas as noites. Ora, no entender da doutora Ester, eu suponho, aquilo só podia ser transa de adolescente com a empregada da casa.
— Não, ela não é nossa empregada. Ela é a fortuna de nossa casa.
— Quem é?
— A Duquesa mora no Quadro que meu pai tem no seu escritório.
— Sua paixão é pelo retrato dela?
— Não, é por ela no retrato.
Um caso jamais registrado na clínica da Doutora Ester. Tratava-se seguramente de uma alucinação a ser cuidada por um psiquiatra e não por ela. Nem por isso a doutora perdeu o interesse pelo meu drama. Ao contrário, demonstrou viva curiosidade pela Duquesa, pela descrição de nossas noites e quis que eu a levasse até o Quadro.
Recusei-me, pois, assim, meu segredo seria revelado. Mas senti a Doutora Ester excitada pela minha descrição. Ficou vermelha, me pedia detalhes e, hoje, eu avalio que ela quis ser a Duquesa. “Você…?” “O que sentiu quando…? Não respondi. Ela me abraçou fortemente e deu-me um beijo que até hoje não consegui decifrar. Eu era um menino.
Antes de eu sair, ela convidou-me a ir a outra sala do consultório. Tinha umas poltronas de design moderno de uma sala de visitas.
— Aqui converso com meus pacientes quando são necessários diálogos mais detalhados.
— Meu filho — e aí a voz foi de um carinho diferente, seus olhos faiscaram. — Quando a Villars deita com você, nua, uma mulher que vem entregar-se, como você acaricia os seus seios?…
Eu fiquei encabulado.
— Diga-me? O que faz? Beija? Morde? Aperta? Fale, é preciso que eu saiba.
Eu achei Doutora Ester diferente. Foi aí que ela retirou sua bata de médica. Estava com uma camisa branca, de mangas compridas, cheia de babados na gola, punhos e abotoadura. No centro, duas pregas ao nível da cintura. Abriu a camisa. Apareceram seus seios guardados num soutien, também branco, com um debrum de flores nas bordas. Hoje, recordando este fato, não sei como avalio sua atitude. Devia ser uma mulher de trinta e poucos anos. Ela abaixou o soutien, pegou minha mão e disse:
— Afague meus seios como você faz com a Duquesa — sua voz mudara de tom. — É necessário que eu saiba seu sentimento.
Eu nunca apertara nenhum seio. Eram os primeiros que eu via assim. Diferentes da Duquesa. Tinham uma auréola grande e escura e seus mamilos eram bicos altos. Aí, ela disse meigamente: “beije, beije”.
Eu não sabia beijar. Ela insistiu “beije” e em seguida “sugue”. “Faça que vai mamar.”
Fiquei muito perturbado. Ela começou a recompor-se, não sem antes pegar seus seios, encostá-los em meu rosto e dizer: “Despeça-se da Duquesa.”
Vestiu a bata branca, tomou o telefone e disse a meu pai que era bom levar-me a um psiquiatra, o que me recusei violentamente, depois do erro que cometi de revelar à medica minha paixão.
Na saída carinhosamente me falou:
— Depois do psiquiatra quero você aqui de novo. Lembre-se do que disse. Como o médico não revela segredos, o doente também não pode revelar. Tudo que fizemos é para um diagnóstico exato. E tacou-me outro beijo.
Cheguei em casa, tranquei-me no quarto e chorei com a consciência pesada: “Será que eu traí a Duquesa?” Nunca mais compareci a seu consultório. Quis dizer a meu pai o que acontecera com a Doutora Ester. Mas não fiz. Não quis complicar mais minha vida.
Um dia, alguns anos depois, recebi um telefonema:
— Aqui é a Doutora Ester. Você recorda? Sou a médica a quem você relatou seu amor pela Duquesa de Villars.
— Muita satisfação em ouvi-la. Como está a Senhora?
— Bem. Apenas seu caso até hoje me intriga. Nada de tão fascinante encontrei em minha clínica. Eu queria vê-lo. Pode ser em meu apartamento. Você terminou com a Duquesa?
Fiquei calado um tempo. Após, respondi:
— Doutora, dê-me seu telefone que depois ligarei.
Aquilo ficou misterioso. Eu ainda era inexperiente e não pude entender o “porquê” daquela chamada. Eu ainda estava muito apaixonado pela Duquesa.
Devo confessar que até hoje não resisto às carícias da Duquesa. Coisa feia num homem de minha idade. Foi um hábito que contraí e agora devia esquecê-lo, mas sempre sucumbi ao olhar da Duquesa, pouco ligando para seu arzinho de deboche. Afinal, eu podia dizer-lhe o que a Rainha Margot — que ela conheceu — disse a seu irmão Henrique III quando reprovava sua conduta com amantes: “Não te recordas que fostes o primeiro a me ensinar o amor?” Com a morte de meu pai, meti na cuca que um quinto do Quadro me pertencia. E esse quinto era ela. Se nós, os herdeiros, brigássemos e, no cúmulo do absurdo, resolvêssemos esquartejar a tela, o pedaço contendo seu retrato seria meu quinhão. Pode crer, eu viraria bicho, mataria, estraçalharia pelo meu quinhão de mulher.
Numa de minhas viagens ao Rio, Selene me mostrou a petição com que Gertrudes requeria a investigação de paternidade para o filho, agora meu meio-irmão. Palavra que não gosto, prefiro a espanhola hermanastro. Por sua vez, Arthur, que foi um padrão de fidelidade a meu pai, atritou-se com meu cunhado inventariante e entrou na Justiça trabalhista pedindo vultosa indenização por seus serviços. Argumentava não ter carteira assinada, embora possuísse provas de emprego contínuo. Cobrou férias, aumentos, multas, indenizações e outras vantagens. O contencioso ainda se arrasta nos recursos e contra-recursos. Eu por mim era de opinião que se firmasse um acordo com o Arthur, mas Selene não concordou. “Aquilo é um safado, roubou muito meu pai”, a acusação de minha irmã era, no mínimo, leviana. O pior, contudo, foi a ação de paternidade. Colher sangue dos irmãos, mandar para laboratórios e amargar aquela espera irritante. Nesse dossiê não me abalei. Não conhecia pessoalmente o meio-irmão mas a história era bem construída, tudo se encaixava, nada amparava a suspeita de uma história inventada. Enfim, a aventura paralela do velho nos fez perder uma boa bolada. Uma vez comprovada a paternidade, um acordo foi assinado pelo qual o meio-irmão receberia dinheiro, casas, mas não entraria no consórcio de herdeiros do Quadro, que ele nem sabia que existia.
Nas recordações ligadas ao Quadro, veio à tona aquela da noite do meu maior tormento que, em larga medida, determinou minha decisão de ir estudar em São Paulo.
Estava dormindo quando a Duquesa penetrou no meu quarto chorando, desesperada, e anunciou: “Envenenaram minha irmã Gabrielle. Foi na casa de Zamet, familiar do Rei no Arsenal.”
A Duquesa era só agonia, aflição. Sua irmã estava grávida do quarto filho de Henrique IV. Aos prantos, ela repetia: “Foi o Rei.” “Foi o Rei.” Procurei acalmá-la. Ela me implorou para salvá-la e revelou: “Gabrielle foi à missa. Começou a sentir-se mal depois de beber a limonada que lhe serviu Zamet.”
— Quem é Zamet?
— Gente do Rei.
Não pude reprimir o grito: “Envenenaram Gabrielle! Mataram Gabrielle! Ela morreu aos vinte e seis anos.” Continuei berrando meu desespero com todas as forças das cordas vocais A casa inteira acordou e acorreu a meus aposentos.
Eu rolava pelo chão, dava murros nas portas, vociferava como um demônio. Ignoro a que horas da madrugada isso ocorreu. Só me lembro da fisionomia alarmada de meus pais e dos empregados.
Isso mesmo. Ao sair da crise, ainda zonzo, enxerguei meu pai e minha mãe que me tocavam delicadamente o corpo, e me chamavam: “Léo? Leo?” E perguntavam, represando o assombro: “Léo, o que foi?” Retomando a calma, levantei-me, sentei-me na beira da cama. Pedi para ver o Quadro. Desci a escada quase correndo com todo mundo da casa me acompanhando. Pensei que a Duquesa tinha desaparecido da tela. Não. Ela estava no mesmo lugar. Deram-me água com açúcar. Meu pai diagnosticou: “Foi um pesadelo violento”. E minha mãe, mais concreta: “Este menino está doente.” Enfim, protagonizei uma cena inusitada.
Gabrielle foi uma das mulheres mais fascinantes da História da França. Julienne contou-me tudo sobre a irmã. Ela era de uma beleza rara. Tinha vinte anos quando o Rei Henrique IV a conheceu. Ele queria possuir todas as mulheres e dizia que “ter uma mulher só é ser casto”. Gabrielle já tinha sido amante do Rei Henrique III, que lhe pagou seis mil escudos, do cardeal de Guise, do duque de Longueville e do duque de Bellegarde, seu noivo, que a apresentou a Henrique IV. Tinha o sangue de sua avó que também entregou-se a Francisco I, ao papa Clemente VI e ao imperador Carlos V.
A esta linhagem de mulheres sedutoras Gabrielle juntava uma beleza que perturbava a todos. Usava trança e suas mãos tinham a “cor dos lírios e rosas mesclados, obra prima da natureza”.
Julienne me disse que testemunhara o início do romance de sua irmã com o Rei. Nesse tempo, ia casar-se com o duque de Bellegarde. O Rei estava em guerra na região de sua família, e sitiava Chartres. Conheceu Gabrielle e cortejou-a. Esta não o quis, achando-o “fedorento e sujo”. O Rei, atrevido como era, chamou seu pretendente e disse: “Bellegarde, não gosto de dividir os Reinos e as mulheres. Larga Gabrielle.” Esta, quando soube dessa ameaça, foi atrás do Rei, gritou que ele se afastasse de sua vida e, numa crise de fúria, atirou uma pedra que o alcançou na testa. O mais valente dos Reis da França estava ferido por uma mulher. Isto só aumentou sua paixão. Tomou cidades e deu-as a seus parentes e, depois, instalou-a na Corte.
Com ela viveu seis anos e deu-lhe todas as provas de amor. Fez-lhe Marquesa de Monceaux, Duquesa de Beaufort, Duquesa de Verneuil e Duquesa de Étampes. Julienne me disse que realmente foi ela quem convenceu o Rei a abjurar o protestantismo e influenciou na aprovação do Édito de Nantes, que acabou com as guerras religiosas. Tudo isso aprendi com a Duquesa, que me fazia ver o quadro como um teatro no qual estava um pedaço da história européia.
Com essas coisas na cabeça, acordei tarde e no dia seguinte a vizinhança se interrogava sobre o que havia acontecido. Meus gritos ecoaram por todo o quarteirão.
Concluí que devia me afastar dessa paixão, indo estudar em São Paulo. Meu pai concordou. Sentia-me debilitado com a perseguição noturna e contínua da Duquesa. Por outro lado, o envenenamento de Gabrielle me causou profunda comoção. Na realidade, eu vivia a tragédia por transferência.
No Rio, novamente para tratar do inventário, procurei Tecla, a moça do Banco que meu pai presenteara com um apartamento. Queria conhecê-la de perto. Contatei-a por telefone, combinamos um jantar. Éramos quase da mesma idade, sendo ela um pouco mais nova do que eu. Uma mulher interessante. Sempre negou ter sido amante de papai. Tudo não passou, segundo ela, de “uma amizade” nascida no trato dos assuntos do velho. Ela se surpreendeu, achou mesmo inacreditável sua inclusão no testamento. Em principio duvidei de suas palavras, mas acabei me convencendo de sua sinceridade. Gostei do jeito da moça e de seus olhos, que lembravam os da Duquesa. Inicialmente ela recusou, mas depois aceitou meus convites para passear em São Paulo, com hospedagem em minha casa. Algumas vezes a consciência pesou. Afinal, eu passara a dormir com minha madrasta, digamos. O certo é que quase no fim do inventário a Tecla apareceu grávida. Garantiu-me que iria providenciar um aborto. Nos telefonemas, eu renovava as declarações de amor e perguntava se ela “ tinha feito a coisa” ou “quando seria”. Ela dava a mesma resposta: “Daqui a dois dias, estou esperando uma amiga para acompanhar-me”. Adiou várias vezes e por fim avisou-me: “Vai ser amanhã.” Esperei ansioso e no dia telefonei para o banco. Ela estava ausente. À noite, já em casa, ela atendeu. Confirmou que tinha realizado o aborto e sofria problemas de consciência. Consolei-a, aliviado, por não ser minha a idéia da melindrosa operação. O desafogo foi ainda maior porque, de forma alguma, desejava ter um filho com a mulher considerada amante de meu pai.
Visitei-a dois meses depois no Rio. Qual não foi minha surpresa, imensa, desconcertante, ao vê-la ostentando aquela senhora barriga. Aterrado, bateu-me a vontade de espancá-la, de dar-lhe uma sova pela desfaçatez com que me enganara. Serena e descontraída ela me encarou: “Não tive coragem. Eu queria ter um neto do doutor Jacques.” Cobrei-lhe as cenas românticas ao telefone. Ela tangenciou e, não sem uma dose caprichada de má fé, tomou minhas juras de amor como artifícios de quem desejava induzi-la à pratica do aborto. Pelo que ela insinuava, eu não tivera coragem de colocar a questão com franqueza e transparência. Reagi. Tecla contra-atacou: “Você queria o filho?” “Não”, concedi. “Então o filho é meu e pronto, você nada tem a reclamar.” Repliquei, espicaçado: “Como não? E a minha paternidade?” Tecla, irada: “Que paternidade? Fique tranqüilo, não quero nada de você.” Ora, era fácil dizer – “Não quero nada de você.” O difícil era eu aceitar que o filho era meu. Eu teria de criá-lo. Nunca pela minha cabeça passou a idéia de ter um filho. Minha decisão na vida foi a de ser um solteirão sem descendentes. E o escândalo na família? Ah! Em que confusão me meti. Nos comentários de casa me tachariam de “monstro”, que “herdou a amante do pai” e “ já tem mesmo filho com ela”.
A rigor, minhas relações com Tecla não foram conflituosas. Ela não era dada a querelas. Passada a borrasca da gravidez, nos entendemos bem. Mantivemos um convívio civilizado. Eu é que fui imbecil em não verificar que o Quadro continha suas mensagens ocultas. Não é o tema de Gabrielle, com a mão da irmã em seu seio, significando-lhe que estava grávida do Rei? Não captei nada disso. Só depois é que efetuei a leitura dos signos expostos na pintura. Ou seja, não era Tecla quem recebia? Cabia-me decifrar a mensagem da gravidez.
O filho de Tecla nasceu exatamente no dia em que os herdeiros se reuniram e decidiram que o Quadro não seria arrolado no inventário. Ficava fora. Os herdeiros constituíram então uma sociedade por cotas com o objetivo específico de zelar pela obra e naturalmente entabular negociações para sua venda. O produto da venda seria dividido em partes iguais entre os cinco sócios irmãos. Causava-me imensa dor a idéia de separar-me das duas mulheres que marcaram tanto minha vida. A hipótese bem real do negócio me atormentava demais. Preferia não imaginar o estado em que me quedaria se a tela saísse de nosso domínio.
Sem dúvida, a Duquesa era parte de minha vida. Mas a Tecla-Gabrielle era a mãe do meu filho. Eu adorava Gabrielle pela sua mirada plena de sensualidade, perspicácia e meiguice. Adorava-a pelos seios empinados, redondos, bicos róseos, apontados permanentemente para mim. Todavia, não poderia trair sua irmã. Na Duquesa eu não queria apontar defeito. Aceitava o arco deformado de seu braço e de sua mão meio assemelhada a garra de um falcão fazendo aquele ó simbólico da gravidez. Confesso que nunca reparei bem, no fundo do Quadro, a velha sentada confeccionando uma peça branca, talvez o enxoval do menino que ia nascer.
Meus olhos de adolescente abaixavam a borda da banheira onde elas estavam para saborear seus corpos inteiros desnudos, seus cabelos loiros e suas coxas de um torneado impossível de ser reproduzido na realidade. Só o sonho era capaz de iluminar e realçar mais ainda os sublimes atributos de minhas amantes. Pois eu via, eu via a Duquesa nua, completamente nua, como via também Gabrielle. Ficava totalmente perturbado nessa contemplação sensual da nudez.
O consórcio de herdeiros decidiu chamar especialistas europeus para examinar o Quadro, elaborar o certificado de sua autenticidade e calcular seu valor. Depois, conforme prévios entendimentos, a Christie’s se encarregaria de leiloá-lo. Relacionamos as tarefas que íamos cumprir dali em diante. Um amigo de meu cunhado, Conservador do Museu de Belas-Artes, seria a primeira pessoa de fora a ter acesso ao Quadro. A ele caberia a montagem da logística para as próximas operações. Com a aprovação de todos, o conservador convidou o renomado especialista europeu, professor Pizolla, antigo diretor do Museu de Berna, em missão no Brasil naquele momento, para promover uma perícia da obra. O mestre aceitou o convite.
Fomos todos convocados para o ato de apresentação do Quadro ao professor Pizolla. Nós o recebemos na entrada da biblioteca, onde, lá no fundo, a tela produzia as emoções do deslumbramento. Sentia-me embaraçado, agastado porque tive de cancelar a visita que faria a Tecla, ainda se recuperando da cesariana. Não prestei atenção direito nas datas e horários. Só me dei conta da coincidência dos compromissos quando já me achava na biblioteca. Afligi-me com a idéia de que Tecla iria me chamar de insensível, incapaz de um gesto de solidariedade. Para agravar a consciência pesada, nunca discuti com ela minhas responsabilidades em relação à criança, ao seu nascimento. O custo zero para mim do parto não me recomendava. Seria certamente considerado um pulha desalmado. Ao mesmo tempo, tentava aliviar a consciência, eximindo-me de qualquer responsabilidade pela decisão de Tecla de ter o filho.
Bem, a Monsieur Pizolla oferecemos uma acolhida fidalga e calorosa. Ele nos impressionou pela cultura diversa e pela cordialidade glacial. Parecia um túmulo feito de gelo, tão frio quanto as águas do Lago Léman, em Genebra, cidade que ele tanto apreciava. Falava um português muito arrastado, pausado, porém expressava os conceitos com precisão.
Reiterados por Vitório os agradecimentos pela sua visita, conduzimos o mestre ao encontro do Quadro. Ao avistar a tela, levei um choque. Atordoei-me com o pressentimento de que a missão de Pizolla consistia em preparar o processo para a expulsão de meus amores. No semblante da Duquesa se estampava um pedido de clemência: “Não deixe que me levem à guilhotina.” Levantando a vista e encarando o Quadro, que ocupava boa parte da parede, o professor Pizolla não disfarçou o fascínio. Visivelmente sensibilizado, manteve-se silencioso por alguns instantes, sob a angustiada espera de todos nós por seu julgamento, e sentenciou, afinal: “É muito belo”. E como se o português não traduzisse precisamente seu sentimento, repetiu em francês três vezes: “Très beau!” “Très beau!”, “Très beau!” E claramente embevecido: “Merveilleux!” Pizolla permaneceu ainda em frente ao Quadro, mergulhado em profundo silêncio, do qual emergiu com o mesmo julgamento: “Très beau!”
Refeito da deslumbrada surpresa, ofereceu a primeira indicação do seu saber: “Parece um Clouet. Clouet que pintou um retrato de Diane de Poitiers. Este tem elementos que lembram o Quadro. A composição é muito semelhante à de Clouet. Diane de Poitiers era a favorita de Henrique II. Mulher ardilosa, casou aos treze anos, enviuvou e terminou por seduzir o Delfim. Foi retratada por muitos artistas, inclusive como Diana, a Caçadora, nua e com um braço no pescoço de um cervo. Deve datar do século XVI.”
E aí o mestre formulou a pergunta que semeou inevitável e indisfarçável constrangimento na assembléia: “Como essa obra veio parar aqui?”. Nós nos entreolhamos petrificados. Vitório, enfim, pôs os pontos nos is: “Esse é um segredo que não podemos revelar.” Que alívio! “Bem”, Monsieur Pizolla ponderou, conciliante: “Isso não é essencial ao meu trabalho. Mas os compradores irão pedir uma explicação. A origem é um elemento básico do processo de identificação.” Para nós o essencial já tinha sido resolvido — nada dizer sobre a procedência da obra.
Nessa etapa crucial, minha obsessão pelo Quadro recrudesceu. Vai daí, me enredei em múltiplas especulações e suspeitas de que Monsieur Pizolla iria falsificar as avaliações, o processo de identificação da obra e acabaria roubando-a. Sua empolgação diante da obra me forçava a supor que ele não teria a serenidade necessária para estimar o verdadeiro valor artístico e comercial da pintura. No duro, a emoção do mestre me levou a pôr em questão sua idoneidade profissional. Por isso, na reunião posterior dos herdeiros formulei a exigência – acatada sem restrições – de acompanhar todos os procedimentos relativos à apuração da autenticidade da obra.
Selene, a mais esperta dos irmãos, sempre desejosa de opinar e tirar conclusões, fez também a mesma exigência. Monsieur Pizolla, precisou que estaria pronto a fornecer à família todas as informações sobre os diferentes atos de sua perícia.
Incontrolável, Selene pediu-lhe uma avaliação — “ainda que oficiosa ou informal” — da obra: “Quanto ela vale?”
Pizolla, categórico:
— Minha senhora, não tem preço. É um tesouro extraordinário e único que em nenhum lugar do mundo pode ser encontrado. Um quadro é sempre único.
Selene voltou à carga:
— Em termos do mercado de arte, o Senhor poderia dizer o que pode valer?
Pizolla, com estudada imprecisão:
— Difícil dizer. Milhões de dólares. Milhões!
Os olhos de todos se arregalaram no assombro e brilharam. Aquilo era o que nós sempre pensamos que ia acontecer. Milhões de dólares.
No embalo de minha loucura pela Duquesa, decidi dedicar-me inteiramente ao processo de desvendar os seus mistérios. Por sua vez, Monsieur Pizolla calculou em cerca de 20 dias o tempo necessário para reunir os elementos indispensáveis à elaboração do laudo sobre a autoria da obra. Teria que alugar material, aparelhos de raios X, portáteis, pois o Quadro não poderia sair da biblioteca. Com chapas pequenas, montaria um mosaico, cuja leitura poderia indicar a época em que a pintura foi elaborada. Talvez mesmo a data exata de sua composição.
Outra coisa me atazanava: elucidar as circunstâncias precisas de como o Quadro chegou às mãos de meu pai.
Sabendo que a obra fora destinada ao Partido Comunista para assegurar parte do financiamento da mobilização proletária no Brasil, eu deveria descobrir alguém daquela época que tivesse conhecimento do fato. Procurei primeiro o doutor Antunes, advogado de meu pai e conhecedor de quase todos os seus segredos.
Ele confirmou que sabia da história, mas não exatamente dos personagens nela envolvidos. Conhecia a amizade de meu pai com Prestes e com outros dirigentes do PC, mas nunca tivera contato com nenhum deles. Esgravatei sua memória e finalmente ele se lembrou de um tal Johan de Graaf que pertencera à equipe de contatos do Comintern no Brasil, ou seja o pessoal encarregado por Moscou de preparar a revolução comunista no País. Segundo doutor Antunes, Graaf tinha mulher, Helena, ele não se recordava bem, muito jovem e bonita e fervorosamente engajada no movimento. Havia também o Arthur Ernst Euvert, sua esposa Eunice, e outros mais, cujos nomes o advogado ignorava, que foram quase todos trucidados pela polícia da ditadura de Vargas. Uma coisa bárbara. Suicidaram vários militantes presos, como Alle Barrom, Ernani de Andrade, Lulu Barbosa, jogados do 2o andar do Quartel da Polícia Central. Torturaram e levaram à loucura Harry Berger, a quem quebraram o dedo num quebra-nozes, dizendo “Kommunist ist schon eine Hure”, isto é, F.D.P., que aprenderam num treinamento do Dop com os nazistas. Mataram o filho de Harrison George porque se negara a dar o endereço de Prestes. Meu pai dizia que nunca nosso país vira tanta atrocidade como a cometida contra o Partido Comunista no tempo de Getúlio Vargas.
Aprofundei a investigação e descobri que no Grajaú residia um tal Xavier, um dos raros sobreviventes do grupo do Comintern. Fui ao Grajaú, localizei o velho Xavier no seu barraco de teto de zinco. Ao abrir a porta, o velhinho, todo entrevado, mas com o nervo da perseguição intacto e a vivacidade do olhar também — por via de conseqüência, talvez — perguntou num tom entre curioso e resignado:
— É a polícia?
— Não, sou historiador. Queria resgatar a história do Partido Comunista. Sei que o senhor é um dos remanescentes daquela época e que se salvou do fuzilamento. O senhor se lembra do doutor Jacques, que financiava o partido?
Xavier fez o gesto para que entrasse, fechou a porta, novo gesto para que eu o acompanhasse. Num passinho vacilante, o corpo encurvado, apoiando-se no que estivesse a seu alcance, ele reencontrou a cama estreita e rangedeira no fundo do barraco. Ofegante, deitou-se de lado, encolheu as pernas, mandou que eu sentasse no tamborete ao lado, me olhou, balançou a cabeça e tartamudeou:
— Nunca delatei ninguém. Não sei quem é o doutor Jacques.
— Eu sou filho dele e queria ter informações, porque tem a história de um quadro que eu precisava saber.
— Quadro? O partido sempre teve muitos bons e leais quadros. Recordo-me que o Jacques caiu num aparelho da Cinelândia.
— Não, o meu pai não caiu, ele sobreviveu a tudo e comprou o Quadro para financiar o movimento comunista no Brasil.
— Nossos quadros sempre foram bons.
— Estou falando de um Quadro.
O velho já sem articular a memória insistiu na nota só:
— Quadro sempre tivemos, não vendemos nem compramos nenhum. Todos eram idealistas.
— O Senhor conheceu o doutor Jacques?
— Parece que morreu na Cinelândia, ele foi delatado pelo Caneppa.
— Quem era o Caneppa?
— Era um espião alemão. O ministro do Exterior proibiu a entrada de alemães. Só os que tinham dinheiro. Recusou um apelo do Einstein para receber alemães perseguidos do nazismo. Ele não aceitou e proibiu também os maçons.
— Mas e o doutor Jacques?
— Era alemão, vivia de vender revistas na Cinelândia.
A cabeça do velhinho sofria de graves avarias. A ficha não caía. No desespero, tentei a última cartada:
— O senhor não sabe que veio um Quadro das coleções dos burgueses de Moscou para ser vendido e financiar a revolução comunista?
— Veio, sim, um quadro. Foi a Otília Benício. Era um quadro formidável.
Desisti. Saí arrasado com o resultado da minha investigação. Como não restava vivo qualquer outro do quadro do antigo Comintern/Brasil, tornava-se impossível o levantamento completo da história do Quadro. Ficaríamos mesmo sem saber de que maneira a pintura veio parar na malograda aventura revolucionária em terras brasileiras. A própria União Soviética não existia mais. Vivíamos num mundo em transformação. E eu ali, metido nesse inventário tumultuoso sem conseguir me liberar da imagem onipresente da Duquesa em minha retina.
Pensei em ir ao psiquiatra. Eu me exauria nos sonhos com ela me acariciando, enquanto Gabrielle sorria, zombeteira, de minha gamação pela irmã.
Sem notícias, desorientado, fui com os irmãos chamado para acompanhar a pesquisa de Monsieur Pizolla sobre a autenticidade do Quadro.
Tirada da parede, a tela foi posta em cima da mesa grande e radiografada por partes. Embaixo de cada parte, colocou-se a placa de chumbo para receber a radiação e permitir a impressão da chapa. Dias depois, as diversas partes foram montadas, recompuseram o conjunto da obra para sua análise final. Nossa expectativa pelo resultado era indescritível.
Teríamos de ir à Europa levando a pintura. Operação complicada. Precisávamos burlar a vigilância da Alfândega, escondendo o Quadro no meio da bagagem e recorrendo a outros expedientes não convencionais. A meta era chegar a Paris e entregar a obra à Casa Christie’s que se incumbiria do leilão. A idéia do leilão era trágica para mim. Jamais concordaria com isso, não concebia minha separação da Duquesa de Villars. Pura força de expressão, porque o inevitável — a venda — estava sendo armado, a despeito de minha omissão. Eu, sozinho, não podia dispor da obra, decidir sobre seu destino. Num acesso de delírio, pensei em roubá-la.
Realizaria o roubo no dia em que Antônia estivesse fora, provavelmente no fim de semana. Para meus comparsas, disfarçaria, camuflaria a operação com o argumento de que, no processo em curso da herança de meu pai, a guarda provisória da obra me tinha sido confiada. Entrei em contato com alguns marginais, pretendia contratá-los para a tarefa. Jamais deixaria a Duquesa de Villars ser vendida. Não haveria milhões e milhões de dólares que cobrissem o lance de minha determinação. Porém, não estando cem por cento seguro dos marginais escolhidos, tratei de melhorar a qualidade dos recursos humanos para a empreitada. Passando por consumidor, procurei um fornecedor de drogas. Ele se entusiasmou pela operação. Contratei seus serviços por dez mil reais. Exigi-lhe que em nenhuma circunstância usasse da violência. Tinha que ser um trabalho limpo. Eu tomaria as providências para que o Quadro saísse sem que ninguém oferecesse resistência. A tremenda decepção, contudo, não se fez esperar. Nas vésperas do assalto, Ladislau, o traficante, caiu morto numa boca-de-fumo do Sumaré. Fiquei de novo sem opções. Enfim, abandonei o plano arriscado do roubo.
Tecla me ligou com notícias do filho. Fora registrado com o nome de Gabriel. Tremi nas bases. Gabriel era o masculino de Gabrielle, a irmã da Duquesa. Esse nome me vincularia mais ainda ao Quadro. Perguntei se ela não pensou em outro nome, e ela peremptória: “O registro dele está feito. É o nome do anjo Gabriel. Meu filho é também um anjo. Lindo de morrer — e você ainda não quis vê-lo.”
— Estarei aí na sexta à noite. Vou passar o fim de semana com você e Gabriel.
Como não escaparia mesmo do exame de DNA, resolvi logo aceitar o filho como meu. Teria que combinar antes com Tecla. Como fazê-lo? No encontro do fim de semana dirimimos as dúvidas, mal-entendidos, e nos acertamos numa boa.
— Tecla, você sabe que eu jamais teria dúvida qualquer a seu respeito, mas você sabe que eu sou solteiro e minha família é muito grande. Caso aconteça alguma coisa comigo, meus irmãos poderiam recusar o Gabriel como sendo meu filho. Seria melhor que nós tratássemos disso logo, fizéssemos um exame de DNA que acabaria na raiz qualquer exploração a esse respeito.
À beira da crise de nervos pelas tantas dúvidas e hesitações, ela aceitou, afinal, que realizássemos o exame de Gabriel. Fomos ao laboratório para a colheita de sangue. No percurso, não me cansava de admirar o desenvolvimento da biologia, que assegurava, entre outros benefícios, o mapeamento da origem das pessoas. O menino chorou bastante com a picada, eu fiquei um pouco nervoso, mas em nenhum instante duvidei da minha paternidade. Também seja dito, eu até me sentiria aliviado se ele não fosse meu filho.
Alguns dias depois, não resisti à demora e fui pessoalmente procurar o resultado do exame no laboratório. Lembro-me dos menores detalhes, particularmente, daquela folhinha pregada na sala de espera. Tratava-se da publicidade de um laboratório, que produzia medicamentos para úlceras pépticas. Havia outro anúncio, ilustrado por um trator parado à beira de um buraco, com os dizeres: “Isso não é mais problema. Lurotec trabalhará por você.” Na recepção me pediram o comprovante da solicitação do exame e o recibo do pagamento. O número de referência era 2081XZ. Após quinze minutos de torturante espera, a enfermeira – uma morena de cabelos entrançados-miudinhos, estilo africano, – entregou-me um envelope fechado com a recomendação: “Confidencial, só pode ser aberto pelo solicitante.”
Não o abri dentro do laboratório. Mas, na rua, explodindo de curiosidade, retirei o papel do envelope para devorar o resultado com os olhos. Retive a respiração, fiquei lívido ao ler: “NEGATIVO.”
Verde, as mãos geladas, tremi de ódio da Tecla. Como podia ela me enganar daquela maneira, fazer-me de imbecil com esse negócio de DNA? Achei logo que Tecla, com aquela carinha de anjo, não passava na verdade de uma puta sem vergonha. Um poço de fingimento e maldade. Tive ganas de ir até o Banco encher-lhe a cara de bofetadas, ali mesmo, no meio da clientela, com escândalo e tudo. Depois, menos alterado, raciocinei – a polícia poderia prender-me e eu entraria numa confusão absurda que a ordinária não merecia. Até mesmo porque Gabriel não fora por mim desejado nem eu nutria qualquer sentimento amoroso por Tecla. A partir dali, considerava acabada a simples amizade com ela, pois o que poderia nos unir de forma duradoura era Gabriel. Meu pai já não contava na história. A associação de Tecla com a imagem do velho já havia se esfarrapado no meu espírito por causa de minha conduta com ela. Conduta que era uma brasa a queimar-me a consciência.
No ataque de raiva, enfiei o papel no bolso e peguei o táxi. São Paulo me fazia falta. Rumei para o aeroporto, comprei a passagem e fui para a sala de espera. Acontece que lá ninguém consegue esperar direito sentado naquelas cadeiras de plástico duras e incômodas. Aí, puxei o laudo do bolso e pasmei. Não tinha lido o papel integralmente. Minha afobação foi grande demais na ocasião. Estava escrito, nas observações, a mais surpreendente de todas as notícias: Gabriel, não era meu filho, mas sim meu irmão! Meu impulso imediato foi de voltar ao laboratório e exigir explicações. Como meu irmão? Meu pai morrera há mais de dois anos e como podia ter um filho de dois meses de idade?
Cancelei a passagem, pulei num táxi, tinha pressa. O chofer acelerou o quanto pôde, porém encontramos o laboratório fechado. Liguei para pedir explicações e a atendente me respondeu: “O senhor desculpe, mas só segunda-feira poderemos atendê-lo.” A solução era ir à Tecla. Mas com que cara mostraria a ela esse exame maluco?
Depois de muita indecisão, bati na casa dela com vontade de brigar. Estendi-lhe o papel. Ela tranqüilamente me desarmou:
— É claro que é um erro de laboratório. Como meu filho pode ser seu irmão?
E não deu maior importância, o que me magoou bastante.
— Você fica nessa que é erro de laboratório, mas o que está escrito é que o filho não é meu!
— E de quem pode ser? De seus irmãos? Seria então seu sobrinho se não fosse seu irmão? Você não acha tudo isso uma loucura só? — Tecla emendou as suposições entre agastada e divertida.
Com a cabeça botando hipóteses e suspeitas pelo ladrão, não agüentei mais:
— E se meu pai tivesse deixado sêmen congelado para você?
— Nunca pensei que você fosse tão imbecil, débil mental. Sêmen congelado do Seu Jacques? Seu Jacques já não tinha sêmen, tão velho ele estava.
— Como você sabe?
— Porque velho não tem sêmen.
— Velho tem sêmen.
— Pois se velho tem sêmen, o que fez Gabriel não foi dele. Estou segura disso – ela afirmou, colérica, e acrescentou a ponto de virar a mesa:
— Então, seu pai morto teve um filho comigo de sêmen congelado? Ora essa! Acho melhor você dizer que foi sêmen de um morto. Seu pai, que nunca deitou comigo em vida, teve sempre o maior respeito por mim, tratava-me como uma filha, ia trepar comigo depois de morto? Nunca pensei que você fosse tão imbecil!
E concluiu, soltando desabafos:
— Pois bem, o filho não é seu. É da alma do seu pai. Cai fora!
Caí fora furioso e apressado, quase deixando o exame com ela. Dei meia-volta e peguei o papel. Segunda-feira eu voltaria ao laboratório. No regresso a São Paulo, pensei no caso de Gabriel. Se o laudo estivesse certo, ele ia ser também herdeiro de meu pai, ia ter um pedaço do Quadro, ia ter direito a imóveis e títulos do Tesouro. Não bastasse o filho de Gertrudes, aparecia agora o da Tecla. A caixa do banco aplicou o golpe do sêmen. Enrolou o velho, que derrapou na armadilha. Ora, com a experiência profissional, levou papai na conversa, fez o pobre depositar semente num banco de sêmen para, depois de sua morte, ser utilizado por ela.
Por mais estranha ou abstrusa que pudesse parecer, a história foi criando raízes em minha mente. Tinha certeza de que se tratava de uma armadilha e me debati na maior indignação toda a noite. Num instante de serenidade, voltei a admitir a hipótese de Gabriel ser meu irmão. A hipótese era, no fundo, conflituosa, me turvava o espírito, pois, por vezes, encarava Gabriel como um impostor que nascera somente para pegar nossa herança. Assisti ao nascer do dia, emaranhado nas tantas conjecturas inspiradas por tudo o que havia acontecido nas ultimas horas. O que mais me aborrecia era a tranqüilidade de Tecla. Como ela podia permanecer serena depois da descoberta de toda trama que ela armara? A situação se agravava pelo fato de que fui procurá-la. Nosso relacionamento pegou fogo e nos levou à alcova. Ela então me afirmava que o velho a considerava como filha. Por isso, me acusava de manter relações incestuosas com ela, já que éramos irmãos! Uma impostura inominável. Eu, incestuoso!
O inventário rolava e Monsieur Pizolla há mais de dois meses deveria ter oferecido seu laudo depois das pesquisas e análises realizadas nos raios X e outras técnicas. Com esse atraso e outros contratempos, a miragem dos milhões de dólares desbotou-se um pouco na família. Já não nos afligia tanto.
Tínhamos que reagir em defesa de nossos interesses, precisávamos apertar Pizolla pelas conclusões de sua perícia. Somente com estas poderíamos planejar nossa viagem à Europa. Para acelerar o processo, lancei-me em novas pesquisas sobre Clouet, citado por Pizolla como um dos maiores expoentes da pintura daquela época e autor de uma obra que lembrava o Quadro, com traços mais ou menos semelhantes. Não garimpei grande coisa. Descobri que o Museu de Arte de São Paulo possuía um Clouet, O Banho de Diana, com mulheres nuas, de lindos seios, mas o estudo da obra nada acrescentou de objetivo.
De acordo com o combinado anteriormente, uma comissão exploratória percorreria os principais mercados europeus de arte, colhendo dados, informações que pudessem nos habilitar na busca da melhor opção de negócio. Selene aventou a hipótese de levarmos a tela enrolada dentro de um grande canudo de papelão. Como seria a passagem pela Alfândega? Os quebra-cabeças se amontoaram. Medimos a pintura: 1,50 m por 1,95 m. Concluímos que, visto seu tamanho, o mais prudente seria levá-la na mão. Aí percebemos que se ela fosse dobrada poderia se danificar. Despachada como bagagem, correria risco ainda maior de ser desfigurada, fraturada no porão da aeronave, se não fosse extraviada, perdida, como acontece cada vez mais com a intensificação do tráfego internacional. E, mais do que tudo, era inconcebível o transporte do Quadro no porão, longe de nossa implacável e esbugalhada vigilância. Enfim, a fortuna deixada por meu pai em dinheiro, imóveis e títulos era praticamente negligenciada diante da extrema importância que conferíamos ao patrimônio representado pelo Quadro. Vivíamos com as atenções galvanizadas nas evoluções dos mercados de arte. Nossa euforia atingia o apogeu quando líamos comentários, análises de especialistas qualificando de obras-primas pinturas no estilo da nossa. Ou seja, telas retratando mulheres no cerimonial do banho, naquela décor intimista de luxo, de cores bem trabalhadas, de cortinados diáfanos, realçando a beleza cintilante dos corpos, dos rostos, dos seios, expostos com o refinamento estético de seus geniais criadores. Quem visse nosso Quadro, reproduzindo esse cenário soberbo, não hesitava em incluí-lo na categoria das obras-primas. Pelos estudos comparativos, a autenticidade de nosso tesouro estava acima de qualquer suspeita. Para mim, porém, seu valor era impossível de calcular, pois ele não se media pelo dinheiro. A Duquesa de Villars naquela banheira de Vênus não tinha preço! Os historiadores registram que antigamente os franceses não cultivavam o hábito do banho. Gabrielle, a irmã da Duquesa, chamou Henrique IV de sujo. Depois, para ajudar a própria família, D’Estrées entregou-se a ele. Porém pouco me importava a atitude de Gabrielle, pois minha demente paixão era a Duquesa.
No Rio, fui ao laboratório, segunda-feira, após passar um fim de semana atribulado, sem o menor espaço para o bom humor ou um relax. Não estava portanto para prosa ao abordar o balcão de informações:
— Quero falar com o diretor.
— De que se trata?
— É uma conversa muito particular sobre o resultado de um exame.
— Nós temos uma seção encarregada de tratar desse assunto, de atender as pessoas que buscam explicações sobre o resultado dos exames. O senhor não precisa falar com o diretor. Vou encaminhá-lo ao dr. Roberto, que é o chefe dessa área.
— Não – alteei a voz, mal-humorado. Eu quero falar é com o diretor mesmo. É um caso grave e não vou a intermediário. Não me encaminhe ao dr. Roberto.
— O diretor não está na casa e não sou eu quem marca audiências com ele. É com outra seção. A minha obrigação é encaminhá-lo ao dr. Roberto.
Sentei-me no banco de espera, tive um momento de reflexão e ponderação. Menos amuado voltei ao balcão:
— Aceito falar com o dr. Roberto.
— Por favor — a enfermeira balançou a cabeça e pediu que eu aguardasse. Ela ia providenciar meu encontro com o médico.
Esperei uns vinte minutos, inquieto e resmungão. Até que chegou a minha vez e uma voz me chamou pelo alto-falante:
— Senhor Léo, por favor, dirija-se ao balcão de atendimento.
Fui recebido por outra enfermeira, atarracada e gorducha, sem a menor familiaridade com a simpatia:
— O senhor me acompanhe.
Fui com ela a outra sala no segundo andar, onde dr. Roberto já me aguardava com o dossiê do exame nas mãos.
— Estou à sua disposição.
— Quero uma explicação sobre o resultado deste exame de DNA, que me parece totalmente absurdo. Como é que se diz que eu não sou pai da criança e que o pai é meu pai, e sou, neste caso, irmão dela? Negócio de doido!
Ele, conciliante:
— Nestes casos, já que o senhor contesta o resultado do exame, vamos refazê-lo. O material está guardado e, portanto, não tem problema. Mas quero dizer-lhe que estas coisas acontecem.
E esboçou marotamente um sorriso. Segurei a vontade de dar-lhe um safanão.
— Como assim? perguntei-lhe.
— É que muitas vezes… Bem, O senhor tem alguma indicação de alguém ligado à mãe da criança, por exemplo, algum irmão?
Reagi, furibundo:
— Não me faça uma pergunta dessas. Como a ciência vai dizer que o filho não é meu? Que pode ser do meu irmão que tem as mesmas características genéticas que eu? Ou pior ainda, filho de meu pai que já está morto? Não tenho irmão nenhum que possa ser pai desse menino. Seu laboratório deve ser um laboratório de merda e os senhores vão ter que me indenizar por essa fraude que fizeram e pelas misérias que estou sofrendo. Se não é meu filho, como pode ser de meu irmão? O senhor é médico ou o que é?
O dr. Roberto já devia ter experiência com doidos ou pelo menos com sujeitos como eu. Ficou branco, seu rosto contraiu-se na recomendação altiva:
— Por favor, tenha calma. Eu sou um profissional, empregado desta empresa e não sou pago para ouvir desaforos. Volte amanhã. Vamos tratar desse assunto com o maior cuidado e lhe daremos o resultado preciso e confirmado.
Quase explodi ao ouvir a palavra “confirmado”. Controlei-me, pensando em Bolanhos, no aeroporto.
Não procurei a Tecla. Restava-me domar a impaciência para aguardar pacificamente o resultado. É como se eu estivesse para receber uma sentença de morte, a notícia de uma doença grave, a confirmação de um câncer. Preferia que fosse um câncer em vez da situação pela qual estava passando, ao sabor de todas as hipóteses, cada uma pior do que a outra. Eu era amante da amante do pai, querendo ser pai de um irmão meu. Ou, pela suposição cabreira do dr. Roberto, eu tinha sido chifrado por um de meus irmãos. Numa outra projeção aberrante, eu não era filho do meu pai e, sim, um sujeito que se tornou amante da amante do pai e transformou-se em irmão de Gabriel, etc. Evidentemente não me achava em meu juízo normal. Sofria alucinações, enxergava assombrações nas simples e curiosas travessuras do vento levantando saias e folhas secas na rua.
Seria bem o caso de eu dividir com Tecla meu estado de espírito, colocá-la a par dos meus desvarios. Abandonei, porém, a idéia de infernizá-la a vida.
No hotel, à noite liguei a televisão para tentar me evadir, fugir, viajar num desses programas imbecis das TVs a cabo. Parei num canal de luta de boxe, justamente no momento em que um dos contendores tomava um murro em cheio no rosto e caía. Passei adiante. Meu estado mental não se adequava às lutas de boxe. Enxerguei dr. Roberto no cara caído, comigo lá no tablado, sapecando-lhe o soco de misericórdia. No canal seguinte, de pornografia, que monotonia! As cenas de um caricato erotismo se repetiam mecanicamente. Em vez de me excitarem, elas me sugeriam, de preferência, a imagem de uma fábrica de macarrão, com as máquinas expelindo os mesmos pacotes de tripinhas enroscadas. Depois, as imagens levaram-me ao McDonald’s, as crianças comendo batatas fritas e os adultos chupando picolés. Pensei em outras funções que se repetem quase da mesma maneira, como a cobrança de pênalti e os gestos numa linha de montagem de automóvel. Ao mudar para outro canal, o telefone tocou. “É Tecla”, pensei. Do outro lado, uma voz feminina:
— Eu sou telefonista do hotel. Vi o senhor entrar e está solteiro. Tenho uma amiga que podia fazer-lhe companhia.
Atolado nos meus problemas e ainda vinha aquela voz, alta hora da noite, oferecer-me mulher:
— Vá tomar banho. Sou brocha.
O telefone tocou novamente. A voz do outro lado tentou se fazer ainda mais sedutora:
— Olha, nós também temos rapazes bonitos que atendem nossos hóspedes.
Não tive outra reação senão de gritar, o que todo o andar deve ter ouvido no hotel:
— Pois mande ele meter naquele lugar do seu pai. Ouviu?
A que ponto eu me expusera. Ela desligou imediatamente, mas eu não me desliguei do problema que me manteve insone. Da janela, assisti ao espetáculo do amanhecer carioca. Naquele dia, o imbróglio de minha discutível paternidade deveria ser resolvido.
As idéias se aclararam um pouco mais em mim. Não deveria me azucrinar com os imprevistos da vida; precisava, isto sim, me ater ao essencial: de imediato, o inventário. Tínhamos que arrancar de Monsieur Pizolla a data para a apresentação do laudo sobre o Quadro.
Retornei ao espetáculo que se descortinava na janela – a beleza arrebatadora da manhã nascente, ornamentada pelos relevos luminosos das enseadas e reentrâncias da baía, pelas montanhas verdejantes com seus castiçais de flores. Os barracos dos morros se assemelhavam a pinceladas de marrom, algo sugerindo nódoas, as nódoas dolorosas da pobreza no cenário suntuoso, de cores fortes e exuberantes nos seus infinitos matizes. Os carros ainda passavam aos poucos. Os madrugadores andavam com os braços cruzados para defender-se do frio virtual. Pessoas faziam cooper pelas calçadas. As gordas e os gordos andavam na ilusão de perder o excesso de barriga e de nádegas. O Rio era uma cidade fascinante, onde eu passara infância e juventude, mas também associada à frustrante aventura da minha paixão impossível. Já estava acostumado em São Paulo, outro ritmo de vida, em que a solidão pessoal tem sua parte à qual cada um se resigna. Já no Rio até a solidão é coletiva.
Somente nessa nova ida ao laboratório é que reparei na placa — “Centro de Pesquisas sobre Fertilidade / Exames de Laboratório e DNA”. Expliquei à recepcionista que tinha vindo apanhar o resultado de um exame a cargo do dr. Roberto. Ela mandou-me esperar sentado no mesmo banco de cadeiras azuis reservado aos consulentes. Nesse dia a chamada demorou mais. Cerca de uma hora. Conscientizei-me então do sofrimento das pessoas que aguardam atendimento nas filas no INSS e em outros hospitais. Cada um procurando a cura para seus males, porém, paradoxalmente, encurtando nas intermináveis esperas a cota preciosa de suas esperanças de vida. Observei o ambiente. Ao meu lado uma senhora gorda, com uma ferida no pé. Disse-me que era diabética. Aguardava a decisão para ser operada de veia safena a ser implantada para salvar a perna. A ferida estava coberta por gaze. A aparência não era desagradável, mas tive a sensação de me encontrar diante de um grande sofrimento. Mais na frente, um velho com doença de Parkinson. Eu estava meio depressivo. Desviava o olhar de todos. Num canto divisei a decoração da sala — umas flores de plástico. Eram horríveis, desprovidas do menor sinal de vida. Meu longo tempo de espera rompeu-se com o chamado:
— Senhor Léo, comparecer à consulta.
Estranhei. Eu não estava pedindo nenhuma consulta. Eu estava querendo saber o resultado de um exame louco de DNA. Mas fui.
— É o Senhor Léo? — perguntou-me a atendente.
Identifiquei-me. No segundo andar, noutra sala que não a da primeira consulta, o médico que me recebeu não era o doutor Roberto. Ele tratou-me com afabilidade.
— Senhor Léo, pedimo-lhe desculpas. Aqui estão os gráficos e etapas do exame com os resultados do computador. Não sabemos o que ocorreu. Mas…
Minha cabeça rodou, fiquei totalmente fora do mundo, suspenso na reticência do médico. Procurei me recompor. Aí, ele retomou: “Houve um erro. O exame está fora dos nossos padrões. Pedimos uma investigação sobre o assunto. Será uma longa pesquisa em nosso laboratório.” Fez nova pausa, entregou-me o novo resultado e declarou: — O filho é seu. Essa história de irmão foi uma criação do computador. Cientificamente não temos como afirmar estas coisas. Este caso ficará nos anais do nosso laboratório e vamos iniciar uma investigação profunda sobre o que aconteceu, inclusive sobre as pessoas dessa área de nossa empresa.
Inundado por uma onda de felicidade, perdoei a humanidade por todas as misérias, despojei-me de meu lado irascível e entreguei-me por completo à bem-aventurança da paternidade. De ser o pai de Gabriel. Não foi menor o júbilo do amor próprio por não ter sido enganado por Tecla. Deliciei-me no reconforto de saber que o sêmen de meu pai estava morto e que meu irmão não era amante de Tecla.
Meu próximo passo seria procurar Tecla com um pedido solene de desculpa, mostrar-lhe o novo exame e festejar efusivamente o Gabriel, como nosso filho, compartilhar com ela meu orgulho de ser pai. Fui ao Banco. Tecla estava na Tesouraria. Ao ver-me, fechou a cara e disparou:
— Vá embora. Gabriel não é seu filho. É filho do sêmen morto do seu pai. O que vão dizer de mim agora?
— Espera aí. O laboratório entregou-me o novo laudo, segundo o qual o primeiro exame estava errado. Gabriel é meu filho. Você, portanto, é uma mulher correta.
— O laboratório disse que eu era mulher direita?
— Não, isso digo eu.
— Pois vá embora daqui, Gabriel não é seu filho.
— Como não é meu filho?
— Você mesmo já tinha duvidado. Tenho que trabalhar. Vá embora.
— Posso ir a sua casa?
— Jamais.
Era impossível acreditar. A Tecla cordata, conciliadora, transformara-se em uma pessoa radical.
— Não podemos resolver isso assim. Eu sou o pai de Gabriel. Você tem de considerar isso e temos responsabilidades comuns.
— O próximo — gritou Tecla, ao pessoal da fila.
— Tecla, e como fica isso? E Gabriel?
Ela não respondeu. Fiquei sem saber o que fazer, porém mais aliviado porque aquele drama todo que a minha mente imaginara não era verdade. Resolvi ficar no Banco até que terminasse o expediente da manhã. Ela certamente mudaria de atitude e conversaria comigo.
Sentei-me em frente ao seu balcão. Minha mente voltou ao inventário. Na retina, surgiu a Duquesa me afagando como nos velhos tempos em que nos incendiávamos naquele amor tresloucado. Agora, ela era minha e de Gabriel. Ele não iria conquistá-la, possuí-la com o ardor com que eu a possuíra na juventude. Seria apenas, como meu filho, um dos proprietários do Quadro. Decidi não permitir a venda do Quadro. Para tanto, brigaria feio com meus irmãos. Suas cobiças por dinheiro teriam que parar no meu amor pela Duquesa. O Quadro não sairia da nossa casa até a minha morte.
Às doze, Tecla fechou o Caixa para sair. Naturalmente gostou de eu ter passado a manhã ali, à sua espera.
— O que você ainda quer saber? — ela me interpelou.
— Quero restabelecer minhas relações com você. Antes, a minha loucura era para não ser pai de Gabriel. Agora, com o novo laudo, tudo se esclareceu. É ele mesmo nosso filho. Peço-lhe perdão.
— Você é um louco ou um ser sem entranhas, querendo acreditar que o menino fosse filho do sêmen congelado de seu pai. Só sua mente doentia poderia inventar uma coisa dessas.
— Não falemos mais nisso.
— Como não falar?
— Acabou minha loucura. Você quer casar comigo?
Tecla me esquadrinhou de cima abaixo na maior perplexidade. Pelo visto, nunca lhe passara pela cabeça que esse romance de circunstância pudesse ter um desfecho com véu, grinalda e pó de arroz.
— É cedo para tratarmos desse assunto.
Sua voz era outra. Uma embriagadora alegria me invadiu o coração. Mirei-a nos olhos. Como ela fora firme e resoluta em todo o episódio, na retidão de sua conduta.
— Tecla, quero conversar longamente com você. À noite vou a sua casa. Vamos acertar nossas vidas.
— Se você quer acertar, façamos logo isso, vamos almoçar.
Era tudo o que eu queria. Acertamos como deveríamos realizar as coisas, a começar pela sua relação com o Banco e o nosso casamento. Tecla se mudaria para São Paulo, onde continuaria trabalhando. Aceitei todas as cláusulas. Meu estado era de absoluta submissão, desejava me redimir pelo papelão que aprontara.
Deixei o Rio de Janeiro com a data do casamento marcada.
Os meses passaram depressa. Combinei com Tecla que nosso casamento seria na Vara de Família e não teria convidados.
Ninguém da família ficou sabendo que eu me casara com Tecla. Fora uma decisão complicada para mim, porque tomada sob o impacto emocional provocado pelo caso do DNA. Sem isso jamais teria casado. Nasci para ser solteirão, era minha forma de viver, e agora mudaria de vida, ainda mais com um menino em casa, babá, mamadeiras, carrinhos de bebê etc. É assim. Fecha-se uma porta, abre-se outra, a gente imagina que está livre, mas que nada. Uma outra prisão nos aguarda.
Depois de muitos incidentes com Selene, o inventário avançou. O mais importante foi a partilha parcial aprovada por todos. Repartimos logo o dinheiro e os títulos do Tesouro Nacional. O juiz ordenou que fosse depositada em conta bloqueada a parte pertencente ao sexto filho, o de Gertrudes, cuja ação de paternidade estava em curso. Nosso advogado, doutor Antunes, manobrava com artimanhas processuais para, no mínimo, procrastinar o julgamento. Com o tempo se arrastando nos procedimentos dilatórios, o sexto irmão perderia as esperanças. E, como não poderia pagar advogado, nós lhe proporíamos acordo, pagando-lhe uma bagatela, o que aconteceu. Achei o expediente indigno, porém fui voto vencido. A herança transformou nossa família. As cabeças de meus irmãos converteram-se em cofres de dinheiro. Nenhum recuaria diante de qualquer meio ilícito e imoral para enganar o outro. Nessa ganância desmedida, as relações familiares se aviltaram. Selene, a mais esperta, só falava da dificuldade de dividir os apartamentos. Ela manifestava preferência por uns, os melhores, que eram obviamente cobiçados também pelos demais irmãos. Eu, de minha parte, não me animava a ser proprietário de imóveis no Rio. Meu negócio era São Paulo, onde morava e desejava permanecer. Minha única ligação mais profunda com o Rio se limitava ao Quadro. Ele para mim era o Rio.
Acertamos uma distribuição preliminar.
A repartição do dinheiro e dos bens móveis ocorreu, afinal, sem atritos. Trocando em miúdos a mim tocou, em títulos e dinheiro, mais de três milhões de reais. Era um bom pé-de-meia, mas não garantia uma promoção significativa na escala social. Eu era classe média e não podia almejar, com o que me tocava, um apartamento de cobertura com piscina, sauna. Essas coisas que ninguém usa, mas deseja ter. Pretendia comprar um carro novo, modelo mais sofisticado, um importado médio, mudar de apartamento, ir para um bairro melhor. Aí já consumiria metade do dinheiro. A outra metade aplicaria em títulos que me assegurariam uma renda extra.
Meus planos eram modestos. A herança não mexeu com a minha cabeça. Expus meus planos a Tecla, que os aprovou, sem abrir mão da exigência de ela e eu continuarmos trabalhando. Não saberia viver sem trabalhar. Ela iria batalhar pela transferência para São Paulo. Declarava-se esperançosa de obtê-la, era uma boa funcionária e lhe assistia o direito de acompanhar o marido. Ademais, queria sair da agência de qualquer maneira, porque o gerente estava dando em cima dela. “Nunca lhe dei bola, mas ele insiste, apesar da ameaça que fiz de processá-lo por assédio”, Tecla desabafou, revoltada. E prosseguiu no seu testemunho:
— No banco e em outros estabelecimentos os homens mais obcecados com sexo andavam escabreados, intimidados com a ameaça de processos. Muitas funcionárias não hesitavam em recorrer à Justiça quando os superiores cobravam serviços acima da média como uma forma de negociar os favores de alcova. Não cheguei a entrar nessa. Meu chefe, um homem de seus cinqüenta anos, casado, pai de dois filhos, mostrou-se sempre afável. Até que um dia, no restaurante do Banco onde costumávamos almoçar na mesma mesa , ele veio com uma história atravessada: “Estou me separando da mulher.” Não perguntei o porquê, mas ponderei-lhe que brigas de casal eram comuns. O essencial era manter a união da família. Ele devia tentar tudo para evitar a separação. Foi aí que ele veio com a história de que “se eu me separar vou casar com você”. Respondi-lhe com veemência: “Comigo nunca! Nosso tipo de relacionamento, puramente administrativo, não deveria sair desse registro para entrar na intimidade de sentimentos. Doutor Danilo, vamos acabar com esta conversa e tratemos de cuidar dos nossos clientes e das metas da agência.”
Ante o relato intolerável de Tecla, me descontrolei, queria ao mesmo tempo pedir satisfação e quebrar a cara do canalha do Danilo. Mais uma vez, engoli a vontade de arrebentar, virar a mesa, porque Tecla não suportava escândalos, ou simples fofocas, o que não impedia que no banco todos sempre tivessem estranhado e comentado suas “relações especiais” com meu pai. Em todo caso, ela gozava do conceito de pessoa correta, idônea, sem nós pelas costas, maneirosa no trato. Ao receber a notícia do casamento de Tecla e seu pedido de transferência para São Paulo, o chefe alterou-se:
— Você vai casar? Como posso admitir isso? Como vou viver sem vê-la chefiando o Caixa e tomando decisões comigo?
Ela retirou-se muda e perplexa, do gabinete do chefe. No dia seguinte entregou-lhe a carta com o pedido formal de transferência. Pelo que Tecla me disse, ele ficou branco, as mãos trêmulas, os olhos injetados. Ela não devia ter-me contado estas coisas. E contou-me com naturalidade, já naquele nível de confiança e sinceridade que deveria, eu esperava, marcar para sempre nosso relacionamento. Não esmaguei de todo, contudo, o desejo de um dia aplicar no chefe indecente um corretivo igual ao que ministrei em Bolanhos. Chegar junto dele, cuja cara nunca tinha visto — e dizer-lhe:
— Danilo, eu sou o marido de Tecla. E tome lá.
Todavia, optei por arquivar o ímpeto belicoso. Não conheci propriamente uma fase, um impulso amoroso por Tecla. Na realidade, a idéia de amor nunca me tocou muito, jamais me arrebatou. Ignorava o que era isso ao certo. Minhas relações com as mulheres foram sempre de circunstância, havia amizade ou sexo, às vezes sexo bom, outras sem gosto. Com Tecla o relacionamento se escorava na existência do filho e na estabilidade de nossos humores e afinidades. Ela nunca me cobrou nada do gênero — “Onde estava?”, “O que fez?” “De onde veio?” “Para onde vai?” Isso fortaleceu minha tranqüilidade para ser marido, aumentou o prazer de estar em casa junto com ela o mais cedo que pudesse, de enriquecer nossa comunhão de sentimentos. Foi ela quem modelou esse relacionamento. Agora, o que chamam de amor, torrente de paixão, mistura de gostar e de desejo sexual irreprimível, isso, paciência, eu nunca vivenciei.
Experimentei certa sensação do que era amor aos quatorze anos com a Duquesa. Mas era uma paixão entre a realidade e a loucura que se exprimia pela sofreguidão de possuí-la, de contemplá-la na sua pose imutável, de usufruir de seus encantos no prazer oculto e nos sonhos de quem se realiza nas transcendências dos sentimentos. Se era e é amor, desse amor se perde a razão e penetra no inferno da demência.
Mas o dia que realmente provocou grande rebuliço na família foi o da abertura do cofre. Selene, como sempre à frente de tudo, telefonou a todos os herdeiros para combinar a data do evento. Pedi que fosse num sábado para não atrapalhar minhas atividades. Ela concordou. Desembarquei no Rio num dia de sol, a cidade sem nevoeiros, o que aproximava o Cristo Redentor ainda mais de nós. Víamos a imagem de perto, sem sombras, seus braços ganhando os céus.
Cheguei em casa com a alma leve, apaziguada com meus problemas. Porém, ao colocar o pé no batente da porta, bateu-me um mau pressentimento, com aquele susto mostrando a Duquesa com um jeito duvidoso, sugerindo amargura. Sob o impacto da visão, dirigi-me à sala de estar onde já se encontravam os irmãos e Antônia.
Às onze horas, Joseph declarou — “Vamos abrir o cofre.” Vitório, que era depositário do segredo, sacou do bolso um envelope amarelo contendo a fatura da compra do cofre com o segredo. Era um cofre desses antigos, largo, pintado de preto e com as decorações já desbotadas nos quatro cantos. Subimos ao quarto onde ele se impunha no décor ao lado das estantes e outros móveis. Media um metro e vinte de altura. Não tínhamos nenhuma idéia do que havia dentro dele.
Felizmente, ninguém exigiu a prévia e meticulosa verificação dos esparadrapos cruzados no disco dos números do segredo para saber se a proteção estava intacta. Estava, como todos se certificaram num simples golpe de vista. Vitório arrancou a vedação.
Apareceu o disco. Antônia forneceu as instruções e os números para a abertura.
“Dê duas voltas à direita e pare no número 72. Volte à esquerda e pare no número 18. Três voltas à direita parando no número 81. Volte à esquerda e pare no número 2. Torça a maçaneta usando a chave e o cofre estará aberto.”
Vitório executou as manobras. As quatro barras roliças de aço saíram dos buracos onde se encontravam fixadas pelo lado esquerdo. Nós nos abaixamos um pouco para ver as jóias, dinheiro, canetas de ouro, relógios e demais valores estocados ali dentro.
Um silêncio mortal estrangulou nossas babilônicas expectativas: o cofre estava vazio. Vazio. Todos os olhares convergiram para Antônia. Ela entendeu o que aqueles olhos queriam significar.
A abertura do cofre mostrou como era o velho Jacques. Sem nenhuma dúvida, pensei, ele não colocou no cofre os valores que ali deveriam estar, segundo as disposições do testamento, para assustar-nos. Divertiu-se certamente imaginando nossas caras de espanto e na decepção de Selene em particular, diante do cofre vazio.
— Alguém entrou na casa ou teve acesso ao cofre? — perguntou Vitório.
Chorando, Antônia contestou:
— Não.
— Será que nos dias seguintes à morte do meu pai, antes que selássemos o cofre, alguém não retirou os bens que estavam nele? — Rosa apalpou o terreno.
— Não é possível — arrisquei.
Selene procurou clarificar a situação com um testemunho sobre os costumes da família com seus pertences valiosos:
— Minha mãe tinha muitas jóias e meu pai não quis distribuí-las depois que ela morreu, alegando que desejava ficar com elas guardadas pois estavam todas relacionadas com momentos marcantes de sua vida conjugal. Tratava-se de jóias que mamãe usara nos aniversários da família, nas festas de Natal e Ano Novo, no casamento de cada filho. A memória enternecedora desses eventos tornaram o velho refratário à idéia de vender ou partilhar o que ele chama de “meu sagrado relicário”.
Todos nós sabíamos que ele gostava de guardar dinheiro e dólares. Para onde teriam ido?
No auge das perplexidades, Rosa resolveu revistar mais acuradamente o cofre à procura de indícios suscetíveis de deslindar o mistério. Aí, abrindo a gavetinha existente na parte de baixo, descobriu um envelope empoeirado. Dentro dele, num pedaço de papel constava uma indicação escrita pelo próprio velho:
—Espasa-Calpe, callejón sin salida.
Ficamos aturdidos. A expressão callejón sin salida significa beco sem saída. O que ele queria dizer com isso? Já de cabeça fria, compreendemos que se tratava de uma mensagem cifrada.
Na biblioteca de papai havia a enciclopédia espanhola, em encadernação preta, com mais de cinqüenta volumes. Sem vacilar e num silêncio monacal fomos à caça da expressão callejón sin salida. Ela se encontrava no volume 10, página 1002. Abrimos nesta página e encontramos uma carta. Não era endereçada a ninguém. Selene abriu e leu o desconcertante achado:
“Com esta onda de violência que vive o Rio de Janeiro e tendo lido que há assaltos às casas de velhos, com arrombamentos de cofre, resolvi esvaziar este, para que ladrões nada roubassem. Assim, comprei um cofre menor que coloquei no guarda-roupa, ao lado esquerdo da minha cama, e lá coloquei a metade dos valores que estavam no cofre grande. O segredo é: duas voltas à esquerda, parando no número 67; duas voltas à direita, completas, parando no mesmo número; e uma volta à esquerda parando no número 81. O cofre estará aberto. As jóias de Georgina Maria estão no cofre AZ-16, da agência da Sul América, com a autorização de abri-lo, desde que presentes meus cinco filhos. A minha chave, que vocês devem levar à Sul América, está no tinteiro antigo, com tampa, em cima da minha mesa de trabalho.”
Meu pai queria matar-nos de suspense em suspense. Seu medo de ser roubado talvez não parasse no novo cofre escondido no quarto.
Ninguém falava na roda. Antônia tinha se retirado. Estávamos somente nós cinco com Vitório. Fomos ao novo cofre. Selene executou as manobras do segredo. Desta vez o cofre estava cheio. Havia cento e trinta mil dólares, doze mil francos franceses, oito mil suíços e duzentos mil reais. Num maço amarrado, as cartas de minha mãe, desde o tempo de noivado. Rosa quis lê-las na diagonal, mas não concordamos.
Existiam cartelas de ações da Petrobrás e do Banco do Brasil. Vários contratos e escrituras, retratos antigos de minha mãe com dedicatória. Uma carta dizia:
“Peço aos filhos que permaneçam unidos e entreguem a Antônia, US$ 50.000 e R$ 50.000,00.”
Vitório não conseguiu reprimir o sorriso de escárnio ante estas últimas disposições. Pusemos tudo em cima da cama e devolvemos ao cofre a doação feita a Antônia, com o cuidado de recolocar o segredo no cofre. De nossas partes dali retiradas, Joseph ficou encarregado de estabelecer a relação pormenorizada.
Localizada a chave no tinteiro, conforme as indicações do velho, acertamos para segunda-feira nossa ida à Sul América.
Lá, meu pai possuía o cofre há muitos anos. Fomos recebidos pelo gerente, que já conhecia Vitório, cliente da casa. Assinamos um documento e descemos ao subsolo acompanhados do gerente. Passamos por uma porta de grade, típica de banco, chamada porta forte, que nosso acompanhante abriu com uma chave grande e niquelada. Num corredor de cofres, alinhados conforme os números, topamos com o nosso. Vibramos em silêncio, nossos olhos brilharam na verificação de que o nosso se localizava na ala dos maiores. Então Selene, com nossa chave, e o gerente, com a do estabelecimento, numa operação conjugada, o abriram.
Estávamos tensos e curiosos. Bem na frente, diversos envelopes — cinco grandes e um menor, com uma carta em anexo. Não havia nada fora dos envelopes. Retiramos todos eles e os depositamos na valise trazida por Rosa. Lemos a carta na hora:
“Meus filhos. Para que não houvesse nenhuma desavença na distribuição das jóias de sua mãe, de meus relógios e botões de punho, alfinetes de gravatas e velhas apólices e ações da Light, eu mesmo me encarreguei de fazer a partilha, procurando equilibrar os valores de modo que cada um ficasse com a parte que merece. A Antônia deixei o anel de brilhante e a tiara que foi da minha avó. Peço-lhes, com a vontade de quem já deve estar no nada da eternidade, que nenhum mostre ao outro o respectivo quinhão.”
Ficamos mais uma vez embasbacados pelo suspense, pela peça que o velho Jacques nos pregava. Saímos todos para a garagem, colocamos as sacolas no porta-bagagem e nos dirigimos para a casa do Jardim Botânico. Conferi a hora, meio-dia. Minha curiosidade havia perdido a agudeza, sentia-me um pouco abúlico.
Chamamos Antônia, em primeiro lugar, e entregamos o seu envelope.
— Foi deixado por meu pai — disse Selene. — Você deve guardá-lo logo no cofre. São o anel de minha mãe e a tiara de minha avó. Não sei das outras coisas.
Antônia não demonstrou maior interesse. Nem abriu o envelope. Retirou-se. Fez-se a distribuição dos outros envelopes e ninguém contrariou a vontade de papai. Cada um guardou o seu sem abri-lo. Selene quebrou o silêncio mais uma vez:
— Eu queria tanto ter o anel de minha mãe… Mas está muito bem com a Antônia, a preferida de papai — sua voz traía um misto de mágoa e censura.
Preparava-me para ir ao aeroporto tomar o avião de volta a São Paulo quando fui interrompido por Joseph e Luís. Ambos me advertiram:
— Mas você vai tomar táxi e viajar sem nenhum cuidado com esses valores?
Eu já tinha colocado meu envelope, bem alentado, dentro da maleta de mão. Dei de ombro, paciência:
— Ninguém vai saber o que tem dentro da maleta, nem eu sei o que tem no envelope e só vou abri-lo em casa, em São Paulo.
— Mas é um perigo imenso, você pode ser assaltado — Selene disparou o alarma.
— Não vai acontecer nada. Despedi-me de todos, inclusive de Antônia, que já tinha voltado ao recinto e me tratou carinhosamente.
— Um beijo grande e um abraço na Tecla, tio Léo — ela foi calorosa na despedida. Os demais me dispensaram discreta cordialidade. A alusão de Antônia à minha mulher soou como algo proibido, quase obsceno.
Apressei a saída com o sentimento de que ainda se prolongaria por muito tempo a corrida de obstáculos arquitetada por meu pai.
No aeroporto, fiz o check-in e parti para o embarque. Segurava firmemente minha mala. Ao me aproximar do raio-x de vistoria, verifiquei que tinha de me separar da bagagem. Em pânico, depositei a mala na esteira, passei pelo detector de metais e fiquei aguardando-a do outro lado. Meu coração disparou. Aqueles segundos de espera me pareceram a eternidade. Só aí é que me dei conta de que as jóias podiam ser detectadas e apreendidas pela polícia. A moça que examinava bagagem parou na hora da passagem da mala com o ar de quem pretendia examiná-la, mas deixou-a correr, afinal. Na chegada, procurei a maleta dos meus cuidados e ela estava parada na saída da esteira. Dirigi-me ao funcionário, dei-lhe as indicações, ele foi lá e voltou:
— O chefe quer falar com o Senhor.
Enquanto ele me assombrava com essa do chefe querendo me ver, notei a moça do raio-x fazendo-lhe um sinal. Aceso, vasculhei o ambiente com o olhar e descobri a mala solitária já em cima de uma banqueta de vistoria. Tomado de apreensão, aproximei-me da banqueta.
O chefe surgiu na área, foi à operadora, voltou e me perguntou com a voz macia:
— O que o senhor leva na mala?
— Objetos pessoais.
— O que Senhor faz? Profissão? — o chefe formalizou-se na postura do investigador. Lembrei-me do episódio de São Paulo e me apavorei ainda mais.
— Sou engenheiro e trabalho em São Paulo numa firma de consultoria. — Dei-lhe meu cartão. Ele olhou. Vacilou um pouco e meio displicente disse-me:
— Está liberado. Pode passar.
Agradeci e saí devagar com receio de o chefe, novamente atacado pela desconfiança, me chamar de volta. Só então atinei para o risco que havia corrido. Bem que a Policia poderia ter descoberto o conteúdo do envelope. Imperdoável minha imprudência. O episódio me induziu a atitudes extremas. Dei para ter medo de todos e de tudo. Ali na hora, fiquei assombrado com as pessoas que aguardavam ordeiramente a vez na fila de táxi no aeroporto de Congonhas.
Tudo correu bem no fim das contas. Só conferi meu quinhão ao chegar em casa. Eram pulseiras, cordões, abotoaduras, um relógio Patek Philippe, de algibeira, com correntão, caixinhas de ouro, porta-jóias, uns anéis e ações da Light. Tecla ficou encantada. Meu único comentário :
— O relógio é para Gabriel.
A apresentação do laudo do professor Pizolla foi marcada para uma quinta-feira. Eles escolheram um feriado, o dia 15 de novembro, porque a reunião deveria ser longa. Os dias da espera, a partir de 1o de novembro, tornaram-se terríveis para mim. Não consegui apagar do imaginário minha relação com o Quadro. Pelo contrário, sucederam-se na memória minhas visitas à Duquesa, com sua pele esplendorosa.
A reunião com Monsieur Pizolla ocorreu na sala da Biblioteca. Todos os herdeiros compareceram na hora fixada, 8 da manhã. Mestre Pizolla atrasou meia hora, o que não passou desapercebido para ninguém. Cada um de nós consultava os ponteiros e ironizava de leve a impontualidade do ilustre especialista que vinha da pátria dos relógios. Finalmente ele chegou carregado de rolos e tubos, desses destinados à guarda e transporte de mapas, plantas de obras, além de uma sacola de livros e uma maçaroca de papéis.
A tensão era tal que houve certa indecisão sobre o lugar onde o mestre deveria sentar-se. O formato da mesa para a reunião carecia de um reajuste. Selene já havia ocupado a cabeceira. Entretanto, concluímos — sem objeções de sua parte — que ela deveria ceder o lugar para o professor, não só pela distinção e respeito das hierarquias, como também pela maior visibilidade do lugar para quem iria efetuar a sonhada exposição. Pizolla se fez modestamente solene para o ato. Vestia terno azul, meio velho, as abas longas bem no estilo dos cortes ingleses, óculos de aros de metal, redondos, levemente caídos no nariz. No meio de tantas ansiedades, suas saudações foram mais do que promissoras:
— Quero desincumbir-me da missão que me foi entregue e agradeço a confiança de todos os senhores em relação à minha capacitação técnica. Já examinei mais de duzentos quadros em minha vida, em busca de autenticidade. Mas, confesso, nenhum me foi mais sedutor do que este.
Vitório, confortando os entusiasmos despertados:
— Quais foram as maiores dificuldades encontradas pelo Senhor nesse trabalho e por que ele foi o mais sedutor de todos?
Pizolla, prudente:
— Em primeiro lugar, o maior desafio, foi o fato de o Quadro não estar assinado. Achei por bem começar pela procura do seu autor. Alguma pista que me fizesse identificá-lo.
O mestre olhou para a assembléia, um gole de água, abriu volumoso livro de arte com muitas reproduções e prosseguiu:
— Quero dizer a todos que os exames de raios X não me ajudaram em nada e até complicaram minha tarefa. Eles deviam me revelar a datação, o que havia por baixo da pintura, se era sobreposta a outras e se o nome do autor estava escondido em algum lugar. Em certos momentos pareceu-me que sim, Encontrei uns traços negros, em forma de caligrafia no ângulo direito ao alto. Isso obrigou-me a longos estudos. Passei muitos dias e noites com as chapas expostas naquele fundo branco em que se lêem os raios X. Ali poderia estar a chave de minhas buscas. Ainda mais porque se eu achasse poderia ser um acontecimento artístico internacional. Depois abordarei esse aspecto.
Nesse momento, não sei por quê, uma vontade imensa de urinar me atacou. O banheiro mais próximo estava lá na sala de estar. Um banheiro amplo, feito a capricho, com lambris e tapetes, a pia e o vaso eram ingleses, decorados com flores azuis, Não podendo controlar mais a vontade, interrompi a exposição num de seus pontos mais excitantes. Foi chato confessar:
— Meus irmãos, Monsieur Pizolla, preciso ir ao banheiro. Mas como não gostaria de perder nenhuma palavra desta exposição, pediria ao professor Pizolla para suspendê-la por alguns instantes.
Olhares intrigados ou desconfiados me foram endereçados por todos. Levantei-me. No banheiro, levei um tempão para começar a urinar. Esforçava-me e nada saía. Abri a torneira, como se faz nos hospitais para os operados e, ridiculamente, comecei bem baixinho a chiar: “chiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii”. A coisa funcionou. Pintou uma gota, depois outra e seguiu-se o jato forte de uma urina bem amarela. Tudo fruto do meu nervosismo. A bexiga não estava cheia nem creio que a urina deveria ter aquela cor carregada. Minha demora, pensei, só poderia estar suscitando comentários na sala. Retornei à reunião sem lavar as mãos. Pizolla retomou a palavra:
— Bem, senhores, eu estava nos riscos caligráficos que me pareceram restos de uma assinatura. Excluí a hipótese. Pelo que ouvi de um dos herdeiros, o doutor Jacques adquiriu o Quadro como sendo um Velázquez, segundo a afirmação do vendedor. Infelizmente, nada mais absurdo. Velázquez era um pintor espanhol que viveu de 1599 a 1660. A pintura que me deram para examinar é francesa. Óleo sobre madeira, francesa. As figuras das mulheres são tipicamente francesas, assim como o ambiente, com o cortinado e motivos de decoração, tudo próprio da sociedade francesa da época. Até a figura da velha fazendo tricô é muito representativa dos costumes gauleses. E continuou:
— Quero dizer-lhes que cada quadro tem a sua história, e sua singularidade. Diz do autor, da temática, de sua técnica, de sua época, e de sua própria trajetória. Um quadro pode conter uma série de informações sobre os costumes, os trajes, os personagens retratados e o que representam. É aí que quero ressaltar a importância da obra que os senhores herdaram. Ela é fascinante sobre todos esses aspectos e, como sabem, retrata duas mulheres que tiveram importante lugar na história da França, principalmente Gabrielle d’Estrées, amante do Rei Henrique IV, mulher que teve muita influência na luta entre huguenotes e católicos, inclusive na conversão do monarca. — Fez uma pausa e continuou:
— Este quadro conta detalhes desse tempo, tem uma técnica deslumbrante e foi um tema germinativo de muitos outros quadros que foram copiados, modificados, influenciaram outras obras, e até hoje são motivo de estudo na história da arte. Ele tem uma grande família.
Cansei-me um pouco das explicações do professor. Ele queria mostrar conhecimento e prorrogar nossas expectativas, aguçando ainda mais nossa sofrida curiosidade. Mas havia bastante sinceridade e profissionalismo no que falava.
— As tintas, os motivos, o material usado no Quadro são pontos importantes para um veredicto. A história da tinta é muito interessante. Primeiro, vêm as tintas de escrever. Seus primeiros traços remontam a tempos muito antigos na China e no Egito. Tínhamos então o preto, de carvão, em bastões. Depois surgiram fuligem de forno e a sépia para dar um tom pardo.
Joseph pareceu interessado pela exposição e me animou com uma questão que poderia colocar grande interesse na exposição que fazia.
— Professor Pizolla — disse ele —, eu queria saber um pouco mais sobre as moças do Quadro.
— Bem — ele dissertou. — Como se deve prever, este Quadro foi pintado no período em que Gabrielle esperava o primeiro filho do Rei Henrique IV. Assim, depois de 1593. É impossível precisar a data. Mas foi nestes anos que o Rei estava muito apaixonado por ela. Filipe II, Rei da Espanha, tinha tropas em Paris e desejava proclamar sua filha, Isabel, rainha da França. — Eu já sabia disso tudo, Julienne me contara.
— Henrique IV era huguenote, portanto não católico. Tinha chegado ao trono apoiado por Henrique III, o último dos Valois, que morrera sem filhos. Henrique IV não controlava Paris, nem a maior parte da França, que era católica. Enfrentava a resistência do Papa, da Espanha, dos principais líderes ligados à Igreja Católica que pensavam na escolha de um novo Rei. Atribui-se ao Marquês de Ó e a Gabrielle, esta moça do Quadro, o conselho a Henrique IV de converter-se de novo ao catolicismo — o que ele já fizera uma vez, forçado, nas vésperas do dia de São Bartolomeu, durante o qual os protestantes foram massacrados em Paris. O Rei, porém, voltou atrás, renunciou à conversão quatro anos mais tarde. “É mais fácil ganhar a Coroa com uma hora de missa do que com vinte batalhas e vinte anos de perigos e trabalhos”, ponderou-lhe o Marquês de Ó numa carta. Foi inspirado neste texto que se forjou a célebre sentença: “Paris vale uma missa.”
Pizolla respirou, bebeu um gole d’água para, certamente, refrescar essa próxima etapa:
— Sully, que foi um grande ministro de Henrique IV, também em carta ao Rei, disse: “Não sou eu, um huguenote, que vai aconselhá-lo a ir à missa, mas é o meio mais fácil de assegurar a Coroa e ter tempo para seus amores.” E aí entra o Quadro. O Rei, apaixonado por Gabrielle, queria casar-se com ela e só o Papa poderia dissolver o casamento dele com a Rainha Margot, de quem se separara. Henrique IV decidiu então reconverter-se e ir à missa na Catedral de Saint-Denis. Nesse sentido, Gabrielle, em proveito próprio, exerceu forte influência sobre o Rei.
O professor Pizolla tinha prazer na narrativa desses fatos, que pareciam empolgar meu irmão Joseph, mas que me deixavam desatento, porque eu sabia de tudo:
— O Rei estava tão apaixonado que logo depois da missa de sua reconversão, ao sair da Catedral, sob os aplausos do povo, lançou uma bandeja cheia de dinheiro à multidão. Houve uma grande confusão que ele próprio teria premeditado. Aproveitando o tumulto, ele escapou. Foi ao encontro de Gabrielle e em seus braços terminou o dia. Ela, feliz, pela prova de amor e por ter salvo a França da tutela espanhola.
O professor alongou-se mais, sem consultar o relógio:
— Mas nem todos os padres aceitaram sua nova conversão. O frade Boucher foi ao púlpito de Saint-Méry e insultou o Rei: “Está amasiado com uma mulher cuja reputação é bem conhecida no Mosteiro de Saint-Denis. Comete adultério duplo e ordinário. Ele é casado e ela também.”
— Ela era casada? — perguntou Selene.
— Sim, casou-se aos dezesseis anos com um sujeito fraco, Nicolas d’Amerval, senhor de Liancourt. Depois foi obrigada pelo Rei a divorciar-se. O marido teve de aceitar a separação para não morrer. E mais: assinou uma confissão para justificar o divórcio, na qual se declarava impotente. Mas carregando esta maldição não deixou de incluir em seu testamento a verdade.
Nesse instante, Pizolla abriu uma de suas pastas e dela retirou uma anotação.
— Aqui está uma parte do testamento do marido de Gabrielle. — Pegou o papel e leu:
“E para obedecer ao Rei e por temer perder a vida, consenti na dissolução do matrimônio com a dita d’Estrées, de acordo com a petição apresentada ante o Oficial de Amiens, declarando e protestando ante Deus e os homens e juro e afirmo que se a dissolução se faz e ordena, é contra minha vontade e por força, por respeito ao Rei, não sendo verdadeira a afirmação, confissão e declaração de que eu seja impotente e incapaz para a copulação carnal e engravidar.” — Pizolla guardou a anotação e acrescentou:
— Infortúnios da história.
Pizolla continuou:
— Para evitar ataques dos padres, Henrique IV escondeu Gabrielle na Abadia de Montmartre, cuja abadessa, prima de Gabrielle, chamada Claude, havia sido sua amante três anos antes. No convento, Henrique IV ia encontrar-se com Gabrielle todas as noites. Ela ficou grávida. Daí o retrato de Gabrielle sendo apontada pela irmã, que toca a ponta de seu seio, a significar que ela esperava um filho do Rei. O quadro assim conta esse amor que tanto mexeu com a história da França.
Todos apreciaram, enfim, a esclarecedora digressão histórica do professor Pizolla, que, em seguida, retomou suas explicações mais técnicas sobre as tintas, por ele inutilmente analisadas na elaboração do laudo.
— Bem, senhores, em 1500 saiu um livro, Liber iluministarum, de receitas para tintas; e no século 16, outro, de Russelli, De secretis libri seplam, com receitas para tintas negras, coloridas e a ouro. A tinta vermelha era obtida com pau-brasil, cinábrio e púrpura. Os óleos não serviam para os murais, daí a preferência pelos afrescos. O óleo só servia para dar brilho. Outro ponto importante era a perspectiva. O quadro é de alguém que domina a perspectiva e a estudou. Piero della Francesca escreveu um Tratado da perspectiva. Outro aspecto relevante é a anatomia, que Pollaiuolo também pesquisou.
Meu cunhado Vitório interrompeu o professor Pizolla, não agüentava mais sua vontade de saber quanto valia a obra:
— Senhor Pizolla, nós o contratamos para dar um laudo de autenticidade e avaliação da obra. Peço-lhe que procure abreviar suas conclusões. — Vitório não queria saber nada de tintas, escolas, artistas. Só pensava no dinheiro.
O professor ficou desconcertado:
— Perdão, perdão. Infelizmente eu não posso omitir aspectos que estudei para que os senhores tenham confiança em minha conclusão. Aqui estão os tratados, os desenhos, as hipóteses. Vou tentar abreviar. Quero dizer que Leonardo da Vinci, o genial Da Vinci, o pintor da Gioconda, três anos antes de morrer, foi convidado por Francisco I, Rei da França, para residir no vale do Loire perto do castelo de Amboise. Ali, não produziu quase nada. Limitou-se a fazer cenários e a organizar festas feéricas para o Rei. Mas deixou uma marca muito forte. E pode-se verificar sua influência nos retratos — muitos — que foram pintados.
Pizolla fez uma pausa calculada e fez suspense na busca do efeito especial:
— Marca que tem muito a ver com o que tanto interessa aos senhores.
Fiquei pensando, depois de tantas conversas com a Duquesa, o que eu tinha a ver com Francisco I e como ele vai entrar no inventário de meu pai? Era a questão que me colocava ao ouvir a erudição de Pizolla, que insistia, sem perceber a impaciência da assembléia.
— Da Vinci trabalhou com dois pintores aos quais ensinou muita coisa: Mestres Jean de Roux, também chamado Rosso Fiorentino, e Francesco Primaticcio, o que decorou a Galeria de Henrique II em Fontainebleau. Revelaram-se tão originais que a partir de então as pinturas que surgiram com aquele estilo foram chamadas “da Escola de Fontainebleau”. Essa Escola possui grandes retratistas, como Clouet, o filho, o maior de todos, seu pai, e os Cousin, pai e filho. Os retratos que pintaram se tornaram referências incontornáveis da modernidade. E é aí que eu quero chegar. Guardem este nome — Clouet —, que acabei de falar. Clouet. A rainha Catarina de Médicis pediu-lhe para retratar sua família em crayon, em miniaturas, e guardou-as como se faz, hoje, com os álbuns de retrato. É uma extraordinária e valiosa coleção que chegou até nossos dias.
O professor levantou a voz, e mais ruborizado do que de hábito, relançou a isca para o efeito especial:
— Agora se preparem para minha primeira revelação.
Grande expectativa. Afinal, o instante decisivo se definia:
— O Quadro não é de Clouet, como eu em princípio pensei, pois as personagens nele retratadas nasceram depois que ele morreu. Mas foi muito influenciado por ele, que retratou Diane de Poitiers, muito parecida com essas moças. A técnica é semelhante e Clouet influenciou muitos retratos e esse teve muitas variantes e cópias que se desdobraram em continuadas obras.
Pizolla ministrava a decepção à assembléia pouco a pouco, navegando entre o fracasso e o sucesso:
— O Quadro que me foi dado a examinar é da Escola de Fontainebleau, nome do castelo do Loire onde Da Vinci trabalhou. Valiosíssimo. Belíssimo. Extraordinário. Ele retrata um momento muito rico da história da França, repetiu.
Ora, esta conversa toda eu já sabia e muito mais sobre a história das duas mulheres. Mas o que deixou o conjunto dos herdeiros de crista baixa, macambúzios, desarvorados, foi a afirmação de Pizolla de que a tela não era de Clouet. E de quem seria então? A pergunta aflorou em todos os lábios. Foi polidamente colocada, mas Pizolla se fez de desentendido. Não se incomodou com a nossa desolação, no afã de continuar:
— Outra coisa valiosíssima do Quadro é o tema: elas estão tomando banho. É inverno. A lareira está acesa. Estão numa banheira com um cortinado carmesim. Todos sabemos que os franceses daquela época não eram muito amantes do banho. O Rei Sol, Luís XIV, por depoimento do seu médico, só tomou banho uma vez. E assim mesmo, quando estava dentro d’água sentiu forte dor de cabeça e rapidamente saiu da banheira para nunca mais na vida voltar ao banho! Dizem os historiadores daquele tempo que ele desprendia um odor insuportável. Mas, na época, exalar cheiro de tigre era uma forma de afirmação da virilidade. O Rei Sol construiu Versailles, monumento fundador da arquitetura francesa, mas sem banheiro nem latrina. Henrique IV dizem todos que também fedia, cheiro de bode ou tigre era tido como afrodisíaco. Achavam que era potência. Macho.
E, fingindo não perceber a fossa da assembléia, o professor foi em frente:
— As moças estavam tomando banho e se olharmos o corpo de Gabrielle notamos que ela está um pouco roliça, com a pele já esticando: gravidez!
— Quanto vale um Clouet? Quanto? Quanto? — Vitório, a ponto de subir as paredes.
Pizolla sisudo e impassível:
— Não tem preço! Milhões. Um Clouet é impossível de achar. Mas o Quadro não é de Clouet, como já declarei.
— Como o senhor pode afirmar com tanta segurança? — perguntou Rosa.
— Tenho irrefutáveis comprovações e vou dizê-las.
— E de quem é, grande mestre, o Senhor que sabe tudo, tudo! — Vitório formulou a questão num tom ostensivamente debochado.
Eu, no íntimo, não me sentia esbulhado, ferido pelo que Pizolla anunciava. O que eu desejava mesmo era a minha mulher, a Duquesa, aqueles belos seios que eu tantas vezes beijei e acariciei e que eram o patrimônio de todos os meus sentimentos. Tecla, com seu realismo, diria certamente: “Você é mesmo um louco, apaixonado por uma mulher pintada há 400 anos.” Nada alteraria meu sentimento. Deitei-me com a Duquesa em noites de amores incríveis, quando o mundo se abre para nós. Abandonei a todas as mulheres pela minha Duquesa. Suspendi o jogo dos pensamentos recorrentes para ouvir o professor Pizolla. Ele tirou os óculos e expressou-se com uma voz de compensação, para desarmar a decepção:
— Devo dizer, o Quadro é belíssimo, tem seu valor, foi feito por um grande artista que nele exprime, recria com originalidade e um talento excepcional, tudo o que absorveu do mundo, tudo o que aprendeu dos maiores nomes da pintura. Não me canso de admirar a extrema perfeição dessa obra.
— Mas de quem o Quadro? Quem é o autor? — Vitório, seguido pelo coro de protestos dos meus irmãos, atentos à narrativa, passou a repetir a pergunta a plenos pulmões: — Quem é o autor? Quem é?
Pizolla parou, intimidado pelo ambiente hostil e tempestuoso. Ele pediu calma, sorveu outro gole de água, fechou e abriu os olhos, juntou as mãos e, na postura patética de quem pede misericórdia, deu a conclusão final:
— Lamento causar tamanha decepção a todos os senhores e senhoras. Infelizmente o Quadro é uma cópia. Não é original. Cópia de época, de extraordinária beleza, o que lhe dá valor. O original se encontra no Museu do Louvre, em Paris. Lá está catalogado como “Escola de Fontainebleau, sem autor identificado.” Vejam, aqui, o quadro que está no Louvre, igual a este. Retirou da pasta uma gravura que era idêntica ao nosso Quadro e a exibiu.
O estado de choque se instalou de vez na assembléia. Embora Pizolla já tivesse dado a dica desde o início da reunião, continuamos querendo acreditar na autenticidade e no valor inestimável da pintura até o fim. Nós nos olhávamos alarmados. Da minha comoção e revolta estranguladas no peito, safei-me pelo impulso de querer xingar, deblaterar:
— O Senhor quer dizer que minha Duquesa é falsa, é cópia? O Senhor é um estúpido. Não entende nada de arte. Como a Duquesa pode ser falsa? Eu a conheço. Sei muito bem que é verdadeira, disse-lhe num descontrole emocional.
— Não estou dizendo — retrucou Pizolla — que é falso. Estou afirmando que é uma cópia. Quando examinei o quadro e descobri a existência do que estava no Louvre, fiquei excitado. Porque se encontrasse neste uma assinatura de autoria, o do Louvre é que seria uma cópia, tão idênticos me pareceram. Depois que nada achei, estudei melhor a pintura dos senhores e verifiquei que era posterior à do Louvre. Isso me confirmou ser cópia. Ainda mais, descobri uns pequenos detalhes que somente me confirmaram o que afirmo.
— O senhor é um impostor — disse-lhe agressivamente — ao dizer que a Duquesa é falsa.
O professor Pizolla, visivelmente perturbado, atalhou-me.
— Mereço respeito, senhor. Sou um profissional de conceito. Não estou no Brasil para ser ofendido.
Eu estava desesperado. De repente, minha cabeça não funcionava mais. Era um monte de imagens, fatos, cores e pensamentos sobrepostos em que a máquina de pensar era um completo caos.
Monsieur Pizolla, mirando para a porta de saída com a papelada debaixo do braço, procurou encerrar o assunto:
— Este é meu laudo. Os senhores poderão recorrer a outros especialistas. Existem muitos no mercado.
Na minha absoluta irracionalidade e despropósito, eu esperneava:
— Mas o Senhor disse que a Duquesa é falsa e ela não é. É legítima e verdadeira. Eu sei.
Vitório percebeu que eu estava além dos limites. Minha reação era incompreensível. Aconselhou-me: “Calma, Léo, calma, não se exalte. Vamos ouvir o professor Pizolla.”
Os outros herdeiros, vidrados basicamente no valor monetário do Quadro, não podiam entender minha reação diferenciada, emocional, amorosa em relação à pintura agora inquinada de ser uma simples cópia. Essa conclusão, para eles, era a perda de uma fortuna colossal; para mim, a fixação da minha apaixonada loucura, construída no enleio deste amor de ventania. Mal sabia o que viria depois.
Levantei-me, colérico, resmungando impropérios, enquanto Pizolla punha um último remendo nas suas explicações:
— É fácil constatar uma cópia. É impossível clonar um quadro. Encontramos facilmente as diferenças. Nesse Quadro há uma que é fácil de constatar, a deformação das mãos da Duquesa, visível quando ele toca no seio da irmã Gabrielle. Eu fiz as comparações…
Pronto para a briga, segurei o professor pelo paletó e urrei:
— Esse defeito não existe. A Duquesa não tem nenhum defeito na articulação da mão, que era bela, de dedos alongados, de uma maciez de veludo. Eu vi, eu sei. Ela não tem em seu corpo senão harmonia… Eu ainda não tinha noção da catástrofe que viria.
— Calma, Léo! — Vitório, Selene, e Joseph, me agarraram e me pediram que sentasse.
— O que está acontecendo? Você nunca foi assim — Selene me interpelou. Na busca de clareza, me puxou e, em voz baixa, me encostou na parede: — Que história é essa da Duquesa?
Não abri a guarda:
— Estou ferido. O Quadro é verdadeiro. Esse imbecil é que é falso.
Não aceitei ponderação de ninguém. Senti um aperto na garganta, no peito ante o olhar penetrante, de extraordinário encanto que a Duquesa me lançava.
Selene, não sei por quê, pediu a Pizolla que terminasse seu laudo, para que ela pudesse saber se ainda restava algum valor na obra. Com os ânimos acalmados, o professor aceitou prosseguir:
— Eu tenho muita coisa ainda a dizer e perguntas a fazer. Este quadro faz parte de uma longa descendência. Foi motivo de muitas variações. Eu vou mostrá-las, mas antes queria que, com absoluta confiança e compromisso de confidencialidade, me dissessem como este quadro veio parar no Brasil. É uma pista que enriquece sua história. — A palavra enriquece fez brilhar os olhos e soltou a língua de Vitório.
— Professor Pizolla, esta pintura veio da Rússia para financiar a Intentona Comunista de 1935. Meu sogro era simpatizante da causa e como os russos não tinham dinheiro, mandaram este quadro, extorquido de alguma família czarista para financiar o Partido Comunista. Ele veio com os alemães do Comintern que aqui desembarcaram naqueles anos e quase todos foram mortos pelo ditador Vargas. Eis a razão do nosso mistério. Não foi um quadro roubado.
— Isso faz sentido e muito valoriza o quadro. Nem os russos, talvez, sabiam que era uma cópia. Daí a presença dessa obra no Brasil. Os russos venderam muitas dessas obras a colecionadores particulares. Um Raphael, por exemplo, foi vendido do Museu Hermitage de São Petersburgo para financiar uma siderúrgica da Geórgia, por decisão de Stalin. Agora entendo como essa pintura veio parar no Brasil.
Os herdeiros passaram a se animar. Pizolla dissertou então sobre a grande linhagem da obra. Todos passaram a interessar-se pelo que dizia. Ele tinha se dedicado bastante ao estudo dessa obra de arte.
— Quero mostrar aos senhores que a beleza e o motivo retratado levaram a que muitas obras de arte, que inclusive fazem parte de valiosas coleções de vários museus, os repetissem e desdobrassem. Quero dar-lhes vários exemplos. Vejam aqui — e retirou outra reprodução de seus tubos e mostrou:
— Este é um quadro que retrata as mesmas mulheres, a Duquesa de Villars e Gabrielle d’Estrées. Estão, também, numa banheira e Gabrielle é quem coloca no dedo de sua irmã, Duquesa de Villars, um anel, o que é a sugestão de que o Rei Henrique IV realmente queria casar-se com ela. A Duquesa está sentada na borda da banheira, com as nádegas quase sem carne e o décor é um belo cortinado carmesim, trabalhado com bordas e bolas penduradas e um drapejado de grande beleza. Os seios da Duquesa não aparecem, ela está de lado, mas os de Gabrielle são de grande beleza. Este quadro está na Galeria dos Uffizi, de Florença.
Olhamos a reprodução e as personagens eram as mesmas.
Eu não vi nada. Estava de cabeça apoiada na mesa, entre os braços, tomado de profunda consternação. Pizolla continuava sua lenga-lenga.
— Vejam este outro, pintado também em madeira. Está no Museu Condé, em Chantilly.
— Já aqui Gabrielle aparece na banheira, com um manto diáfano, um colar de pérolas e já com os dois filhos. Atrás dela, César de Vendôme, enquanto a ama amamenta Alexandre, ambos filhos ilegítimos de Henrique IV. O cortinado, belamente trabalhado, é da mesma cor carmesim, caindo como um pano de boca. Este quadro, sim, é uma cópia de um outro de Clouet, onde ele retrata Diane de Poitiers, favorita de Henrique IV, que está na Galeria Nacional de Artes, de Washington. Temos ainda outras cópias retratando D’Estrées, inclusive uma igual a esta daqui, no Museu de Fontainebleau, no Loire. Enfim, são inúmeras e examinei muitas delas.
— Essa Escola de Fontainebleau é de pinturas belíssimas. Elas têm alguma coisa de Da Vinci, de Agnolo Bronzino, bem claro em sua Alegoria do Amor, está na Galeria Nacional de Londres, e da escola de Da Vinci, principalmente da Gioconda Nua que está no Museu Condé de Chantilly.
Vejam os quadros:
— Assim, o quadro que me coube examinar tem um grande valor e está inserido nesta linhagem de que acabei de falar. Quero, agora, que todos nós venhamos ver o quadro que examinei e desejo mostrar-lhes as diferenças dos outros. — Dirigindo-se a mim, fez o mundo desmoronar em minha cabeça.
— Senhor Léo, quero esclarecer-lhe, antes de concluir minha missão, que um Quadro é sempre um meio de estudar sua época. A Duquesa de Villars, a que o Senhor se referiu, merece, por esse fato, um esclarecimento meu. Ela não é falsa. Não é outra pessoa que ali está no lugar dela, é ela mesma que, como a irmã, não teve uma vida das mais virtuosas.
Aí tomei-me de uma cólera incontida:
— Não me provoque senão quebro-lhe a cara.
— Peço-lhe respeito. Estou tratando de personagens da História da França. A Duquesa de Villars teve uma vida dissoluta e bem retratada pelos cronistas, historiadores e estudiosos da época. Era parceira de sua irmã, também foi amante de Henrique IV, e sobre ela corriam, à época, episódios bem relatados e documentados. O maior deles foi com o Padre Henry de la Grange-Palaiseau.
— Quem? — Perguntei-lhe já em pé.
— Padre Henry de la Grange-Palaiseau, da Maison d’Arville — respondeu-me.
— O que tem ele com a Duquesa de Villars? — voltei a indagar.
— Ele — disse o professor — foi grande paixão dela. Pregava no Convento do Havre de Grace, onde Francisco I construiu um porto e depois Richelieu mandou construir o grande arsenal. O padre era muito bonito. Um homem de extraordinária beleza, sem qualquer defeito, senão, perfeição corporal, dizem os cronistas da época. Pois a Duquesa ficava no primeiro lugar da igreja, em frente ao púlpito em que ele pregava, com o busto à mostra em grande decote, um manto de gaze branco colocado em cima de um calção íntimo e uma saia delgada, deixando aparecer todo o seu corpo, para seduzir o Padre. Ele não se deixou tentar…
Interrompi-o, encolerizado, querendo agredi-lo.
— Onde o Senhor soube disso?
— Li nas Historietas de Tallemant des Réaux, publicado na coleção Plêiade, em que conta das mulheres daquele tempo e dedica um capítulo à Duquesa de Villars.
— Deve ser um cretino, infamante…
— Senhor Léo, não posso emitir juízo sobre o autor. Relato estes fatos para que os senhores vejam que estudei profundamente o Quadro — e prosseguiu:
— O Padre Henry recusou-a por virtudes religiosas. Ela escreveu a Roma solicitando que fosse seu confessor particular. O Papa autorizou. Ela meteu-o na capela particular de seu palácio e lá, em vez de confessar, tirou a roupa, mostrou seus belos seios, que, dizem, era o que tinha de mais bonito, e o Padre fugiu a cavalo. Ela foi atrás, também a cavalo, derrubou-o num bosque e tudo fez para corrompê-lo. Essa história ficou célebre na França. Ela era o contrário daquilo que os homens daqueles tempos chamavam “freiráticos”. Ela era “padrática”! Foi atrás dele em Rouen, Paris, e perdeu a cabeça. Perseguiu-o em todos os lugares em que pregava. Ele sempre dizia a missa e nunca cedeu.
— Não me diga uma ofensa dessas, Senhor Professor. — Aí não sei mais o que passou por mim e, em vez de agressivo, implorei: — Cale-se, Professor Pizolla. O Senhor não sabe o que está fazendo.
— Sei que apenas estou dizendo o que li. E mais, sei que ela foi amante de Monsieur de Chevreuse e que mesmo apaixonada por ele entregou-se a um aventureiro — Moisset — e fugiu para sua casa, onde ficou. Chevreuse desprezou-a. Ela, para reconquistá-lo, fingiu que engoliu com um copo d’água os diamantes que retirou de suas jóias.
E prosseguiu, eu destruído, com a cabeça entre as mãos, caído na mesa grande:
— Contam, também, que um jovem, Marques de Saint-Remy, foi atraído por ela a um bosque. Pediu-lhe que lhe desse sua liga. Na verdade queria que a despisse. O Marques criou fama de bobo da corte porque foi tirar a liga escondido entre as árvores e deu-lhe esse presente.
— Monsieur de Bassompierre, que era conhecido como grande cortesão, dono de um palácio que era casa de devassidão, não cedeu a seus galanteios. Ela usou o truque de engolir os diamantes. Comminges, que a servia junto a Bassompierre, pegou-a pelo pescoço, quase a estrangulou e a pôs a vomitar, não para salvá-la, mas para recuperar as pedras preciosas. Saiu só água… A filha de Comminges contou a um amante — e isso afirma em uma carta — que aplicou 24 golpes… Tallemant des Réaux diz ter sido ela uma “das maiores escroques” do mundo. — E concluiu:
— Quem não se fascina por este Quadro sabendo das figuras que retrata e da História do Reinado de Henrique IV. Como disse, é uma obra “merveilleuse”, por todos os ângulos.
Todos se levantaram para acompanhar o professor Pizolla, já alguns certos de que tinham nas mãos um tesouro.
Fiquei na mesa, e, quando vi o cortejo na direção do gabinete de meu pai, gritei alucinado:
— Meu Deus! — E nasceu-me um sentimento de amor e ódio. Uma vergonha de mim mesmo.
E retirei-me.
Não sei o que se passou depois de minha saída da reunião. Não suportei ouvir mais nada. Meu desespero beirava à loucura. O pensamento obsessivo na Duquesa e as revelações me turvavam o exercício normal da lógica. Não eram a autenticidade do Quadro ou a falta de seu autor que estavam em jogo, mas o relato escandaloso de Pizolla dizendo que minha amante era realmente falsa, uma cópia de outras cópias e de outros quadros. Aquilo ofendia, punha em risco o que havia de mais sagrado em mim – o patrimônio da minha paixão, acumulado desde a adolescência.
Na tentativa de reencontrar-me, perambulei sem rumo pelas ruas do Jardim Botânico, sendo, com intermitência, assaltado pela idéia de matar o Pizolla e meus irmãos para preservar a Duquesa.
Para onde ir? Não sabia. Viera ao Rio para essa reunião e agora estava perdido dentro de mim. Só então pude avaliar o quanto o Quadro me dominava, escravizava todas as forças de meu espírito. Voltei para casa depois de vaguear horas. Bati, ninguém, apenas a empregada. Sentei-me no sofá e pedi um copo de água. Ela trouxe e perguntou se eu passava bem.
O telefone tocou. Era Selene. A empregada certamente avisou-lhe que eu estava lá.
— Como você está?
— Voltei para descansar.
— Está se sentindo bem?
— Estou.
— Ficamos todos preocupados. Léo, o que nosso pai deixou foi uma grande fortuna. O Quadro tem valor, não podemos ficar desesperados porque o resultado do laudo não foi o que esperávamos, mas foi bom.
— Selene, você não entende. Não é o Quadro em si que me interessa. Para mim, o que não tem preço é a história da Duquesa. Você só pensa em dinheiro. Não sou igual a você.
Acabei por agredi-la sem sentido.
— Léo, você está doente. Como vai seu casamento? Procure um médico…
— Preocupe-se com você e não com meu casamento. Eu não quero saber do seu. — E desliguei o telefone.
Refestelei-me na poltrona para tentar, com as mãos cruzadas atrás do pescoço, ordenar o raciocínio.
Liguei para Tecla, disse-lhe que só voltaria no dia seguinte. Eu não tinha forças para viajar. Estava muito perturbado. Às seis horas da tarde Antônia chegou e surpreendeu-se com minha presença:
— Tio Léo, o senhor aqui, sozinho. O que aconteceu? Não está passando bem?
— Não, minha filha. Depois da nossa reunião de hoje, fiquei desesperado, completamente desnorteado. Foi uma grande frustração e ainda por cima aquele imbecil do professor Pizolla a dizer aquelas coisas.
— Bem tio, eu acho então que o senhor deve ter calma e combinar com meus tios uma decisão. Afinal, isso não é o fim do mundo.
— Antônia, não é bem isso. É a Duquesa. Você não pode saber o quanto ela faz parte da minha vida. Ela para mim é mais real do que o real. Meu sentimento em relação a ela é tão forte que eu não tive forças para ouvir o relato de Pizolla. Meus mistérios com ela são mistérios de homem e mulher.
— Mas o que professor disse, tio, é que o Quadro era uma cópia!
— Por favor não me mate duas vezes. Não repita isso para mim. Eu estou calmo. Eu gosto muito de você. Não opine sobre esse assunto.
Antônia calou-se, constrangida. Não conseguia me controlar. Telefonei de novo a Tecla. Não lhe contei nada do que havia acontecido. Avisei-lhe apenas que pernoitaria no Rio, no dia seguinte estaria em casa. Pensei em pedir desculpas a Antônia. A idéia me soava como um sinal de que estava voltando ao normal. Na cozinha, ao me ver, ela se assustou com um copo de água na mão e derramou um pouco do líquido no chão. Aproximei-me dela e, num tom carinhoso, desculpei-me:
— Minha sobrinha querida, não me leve a mal pelo tom de minha observação. É que estou muito perturbado. Releve.
Antônia, indulgente:
— Que nada, tio. Eu nem notei. O senhor tem seus motivos.
Disse-lhe que ia dormir na casa: “Estou muito estafado, sem disposição para ir ao Hotel. Mande preparar a cama do meu velho quarto de menino.”
— Mas tio, o senhor pode dormir no quarto grande, com uma cama muito maior e mais confortável.
— Não. Eu quero mesmo é meu quarto. Ali me sentirei melhor, onde sempre relembrarei os tempos de minha juventude. Preciso voltar dentro de mim, percorrer meus dias que já passaram. Sentir a casa. Estou muito carente disso. É por isso que desejei dormir, hoje, aqui.
— Tio, vou mandar a empregada preparar seu jantar — bife e macarrão. Nessa confusão toda não pude me ocupar das compras de casa. Desculpe.
— Antônia, não se preocupe. Basta um chá com bolachas.
Esparramei-me de novo na poltrona com as idéias se organizando na cabeça. Queria chamar a Duquesa para ter um encontro comigo. Não passaríamos uma noite como tantas que tivéramos outrora. A antevisão desse programa, se não fosse a reunião do Pizolla, me reavivaria o senso do prazer, os anseios da perdida felicidade. Levantei para averiguar se alguém me vigiava. Não, ninguém Antônia subira para seus aposentos, dizendo que ia trocar de roupa. A empregada mexia com objetos na cozinha. Sorrateiramente, fui à biblioteca de papai, onde, ao fundo, o Quadro pontificava, no exercício de seus poderes sobrenaturais. Naquele fim de tarde, sob a penumbra do ambiente, ele brilhava intensamente, parecia que um feixe de luz espargia seus reflexos cintilantes sobre as imagens, motivos e contornos da tela. E no centro da composição, majestosa, sublime, a Duquesa de Villars me fitava, sensual e bela. A pérola pendente de sua orelha direita realçava-lhe os meneios graciosos da cabeça. Eu me perturbava também nas suas sobrancelhas finas, desenhadas com esmero, cobrindo todo o arco dos olhos. Seu seio esquerdo, meio escondido na sombra dos relevos, se ofertava com o bico róseo alaranjado de sempre, enquanto sua mão de dedos compridos repousava harmoniosamente no drapejado que revestia a borda da banheira.
— Duquesa, quero estar com você. Vou esperá-la no meu quarto
No seu olhar, estampou-se um mistério.
Espichado outra vez na poltrona, fechei os olhos. Nasceu-me a dúvida sobre se a Duquesa viria visitar-me. Comecei a tomar-me de ansiedade. Minha camisa ensopou-se de suor. As horas pararam. Os ponteiros do relógio pareciam andar para trás. Às nove da noite creio, abracei Antônia e subi para meu quarto, levando o jarro de rosas naturais e vermelhas da sala. Depois de tanto tempo fechado, o espaço de meus segredos e fantasias tresandava a mofo. As roupas de cama, ao contrário, estavam impecáveis, cheirosas. Apalpei com gosto a maciez dos lençóis de morim acetinado e os travesseiros de penas. Havia esquecido o pijama. Dormiria despido. Tomei um banho mais quente do que de costume. Depois abri a porta e a janela para que a corrente de ar levasse o cheiro de fechado. Vaporizei o quarto com desodorante perfumado.
Cobri-me com o lençol, meus olhos crivados no teto. Meu ouvido procurava os mais diversos e distantes ruídos, sobretudo os do vento, que brincava no telhado, nas frinchas das portas, janelas e na copa das árvores. Contei as badaladas da noite no velho carrilhão pendurado na sala.
Levantei-me, passando as duas mãos na cabeça, abri a porta como se esperasse uma visita. Os tênues raios de luz da rua que reverberavam no vidro da janela davam leve toque prateado ou dourado, não sei, à penumbra — penumbra da imaginação. Voltei a deitar-me. Meu corpo me era uma mancha de indecisos contornos. Tomou-me um desejo de ir implorar que chegasse.
Sob o efeito do cansaço, as pálpebras se fecharam. Pontos de luzes surgiram na minha cabeça que, pouco a pouco, se povoou de mundos fantásticos. Neles, os ornamentos do céu não se fixavam, as estrelas fugidias e travessas flertavam com os pirilampos do Jardim Botânico, ali ao lado, naqueles pisca-pisca e jogos de esconde-esconde vertiginosos. Do imaginário, fui lentamente despertado por mãos que tateavam o espaço na busca de meu corpo. Meu olfato sentiu uma suave fragrância de um perfume diluído em incenso. Abri os olhos, a Duquesa estava sentada na cama. Tive uma sensação de transcendência e de levitação. Tive e não tive coragem de matá-la, fazer vomitar os diamantes.
— Duquesa?
— Você cresceu. Está um homem maduro. Suas formas são tão diferentes…
Não resisti. Foi como se as histórias reveladas por Pizolla não existissem. Mas o ciúme estendeu suas raízes em mim.
Acariciou-me. Fiquei assustado. Pensei que estava fingindo, porém ela se enroscou em mim e meu ódio desapareceu.
Beijei-a da ponta dos pés à boca, demorando-me nos seios sempre jovens. Nenhum sinal dos anos. Desci meus carinhos pela sua pele branca, aveludada, envolta na sombra deliciosa, cúmplice de meu delírio. Joguei os lençóis no chão para possuí-la com toda a força que me enlouquecia. Ela, serena, conquistava-me mais ainda. Para recuperar-me, mimava seus pêlos macios, de pluma. Reencontrava a mocidade. Adormeci desmaiado no meu destino, aninhado em seus braços, com seus seios agasalhados em minhas mãos. Um rastilho de orgulho percorreu minha carne ao ouvir seus sussurros: “caresse-moi, caresse-moi”, “caresse-moi”.
— O tempo para mim não existe. Ele não passa. Parou em meu corpo.
Senti suas lágrimas em meu corpo. Ela chorara.
— Leonardo, você vai me vender como se fosse uma escrava? Eu ouvi o professor Pizolla.
Respondi:
— Não, Duquesa! Eu quero matá-lo, vingar sua traição, a inutilidade de minha paixão. O destino colocou-a em minha cama com o sonho mitológico de seu corpo. Dormir com uma deusa, feitiço, loucura e miragem.
— Leonardo — não me chamava de Léo, a abreviatura com que me tratavam — as histórias que ele contou aconteceram depois que eu fiquei parada neste retrato — e implorou:
— Quando eu te conheci não conhecia o Padre Henry. Eu sou duas. A primeira é só tua. Não me venda como escrava — repetiu com uma voz de baleia no cio.
Fiquei parado. Não sabia mais o que me passava pelo pensamento. Tudo era desordem e os sentimentos se misturavam como se estivessem batidos numa máquina de triturar.
— Cheire-me — pediu a Duquesa com lágrimas. — É mentira dizer que os franceses não gostavam do banho. Eu passo a minha existência numa banheira. Quando o Rei Henrique estava doente em Fontainebleau, chamava o ministro das Singularidades das Tulherias, Jean Mocquet, para contar histórias fantásticas das viagens que fez às costas do Brasil. Das riquezas e das Amazonas de um seio só. Do gosto do banho das índias que passavam o dia nas águas dos rios.
— Eu assisti os índios do Maranhão em Notre-Dame sendo batizados. A multidão vendo o dote que os franceses trouxeram da América, de uma França Equinocial que eles sonharam. A fila de duzentos frades acompanhando-os. Depois eles fugiram e foram encontrados tomando banho no Sena. A Espanha trouxe ouro e prata, nós franceses trouxemos aquelas pobres almas para que fugissem do diabo e se salvassem.
Pedi:
— Descubra meus pêlos, seja a Abelha Rainha a enlaçar-me para a morte.
Comecei a rolar num delírio continuado de amar, possuir, morrer, ciúme.
— Tirem-me daqui. Olhei as grades que minhas mãos seguravam, as batas brancas dos homens que me agarravam, o canto sombrio das corujas da noite.
Minha alma com febre e calafrio construía minha aflição. Iniciei com temor e presságio a caminhada. Meus pés se sentiam encharcados e pesavam como chumbo. Meus braços pendiam desarticulados, meus cabelos estavam desalinhados, meus olhos fixos num olhar sem brilho e minhas pálpebras não piscavam. Até a biblioteca caminhei como se tivesse andado dezenas de léguas. Imaginei o dia em escuridão e eu com uma candeia de pequena luz azul iluminando meus passos.
Desci apoiado no corrimão a velha escada da casa da infância apagada. Ela terminava num portal de arcos trabalhados em flores de ouro, entrada do templo da deusa de Villars.
Uma sensação de agonia suspendia o segredo da respiração e invadia-me uma tristeza dominadora que tinha tudo para ser o cheiro do adeus. Tremi no gozo de um vazio de ausência de mim mesmo, envolto numa solidão infinita. Só então passou por mim o domínio da infelicidade.
— Ah, Duquesa, se o Rei Henrique jurou crença num deus em que ele não acreditava pelo Reino da França, quantas missas, mortes e vidas eu dei pela eternidade de, sendo dois, ficarmos um, dissolvidos um no outro, pelo milagre da loucura?
Cheguei perto do Quadro. Uma nuvem encobriu meus olhos. Meu primeiro desespero foi a visão imprecisa e enevoada de que ele sumira. Não tirei os olhos. A nuvem passou e vi que dela caiam duas pequenas lágrimas que ela nunca chorara. Gritei por mim. Abri os braços para recebê-la. Ela saia do Quadro para entregar-se em meus braços. Tentei abri-los e eles não levantavam.
Ela estava no esplendor de sua divina beleza. Nua, seu corpo fêmea totalmente entregue às cores, com uma face de cio. Comecei a pegar livros, tinteiros, jarros, a Santa Maria Egipcíaca, as cadeiras e atirá-los no Quadro, para destruí-lo. Em minha última visão a Duquesa dissolvia-se num arco-íris de cristais e cores. Fez-se em nuvem, de grades e batas brancas.
Fim
Maceió — 23/5/07 — Hotel Celi, quarto 309