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Éris Antônio Oliveira

Éris Antônio Oliveira

Éris Antônio Oliveira •

Doutor em Letras. Crítico literário e professor no Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Goiás. Prefácio a "Bibliografia e Fortuna Crítica de José Sarney", Geia, 2019.

 

Prefácio a
Bibliografia e Fortuna Crítica de José Sarney

 Li “Saraminda” e quanto amei esse belo livro. Depois dos pescadores do Nordeste, José Sarney faz reviver os faiscadores de ouro de Caiena e do Amapá com a mesma sensibilidade aguda à realidade etnográfica permeada por um poderoso lirismo.  

Claude Lévi-Strauss

Como resultado de um amplo e consistente projeto, abrem-se, para o Brasil e o mundo, os portais da extensa e rica produção cultural do Homem Público, intelectual e artista José Sarney. Sua vasta obra participa de uma ordem dupla de valores. Na primeira, tem-se seu labor artístico, no qual sua sensibilidade se dirige ao espetáculo admirável do mundo para sondar-lhe instantes de intuição e encanto, expressos por uma linguagem cativante e particularmente reveladora; na segunda, suas indagações dão forma a um poderoso impulso investigativo que coloca a problemática social, econômica e política no centro de uma imponderável capacidade reflexiva culturalmente aberta e plural.

Raramente uma obra artística consegue um acolhimento tão rápido, espontâneo e promissor. Sua fortuna crítica, rigorosa e qualificada, vem assinada pelos melhores intelectuais e artistas do Brasil e do mundo, como: Lévi-Strauss, Octavio Paz, Claude Couffon, Lelia Radulesco e dezenas de outros; no Brasil, Carlos Heitor Cony, José Nêumanne, Ferreira Gullar, Márcio Tavares d’Amaral e centenas de outros. E, agora, reunida, está disponibilizada para estudantes, professores, críticos literários, pesquisadores das mais variadas áreas e leitores em geral.

Em sua produção reunida, ele apresenta ao leitor sua pujante e consistente elaboração artística, e a arte, como se sabe, pode ser apreendida como um excelente meio para transmitir-nos as percepções, os sentimentos e as intuições mais significativas do imaginário cultural de uma sociedade, tendo em vista que, por meio de sua expressão inventiva, o leitor pode ampliar a consciência de sua inserção no mundo. Ela resulta de impulsos elevados e tende a satisfazer necessidades humanamente relevantes. Com esse propósito é que o artista modifica as coisas exteriores ao imprimir nelas suas reverberações interiores. Como cultor da liberdade, ele assim procede para usufruir, na forma criativa e interior das coisas, uma nova feição, inventiva e lúdica, que o mundo só adquire na criação artística.

Realizando uma obra sensível, atraente e imaginariamente bela, José Sarney infunde em sua criação uma consciência especial do mundo, que transcende largamente a objetividade do cotidiano. Isso porque ele lida com a criatividade, que tem por objetivo colocar-nos em contato com o belo, e este está ligado à revelação, fator que arranca da superfície do visível uma reserva de invisível, e disponibiliza para o apreciador de arte a passagem do objeto real ao objeto ideal, no qual ele acessa imediatamente fagulhas profundas e inesperadas da natureza íntima das coisas e de si mesmo. 

É importante ressaltar que a produção ficcional de José Sarney apresenta irreprimível qualificação, pois ele realiza com sensibilidade e requinte criativo um estilo inteiramente pessoal, que traslada para a linguagem literária os anseios mais substanciais da condição humana, numa atualidade que surpreende os leitores mais exigentes. Acompanhando o itinerário previsto por Hermes, ele envia ao leitor uma mensagem que carreia consigo a síntese expressiva de um mundo em gênese.

A linguagem instigadora da sensibilidade e da imaginação já fora examinada por intelectuais como Roland Barthes (2006, p. 47), que a esse propósito assegurou: “Eu me interesso por ela porque ela me fere e me seduz”. A criação ficcional de Sarney realiza com adequação essa façanha instigante e sedutora da linguagem, tal qual previra Heidegger (1973), que sobre ela disse: “é a morada do ser”. Por isso, os objetos por ela criados chegam-nos com a máxima força de sua expressividade radiosa.

Isto se faz presente na primeira obra desse autor, Canção inicial, de 1954, especialmente nestes versos: “Meus olhos fenecem e o presságio dorme / no espelho das águas que / escorrem” (SARNEY, 1954, p. 67). Nas ondas líquidas do reflexo desse espelho, a visão fotográfica tende a ceder e dar lugar ao dizer artístico, que corrige, altera e deforma as impressões do primeiro olhar, aderindo-se, por meio de um estilo pessoal, à inventividade e à criação, para brindar o leitor com uma fagulha cintilante da face encantadora da vida, que só lhe chega pelo imperativo transfigurador da arte. 

Tem-se, aqui, um mundo constituído de signos que se transmutam em significações, por meio das quais o poder de nossos sentidos adentra o nosso íntimo para tornar a realidade menos real, como em “Doce rio que vem e boia /na enseada… / e se afoga no mar” (SARNEY, 1954, p. 72), em que a paixão pelo que se relata convoca o leitor a inserir-se na via existencial e imanente, que lhe faculta uma percepção singular do mundo e de si mesmo. Graça, inteligência e sensibilidade constituem a energia intrínseca dessa produção.

Algumas imagens de Marimbondos de fogo (1978) nos conduzem à iridescência do sol ao cair da tarde, às horas crepusculares que nos direcionam para uma feição profunda e secreta que vem avivar o nosso íntimo, ou quando em nossos corações suspeitamos estar em contato com as mais significativas potências da vida, como se vê em

quando viajo no tempo
e vejo as turvas touceiras
de espinhos e de punhais
com os maribondos de fogo
que sangram, picam e devoram (SARNEY, 1978, p. 59)

Nesses versos, a viagem no tempo remete o leitor, de modo peculiar, não só a um momento dissonante da mente criadora, mas à magia de um instante captado pelas sutilezas da alma. Aliás, as imagens contidas na linguagem do poeta devem ser apreendidas em sua dimensão própria, ou seja, como acolhimento de uma propriedade transcendental do ser. Isto ocorre porque os conflitos que não se conciliam na vida cotidiana do indivíduo encontram sua resolução na arte, pois nela as angústias e os sonhos mais caros se agregam e se reordenam entre as fulgurações do passado, as cintilações do futuro e a fugacidade do presente. 

Na experiência estética, a dicção é metafórica, e a metáfora conduz a matéria ao nascimento e à vida, fatores que sem ela perdem a auréola de seus valores; ela nos confere, continuamente, um especial encanto, ou seja, lendo versos como esses, ouvindo a Sinfonia N. 3, de Beethoven, ou mirando Impressão sol nascente (1872), de Monet, o apreciador de arte experimenta a mais profunda afirmação de seu ser, pois obras criativas como essas carregam consigo uma enorme força de síntese expressiva da experiência existencial.  

Servindo-se de uma fina composição que concebe o texto como secreto lugar de encontros e iluminações, o sujeito enunciador, em Norte das águas (1969), nos põe em contato direto com a sensibilidade e o agrado provenientes da arte. Ali, as personagens estão estreitamente ligadas ao signo das águas, e quem estabelece esse extasiante contato acolhe, em seu ser mais íntimo, energias pulsantes e vivazes, que lhe expandem a alma, em razão de vínculos contraídos por motivações mentais livres e arrebatadoras.

Esse artista conseguiu unir, criativamente, nesta obra, a água ao canto e aos penetrantes desejos das personagens, tornando as colorações do “azul, verde, água branca, água araçá, água fusca, água alazão…” (SARNEY, 1969, p. 187), espelhadas pela claridade, em imensidões suaves pelo toque mágico da leveza da luz que se propaga em reverberações multicores. 

As personagens Dordavida, Flordasina e Amordemais integram um relato, habilmente composto, que constitui, na verdade, uma história dentro da história maior, lugar em que elas se agregam no texto ao devaneio das águas, fazendo a mente do receptor acompanhar o movimento de suas ondas pelas imensidões líquidas, tremulantes e encantadoras. Esse artista conseguiu alegoricamente ficcionalizar a incisão da luz na água, convidando o leitor a visualizar a integração do raio luminoso com a mobilidade líquida, de modo que ele possa assimilar as gradações contínuas que emergem das ondulações e da refração da luz, fatores que influem decisivamente na profusão de cores que dimensionam esse cenário luminoso, assim: 

Eu vou contar: uma vez nós três viajávamos na boca da noite nestes campos de urucurana. Era mês de maio, trovão e raio. De repente veio aquela  nuvem preta, grande, dessas de cocó, e baixando, baixando até perto de nossas cabeças…  águas caindo e todas gritando, como um bando de moça donzela, assim de como se fossem moça e anjo, voando e batendo no capim e escorrendo para os ribeiros, e elas cantando cantigas de aboio … de toda cor, azul, verde, água branca, água araçá, água fusca, água alazão …

— Água cantando?

— Sim, cantando e só vendo a cantiga.

                       Carneirinho, canarana,

          aguapé,teju, tetéu.

                          Ai, campos de urucurana 

(SARNEY, 1969, p. 106-107).

As personagens e os objetos adquirem, aqui, uma força expressiva única, pois são elevados ao que há de mais inesgotável e intransferível neles, como o desejo, o receio e a sedução. Veja que o jorro melódico da água, que se transmuta em aguapé, teju, tetéu, carrega consigo o sonho inebriante de um dia de verão. Essa mirada profunda e inquiridora do artista consegue ver, descobrir e revelar um instante da existência que só se mostra na criação mimética bem elaborada. Nesse sentido, essa obra coloca a imaginação dinâmica no centro da criação ficcional, pois esta tem a propriedade de liberar o artista de seus sonhos objetiváveis, para transportá-lo ao abismo inventivo e informe da vertigem do imaginário, de modo a dignificar a existência por meio de uma invulgar magia que, na arte, decifra e subjuga uma nesga do destino enigmático e sedutor do homem.

É importante, também, destacar que momentos essenciais da recordação se acham habilmente ficcionalizados em Saudades Mortas (2002), que traz ao plano representacional um conjunto de transfigurações imponderáveis da energia pretérita, por meio de visões encantadoras, inesquecíveis e cosmogônicas, como neste caso, em que 

Os anos se escondem nas saudades
que desaparecem
deixando apenas encardidos anos.
Onde estão? Esmagados no silêncio.
Só tu, alma minha, tens a ressurreição
Que surge sem sol

                          (SARNEY, 2002, p. 13). 

Aqui, o pensamento do sujeito enunciador vaga, em horas de êxtase, pelas sendas do imaginário, fruindo a dádiva daquela hora que alcança a plenitude da consciência que, entregue à solidão, cria momentos de particular beleza, capazes de acalentar os nossos mais caros devaneios, expressivos do dinamismo real da vida, e que estão ligados à energia condutora da experiência anímica, o que constitui uma aventura que concorre para prestigiar a força vivificante da sensibilidade humana.   

Perfazendo uma insólita trajetória entre o real e o ideal, o sujeito lírico acessa momentos inteiramente mágicos, que se instauram entre a vivência e a recordação, reveladores dos segredos de seu íntimo ser, e esses momentos induzem o leitor a vislumbrar que para além de sua história estende-se a sua persistente memória. Aqui, o leitor, especialmente aquele que aprecia Shakespeare, deixa sua percepção adentrar suavemente o castelo de Elsinor, seguindo as pegadas do irresoluto Hamlet, condição que o leva a experimentar expressivas imagens, como as desta canção:

Canto uma canção de amor
eterno sol.
O teu mistério,
a flor, a luz, a cor, as árvores, a vida.
O que me vejo e a ti me vejo,
entre tranças e desejos.

todas as cores da luz
que não se limitam às coisas,
mas constrói de luz e cinza
nossas almas (SARNEY, 2002, p. 95).

 Vê-se que a memória usada criativamente insere-nos no reino dos valores, ao colocar-nos em contato com um passado reconstruído e sublime, que permanece em nós, reavivando nossa experiência íntima, ou como postula Bachelard: “Ao lado do passado espesso de minha existência verdadeira, sujeito às fatalidades da matéria, com um sopro eu fizera desabrochar um passado em harmonia com meus destinos interiores” (1996, p. 97). Nesse domínio, o sujeito infunde em sua lembrança uma deleitável e sedutora melancolia que lhe põe imediatamente em contato com os privilégios da imaginação.

Em Saudades Mortas a leitura cria uma percepção dinâmica e múltipla, que nos remete a um alhures, que se afigura como um lugar insondável da produção de sentidos, em que o ideal transita para o imaginário e para o simbólico, tornando a experiência de ler um momento especialmente rico e belo, e a beleza, já dizia Plazaola (1973,  p. 342), “faz aflorar o esplendor da forma”, ou seja, ela é reveladora dos íntimos mistérios do ser, de onde emanam sugestivas e imprevisíveis significações, próprias das obras bem realizadas.

Vê-se que a cor e os elementos a ela correlatos, como: eterno sol. / a flor, a luz, a cor, as árvores, a vida, testemunham a fusão do sujeito enunciador com o mundo enunciado, ou seja, a consciência imaginante mantém a feição completa de seu objeto, numa imediaticidade absoluta, fazendo com que uma espécie de pensamento integral se renove nas imagens criativas do poema, e que o olhar dirigido à face encantadora do mundo adquira uma doçura própria, que se torna o signo de um céu ensolarado que ao incidir-se, nas flores e nas árvores, forma cores sugestivas de fascinantes recordações, aludindo, metaforicamente, ao ser humano solitário, mas sonhador, que constitui o centro propulsor do texto.

Criamos o mundo com palavras, e em sua espessura ele se reconstrói e se ressignifica, assim é o processo criativo de um romance como O dono do mar (1995), que se faz de modo a atribuir um valor subjetivo durável às imagens que se destinam ao deleite do leitor, pois “O prazer poético é prazer verbal e está fundado no idioma de uma época, de uma geração e de uma comunidade” (PAZ, 1982, p. 362). José Sarney sabe disso e organiza sua mente inventiva de modo a obter grandes achados, pois é nessas “horas que uma imagem poética pode ser o germe de um mundo, o germe de um universo imaginado diante do devaneio de um artista” (BACHELARD, 1996, p. 186). É neste instante que a alma do ficcionista adentra uma nova realidade, aquela em que ele gostaria de viver e, ali habitando, poder fruir as reminiscências insondáveis de seu ser mais íntimo, por meio de privilégios imaginários que nascem e renascem de uma visão criativa e plural das coisas e do mundo. 

Esse modo sutil de realizar a ficção anima, em O dono do mar, a produtividade psíquica, renova e amplia os dados da percepção, ao trazer à luz um brilho diccional que torna a produção fictícia uma forma privilegiada do exercício da palavra. Diante de imagens bem assimiladas pelo nosso psiquismo, como as dessa obra, colocamo-nos em sintonia com a intencionalidade poética, pois “é essa harmonia dos sentidos que o devaneio criativo escuta e que a consciência poética procura registrar” (BACHELARD, 1996, p. 111), indicando que a leitura é tanto a compreensão da fala quanto o silêncio das palavras, mas um silêncio capaz de inferir sentidos.

Aliás, “quem nunca imaginou sua terra prometida? Ou seu dia de êxtase num cenário longínquo e acolhedor (em estado de desterro), num mundo pleno de segredos?” (PAZ, 1982, p. 340). Ou quem ainda não buscou seu dia como dirigente dos mares, como Antão Cristório, em noites povoadas de navios encantados e sortílegos, que lhe excitavam o desejo de ver e adivinhar a razão do vazio que se abria frente ao mistério semiescondido que o atraía e o conturbava? Esse enigmático périplo pelas regiões misteriosas de sua alma lembra aquele do grandioso Ulisses, protagonista da Odisseia, de Homero. 

É necessário, desse modo, considerar que a vida externa, precisa e concreta se configura, na realidade, menos real do que supomos. Vivemos na cegueira, como postulou Platão no mito da caverna, mas a arte com sua infinita sede de beleza nos dá o mundo dos mundos, em sua pulsação secreta, ao colocar-nos em harmonia com a potência da vida e com seus íntimos segredos, como ocorre na criação mimética de Sarney.

Com esse mesmo fascinante senso criativo, a voz narradora, em Saraminda (2000), traz à tona um movimento ascendente, no qual o homem se vê maravilhado, na imanência de um enredo peculiar em que a aspiração às alturas, rumo ao Sol, passa a representar o cogito dinâmico, no qual o ser se envolve na busca da leveza e da liberdade, como se vê: 

“Fugia o sol, começava uma luz triste, depois um cinzento de nuvens, logo depois aqueles rebanhos de montanhas pretas gigantes passando para lá e para cá e o vento acompanhando forte, de rajada, de lapada, espanando as árvores…” (SARNEY, 2000, p. 75).

Esse autor faz o cruzamento de caminhos e destinos, articulando-os, imaginariamente, na composição de labirintos geradores de campos de forças significativas que se juntam numa rede de correlações alegóricas imprevisíveis, só possível nas obras da fase da maturidade dos artistas. Cria, ainda, uma possibilidade especular, como disse Claude Couffon (apud SARNEY, 2014, p. 224) sobre a personagem Saraminda, “que instaura um jogo de espelhos que baralha o reflexo de uma imagem cedo demais fixada, sedutora e inquietante, em conformidade com a natureza que a rodeia…”

A emissão autoral capta nesse movimento de elevação a dinâmica do imaginário, que de forma esguia, metaforiza sua tendência para a altura e para o encanto obscuro da desolação. Esse mundo que a altura anima detém em si os signos da leveza e da melancolia, fatores que lembram os matizes cinzentos das névoas dos píncaros outonais, cuja forma de ser acaba se constituindo contra a própria ideia de representação, ao propor o ato inventivo como a criação de um objeto autônomo dotado de leis próprias de organização, de que faz parte sua aprimorada estratégia de elaboração da rede de sentidos, bem como sua consciência do labor ficcional que entrelaça adequadamente as projeções, os sonhos e a criatividade, como se constata na constituição dos monólogos e fluxos da consciência dessa obra, reveladores de traços essenciais da alma humana.  

Estaria esse cenário borrascoso, povoado de nuvens pretas gigantes, contrastando-se com os olhos verdes e os seios dourados de Saraminda, que lembram uma tela, como Le Moulin de La Galete (1876), de Renoir? Esse modelo criativo, que supõe um profundo devir, nos liberta do apego à matéria e nos envia à límpida liberdade criativa e receptora da arte. Nesse devaneio aéreo, podemos ver nossa ascensão voltar-se para o verde e o ouro, ou para o cinza e o prata, emergentes das nuvens, perfazendo o exercício próprio da alma iluminada que coloca o leitor diante dos raios iluminantes da criação bem conseguida, como diria Bachelard (1996). 

A qualidade da obra de José Sarney decorre tanto de seu talento criador quanto do fato de ele ser leitor assíduo de clássicos como Cervantes, Shakespeare, Dostoievski e Joyce, autores que nos legaram personagens memoráveis como Quixote, Hamlet, Otelo, O Mouro de Veneza, Rascolnikov e Leopold Bloom. Esse fator ressoa em sua produção, especialmente, quando ele ficcionaliza personagens exemplares como Antão Cristório e Quertide, de O dono do mar, Saraminda e Tamba, de Saraminda e Leopoldo, de A duquesa vale uma missa. 

Aliam-se, desse modo, em sua obra, dois fatores artisticamente fundamentais: o bom gosto clássico e a renovação, que se tornam visíveis no tom adequado da composição e nos pontos de ruptura que seus textos apresentam em relação à arte antecedente. 

Outra obra da maturidade artística desse autor é A duquesa vale uma missa, de 2007, que agrega em sua composição um profundo conteúdo cultural e um aprimorado recurso técnico, o que se confirma em sua narrativa que intercala habilmente espaços e temporalidades diversas, e em seus monólogos interiores, solilóquios e fluxos realizados com admirável sutileza. Tem-se, aqui, a arte dentro da arte, em que a literatura tematiza a pintura, num jogo especular de imponderável riqueza, instaurador de uma construção metafórica de terceira ordem, ou seja, o elemento central do enredo, a tela Gabrielle d’Estrées e a Duquesa de Villars (1594) já é uma criação metafórica e, ao ser agora tematizada, converte o texto em uma metáfora da metáfora, lugar no qual o objeto artístico, diante do olhar de um observador sensível, se torna uma grande aventura do sentido.

Esse texto dirige nosso olhar para a tela, na medida em que esta se instaura como seu elemento dominante, fazendo emergir um momento singular em que a comunicação entre texto e leitor não mais se regula pelos códigos habituais, ou seja, as imagens textuais trazem à luz o que não é idêntico a um objeto empírico e põem, assim, o leitor em contato com a malha textual, resultante de uma nova rede de instauração de significados que movem os sentidos, contínua e imponderavelmente.

A narrativa ficcionaliza o amor imaginário e secreto que Leo, o protagonista, nutre pela tela, ou mais precisamente pelas moças mimetizadas no quadro. Esse amor alegoriza, na verdade, o permanente apreço que o ser humano sente pela arte. Está presente em seu profundo significado a apreciável reflexão que o emissor faz sobre a criação pictural, especialmente sobre o enigma da arte renascentista, manifesto nessa pintura, incluindo aí a sutileza do comentário que o narrador faz sobre o modo de composição das tintas.

Nesse sentido, o autor informa: “A tinta vermelha era obtida com pau-brasil, cinábrio e púrpura. Os óleos não serviam para os murais, daí a preferência pelos afrescos. O óleo só servia para dar brilho… O quadro é de alguém que domina a perspectiva e a estudou (SARNEY, 2007, p. 144). A fluidez das tintas, aqui empregadas para obter os tons púrpura, pastel e cinza, instaura-se na constituição da tela como um porto repleto de sutis mistérios que se ocultam em águas matizadas por colorações deslumbrantes, aptas a transportarem o leitor para ilhas detentoras de insondáveis tesouros. Leia o texto e você os encontrará.

Também, sua obra reflexiva origina-se da experiência intelectual desse artista e pensador nato que apresenta, ao leitor, argumentos, ideias, preocupações, hipóteses e um sentimento particular do mundo e da história que se revelam, de forma dinâmica e plurifacial, em sua complexidade especulativa e inventiva, problematizando questões urgentes que afetam a organização social, na era contemporânea, de modo a instituir um importante espaço para o debate da situacionalidade e historicidade constitutiva dos valores.

Com admirável propriedade intelectual, José Sarney, em Tempo de pacotilha, de 2004, avalia, em seus artigos, publicados em jornais de grande circulação do País, campos de sensibilidade distintos, integradores da totalidade civilizatória. Nessa obra ele reflete e confere adequada significação a vários acontecimentos da vida social, política, econômica e espiritual do mundo contemporâneo, como a paz, a tentativa das nações de se armarem belicamente, a governabilidade, a ciência, a tecnologia, os sistemas políticos e muitas outras questões inerentes à existência, de modo que esses fatores essenciais da civilização sejam intuídos como centros de referência inspiradores de sensibilidades que dimensionam a atividade social dos cidadãos.

Essa produção apresenta diversos perfis e, por isso, permite ao leitor entrar em contato com a larga experiência cognoscitiva desse intelectual, motivadora de uma ampla possibilidade avaliativa, pois sua elaboração segura e sólida, extensiva à ampla variabilidade do conhecimento, faculta-lhe um proveitoso contato com os horizontes contextuais multiformes do nosso tempo. 

Portadora desse perfil e de uma vivência compartilhada entre governante e povo é Conversa ao pé do rádio (1988/90), que se origina da vida cotidiana e em que o presidente dá respostas aos cidadãos sobre projetos, decisões, e todas as formas de ações relativas aos afazeres governamentais, de modo a incluí-los no curso do exercício político, promovendo e valorizando sua existência social, privada e pública, de forma a presumir, com isso, o mais legítimo exercício da democracia. Instaura-se, nesse âmbito, um campo de comunicação que se identifica com a totalidade imaginária coletiva, subjacente e explícita, no qual se dá uma precisa reflexão sobre o que se quer e se pode fazer, e sobre os meios para realizar essa aspiração.  

Seus modelos de avaliação e parâmetros analíticos ensejam, nessas obras, um número variado de leituras, conforme os interesses de uma área, as proposições de uma perspectiva, de um gosto ou de uma concepção indagadora de ordem reflexiva, na medida em que detém em sua intimidade um universo que participa da textura geral da experiência e que nasce de sua comunicação com o grande público de seu tempo, como nas Crônicas do Brasil contemporâneo (2000/2), em que partilha, com seu interlocutor, sentimentos, valores, desejos, incertezas e inúmeras outras indagações.

Nesse âmbito, a importância da comunicação reside no investimento, tanto cultural, quanto artístico e ético, pois esse intelectual sabia que seus pronunciamentos, feitos em variados gêneros discursivos, endereçados a ouvintes, leitores e ao grande público, instaurava uma comunicação profundamente integradora, que revestia o cotidiano de especiais sentidos, na medida em que abria significativos horizontes de experiência frente à realidade, seja dialogando com o público sobre seus anseios cotidianos, seja avaliando, de modo inteiramente particular, o contexto histórico atual.  

Em Semana sim, outra também (2002) estão presentes elementos unificadores da percepção contextual daquele momento, especialmente no conjunto de temas que lhe dão sustentação e que não se limitam a estudar uma modalidade específica de saber, mas uma rede de assuntos interligados, em que as abordagens, os conceitos e as escolhas temáticas constituem os fundamentos de um espaço epistemológico gerador de possibilidades especulativas diversas. Essa obra conduz a reflexão a um domínio específico de ocupação de um espaço sociocultural que surge permeado por realidades cotidianas de grande interesse, que podem ser avaliadas como sistematicidades discursivas integradoras da dinâmica especulativa daquele momento. 

Em Política, Governo e Povo (1952/73) encontram-se reunidos, em oito volumes, um total de 1.288 discursos proferidos por José Sarney, tanto como Governador de Estado, Deputado Federal, Senador, Presidente da República, quanto como Intelectual e Artista, ora convidado, ora integrante de Academias de Letras, Ciências e Cultura, nacionais e internacionais, o que confirma uma trajetória política especialmente realizadora, seja no plano das atividades correntes seja no intelectual.

Estão presentes, nesses pronunciamentos, diferentes níveis de compreensão e de consolidação da democracia e das condições que, em conjunto, espelham o modo pelo qual suas bases institucionais se estruturam e ganham sentido em seus variados aspectos de concepção: em escala local, regional ou global; do que se infere que essa obra contribui, efetivamente, com as reflexões filosóficas e antropológicas que estruturam o pensamento contemporâneo.

Constitui parte desse conjunto, seus pronunciamentos feitos na Assembleia Geral das Nações Unidas – ONU –, que tratam de vários temas que se relacionam com as aspirações coletivas permanentes como a liberdade, a justiça, a igualdade e a paz, fatores que detêm ampla legitimidade ética e que são, por isso, muito caros ao aperfeiçoamento das relações humanas no curso da história. Insere-se aí, também, o discurso proferido na Universidade de Pequim, sobre Ciência e Tecnologia, e outro em sua posse na Academia de Ciências de Lisboa, ambos tratando de questões como a Racionalidade Científica, bem como de Seu Uso no Dinamismo Social, na Competitividade Econômica e na Eficiência Industrial, ou sobre a Universalização Científica e sua importância na Intensificação Tecnológica do Complexo Industrial, no Momento Presente, entre muitos outros que envolvem temas e indagações teórico-conceituais da maior relevância para a contextualização das questões históricas e sociológicas do mundo atual.

Observa-se, também, na estrutura ora explícita, ora subliminar desses textos, a preocupação desse pensador no que se refere ao aprimoramento das faculdades humanas em sua intrínseca correspondência com a promoção da felicidade e da virtude. A primeira relaciona-se com certas inclinações empíricas e naturais, e a segunda com a obediência de princípios éticos, tal qual previra Kant (2002), na seguinte proposição: “uma corresponde à ordem da natureza, a outra à ordem da liberdade”. Isso mostra que sua elaboração reflexiva estimula em nós a prática bem orientada da expressão do logos. 

Servindo-se de uma linguagem precisa, de uma reflexão profunda e de um tom retórico adequado, esse intelectual faculta ao leitor, nessa obra, uma indagação epistemológica conceitualmente bem formulada sobre um conjunto de fenômenos que condicionam permanentemente a nossa época, pois abrem possibilidades intelectivas para que nos deixemos guiar por valores que nos permitam uma experiência social e política de amplo alcance, o que está de acordo a postulação de Cícero, quando informa que “a virtude do bem entender depende de seu uso, e seu uso mais nobre é a reflexão sobre o governo do Estado e a realização daquelas coisas que os filósofos, em sua intimidade, fazem ressoar em nossas mentes” (CÍCERO, 2000, p.180). 

Importantes filósofos, como Aristóteles, em Ética a Nicômaco (1986), e Cícero, em Da república (2000), fizeram referência a governantes eruditos, que, com seu preparo e aptidão reflexiva, discorrem sobre o sentimento do mundo e sobre o sentimento da história, fatores que se entrelaçam na composição do entendimento da experiência humana que atravessa a nossa civilização, tal qual o significativo universo intelectual concebido por José Sarney em sua obra reflexiva.

Infere-se que os princípios democráticos, quando bem refletidos e aplicados, contribuem para o desenvolvimento intelectual de todos os integrantes de uma sociedade, pois o avanço cognoscitivo dos cidadãos constitui uma potencialidade latente que faz parte da existência real da história, com a qual uma produção reflexiva como Sexta-feira, folha (1994) pode contribuir, pois apresenta uma pluralidade de centros de interesse e uma multiplicidade de campos investigativos, além de ser realizada com traços marcantes de erudição. 

Embora a obra artística de José Sarney tenha recebido pleno acolhimento nacional e internacional e sido traduzida para as línguas mais importantes do mundo, como o inglês, o alemão, o espanhol, o francês, o chinês, o árabe, entre outras, seu valor não difere daquele da obra reflexiva, pois ambas são igualmente grandiosas. O que as diferencia é a natureza, não a relevância. A primeira tem vivo interesse para os apreciadores de arte; a segunda se destina aos estudiosos das áreas de antropologia, história e sociologia, que nela encontram um amplo universo em que a condição humana se espelha.

Cabe ponderar que a reflexão bem orientada estimula, simultaneamente, o conhecimento racional e a produção criativa. Assim é a obra de José Sarney: seu nível de elaboração enseja um rol de nexos conceptivos bem estruturados, complexos e plurívocos, que, realizados com lucidez, sensibilidade reflexiva e imaginação criadora, traduzem, de forma exemplar, os princípios orientadores da experiência multiforme e impactante do mundo contemporâneo, o que justifica plenamente sua leitura e seu estudo.

Éris Antônio Oliveira

Doutor em Letras.
Crítico literário e professor no Programa de
Pós-Graduação em Letras da PUC Goiás

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Mario da Gama Kury. Brasília: UNB, 1986.

BACHELARD, Gastón. A poética do devaneio. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos. Trad. Heloysa de Lima Dantas et alii. São Paulo: Cultrix, 2006.

CÍCERO, Marco Túlio. Da república. Rio de Janeiro: Athena, 2000.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. São Paulo: Abril, 1973.

KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade de Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. 

PAZ, Octavio. Obras completas. México: Fondo de Cultura Económica, 1982.

SARNEY, José. A duquesa vale uma missa. São Paulo: Arx, 2007.

______.Canção inicial. São Luís: Afluente, 1954.

______. Conversa ao pé do rádio. Brasília: Presidência da República, 1988-1990.

______. Crônicas do Brasil contemporâneo. São Paulo: A Girafa, 2000-2002.

______. Marimbondos de fogo. Rio de Janeiro: Alhambra, 1978.

______. Norte das águas. São Paulo: Martins, 1969.

______. O Dono do mar. São Paulo: Siciliano, 1995.

______. Política, governo e povo. Rio de Janeiro: Artenova, 1952-1973.

______. Saraminda. São Paulo: Siciliano, 2000.

______. Semana sim, outra também. São Paulo: Arx, 2002.

______. Sexta-feira, folha. São Paulo: Siciliano, 1994.

______. Tempo de pacotilha. Rio de Janeiro: Alhambra, 2004. (Coleção Austregésilo de Athayde). 

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