José Nêumane •
Jornalista, poeta e escritor
Um texto rico, poético e bem-humorado
Em 1970 — já um político de peso nacional — Sarney lança aquele que será o divisor de águas em sua literatura: o livro de contos Norte das Águas, um quadro vivo da realidade humana de seu estado. Saudado por grandes nomes da literatura nacional como Josué Montello e Jorge Amado, Norte das Águas surpreende por sua visão humanista traduzida em um texto rico, poético e bem-humorado, sempre capitaneado por belas e fortes personagens.
Norte das Águas foi traduzido para o romeno — Apele de Mia-zänoapte —, inglês — Tales of Rain and Sunlight —, alemão — Die Sohne des Alten Antao —, russo, chinês, espanhol — Norte de Águas —, búlgaro e francês — Au-delà des fleuves.
Os contos de Norte das Águas são narrativas singelas de disputas políticas ridículas, inimizades renhidas, pactos de sangue, conflitos de parentela, casos de honra de donzela resolvidos à bala e da eterna guerra fundiária, que sacode o território extenso e habitado de forma irregular deste continente, desde as priscas eras das capitanias hereditárias. Não pretende o autor traçar um retrato de corpo inteiro, mas trata ele de radiografar no detalhe um característico, recôndito e bem delineado fragmento da alma nacional. Não se confundam, contudo, os protagonistas simples (muitas vezes simplórios) desses textos com o estilo de seu autor. Esse se assenta nas melhores tradições da graça e da verve do português bem plantado e bem colhido no Maranhão, como o era seu arroz, bem afamado no semiárido do resto do Nordeste.
Meio amazônida, meio sertanejo, mais mameluco do que mulato, o Maranhão velho sem porteira que emerge destas páginas tem o vigor remoçado do regionalismo do ciclo pós-modernista dos anos 1930 e 1940. Mas o vernáculo do qual surge o universo de estiagens e enchentes, de esmolas e espoliações, é curtido na cepa de quem reconhece os misteres do ofícioe não deixa que hábitos e vícios, bondades e maldades se percam no pó do esquecimento. Na esteira de uma cultura popular colorida e balançada, de aromas ativos e sabores fortes — sem falar nos dissabores das práticas feudais do mando e desmando — e na fidelidade às tradições de uma literatura que produziu picos da altura de Ferreira Gullar e Bandeira Tribuzzi, Nauro Machado e Luís Augusto Cassas, além do paraibano José Chagas, a prosa do bacharel e político de ofício só pode ser considerada amadora nos descaminhos da ignorância ou do preconceito. Se o estilo delineia a prosa e essa reconhece o dono, o autor deste livro merece a consagração dos feiticeiros que se encarregam de não deixar proezas e misérias de dentro de sua tribo serem tragadas pela névoa difusa da história, perenizando-se nestas honras raras daquilo que permanece, mesmo sem ter lugar nem hora.