Diamantina, MG, 12 de setembro de 2005
Vejo Diamantina com os olhos de quem a conhece de muitas vezes, tempos e anos, fascinado com o conhecimento de sua história, revivendo a paisagem dos seus faiscadores e pioneiros, caminhantes da Estrada Real, no sonho das pedras feitas do brilho do sol, com a sua poderosa cultura popular, o encanto dos sons de suas modinhas.
Diamantina!, meus olhos a veem no símbolo de sua dimensão eterna para Minas e para o Brasil.
São lembranças culturais de livros e referências, mas, também, do fascínio que esta cidade sempre despertou e fazem com que o viajante caminhe por suas ruas, veja seu tempo colonial, seus becos e encontros, seus sons e seus perfumes, como se fosse uma saudade que se realiza no gosto de ver de novo. Mas devo confessar que meu aprendi- zado maior sobre esta cidade me foi dado através das memórias que Juscelino escreveu sobre sua infância, por suas recordações, suas evocações da terra natal.
Diamantina está na memória do Brasil por tudo que ela é, mas, sobretudo, pelo berço que representa.Além de todas as suas glórias, teve a glória da figura do seu grande filho, que paira sobre o seu casario. Ele não é maior do que a sua cidade, porque ela faz parte dele, no universo em que a representa em sua dignidade e grandeza.
Diamantina de Juscelino Kubitschek. O filho que ela deu ao Brasil, que marcou a sua história e para coroar seu destino, tornou-se pedra e bronze. Pedra e bronze que não se destroem nem desgastam na solidão para sempre dos grandes homens que fizeram o Brasil.
Minas Gerais, não só Diamantina de Juscelino, mas todas suas cidades são páginas do Brasil.Tiradentes de Tiradentes; São João del-Rei de Tancredo Neves, a permanente inspiração da política brasileira, nos seus exemplos de conciliação, de serenidade, de ho- nestidade, de amor a Minas Gerais, a quem marcou com sua célebre definição: “Minas é o novo nome da liberdade!”; Itajubá, de Venceslau Brás; Santa Bárbara, de Afonso Pena; Viçosa de Arthur Bernardes; Ouro Preto de Bernardo Pereira deVasconcelos e Francisco Antonio Lisboa, o Aleijadinho; Paracatu dos Arinos; Jacuí, de Honório Hermeto Carneiro Leão, a grande figura do Império, Marquês do Paraná; Cordisburgo de Guimarães Rosa; Itabira de Carlos Drummond de Andrade; Ponte Nova de Milton Campos; Santos Dumont de Santos Dumont. Aqui e ali, nas montanhas e nos vales, na literatura, na po- lítica, nas letras e nas artes, são pedaços eternos da História do Brasil.
No dia 12 de setembro de 1902, há 103 anos, num sobrado da Rua Direita, perto da Praça da Matriz, nasceu o filho da professora Júlia Kubitschek. Em suas memórias Juscelino conta que a mais antiga lembrança que guardou foi de quando, aos três anos, viu da sacada a passagem do enterro de seu pai.
A infância e juventude de Juscelino Kubitschek marcaram a extraordinária persona- lidade do Presidente, sua capacidade de encarar os desafios da vida, de ser um pioneiro, um desbravador de caminhos. Aqui, desde cedo, aprendeu a coragem, a conciliação, a tolerância, a ausência de ressentimentos, a bondade de ser.
Afonso Arinos, que fora seu grande adversário, ao sucedê-lo na Academia Mineira de Letras, disse que a marca que Juscelino deixou foi de “humano, tolerante, amigo da liberdade”.
Como Afonso Arinos, fui da UDN durante seu governo. O Presidente conhe- cia, como antigo congressista, todas as artes que se exercitavam no debate parlamentar. Fazíamos um esforço imenso para combatê-lo. A UDN não lhe dava tréguas e nós a acompanhávamos.
Juscelino enfrentava com grande sabedoria o desenrolar da luta política. Não era homem de represálias, ao contrário, era de abrir portas e, generoso, acreditava mais no convencimento do que nos instrumentos de coação do governo. A nossa grande difi- culdade era defender a bancada dos encantos do Presidente, da admirável figura humana que era. A grande luta se concentrava na mudança da capital para Brasília, que passou a ser fundamental para seu governo.
Com o tempo, foi-se consolidando a minha visão de que Juscelino teria sido depos- to, se tivesse permanecido no Rio de Janeiro, pelo tamanho da oposição que o combatia, de natureza política e militar. Como Dom João VI fez quando acossado pelas tropas de Napoleão, Juscelino tomou o rumo do Planalto Central. E então, com a imagem da construção de Brasília, com o símbolo de Brasília, conseguiu fugir do fantasma da deposição que rondava o seu governo e das dificuldades maiores que o cercavam. Ele mesmo confessou seus temores. Sua determinação de construir Brasília não punha em jogo só a construção de Brasília, mas se tratava de um gesto político que evitava que o Brasil sofresse uma ruptura do processo democrático.
Todos os presidentes têm momentos de dificuldades. Ninguém mais do que ele os teve. Mas ninguém mais do que ele teve a competência de atravessá-los.
A ideia da construção de uma capital no interior refletia a velha ideia da visão geográfica de José Bonifácio, o sonho secular do Patriarca, nas palavras de Lúcio Costa.
Fui um dos poucos deputados da UDN a apoiar a construção de Brasília e o pri- meiro congressista a mudar-se para a nova capital. Meu gesto, de um deputado da opo- sição, da UDN, era também uma decisão pessoal de afirmar sua irreversibilidade, tão temerosa naqueles tempos.
A mais forte motivação do Presidente Juscelino, como ele mesmo disse, era fugir das grandes pressões. É frase sua: “É impossível governar no Rio, as pressões são muito grandes.”
Hoje, quando a política de multidões, anárquica e desordenada, encontra nas ruas e no ambiente das grandes metrópoles condições para derrubada de presidentes, como ocorreu na Argentina, Bolívia, Peru, Equador,Venezuela e todos os países da antiga Cortina de Ferro, é fácil avaliar o quanto devem o Brasil e suas instituições ao gesto do Presidente Juscelino de fundar Brasília, onde as tensões se dissipam nos espaços do Planalto Central. Não tenho dúvida que Brasília foi assim e é um fator de estabilidade para a democracia brasileira.
Seu esforço para concluir o seu mandato dentro das liberdades públicas foi me- morável. Enfrentou os levantes de Aragarças e Jacareacanga. Sua resposta foi dar anistia aos revoltosos. Sua preocupação maior era a meta democrática — a mais importante de todas. Num depoimento a Maria Vitória Benevides, ele afirmou: “A glória de meu governo foi manter o regime democrático, apesar de todas as tentativas, todos os esforços para derrubá-lo.”
Relembro aquele tempo, com a visão dos homens que faziam política, que, por mais dura que fosse, tinham o brilho do talento e o respeito à coisa pública, cientes dos valores morais e da força da austeridade e da dignidade.
Sou uma das poucas testemunhas políticas daqueles tempos. Conservo dele lem- branças de grande emoção, que correspondem à admiração pelo homem de Estado. Nunca fui de sua bancada de apoio durante o seu governo e com ele muitas vezes, no embate parlamentar, certamente fui injusto.
Na véspera de ele deixar o Rio de Janeiro, porém, para ir transmitir o poder a Jânio Quadros em Brasília, fui ao Palácio do Catete em companhia de Aluísio Alves. Disse-lhe o quanto lamentava minhas discordâncias durante o seu governo, mas desejava parabenizá-lo pelo trabalho que realizara pelo Brasil. Deu-me uma foto autografada, que guardo com grande carinho.
Em 1965, fui eleito, em eleições diretas, Governador do Maranhão. Juscelino já se encontrava com seus direitos políticos cassados. De junho de 1964 a abril de 1967, vivera no exílio. Em 1968, em plena efervescência do regime militar, os estudantes de economia da Universidade do Maranhão convidaram-no para paraninfo da turma e a mim para patrono. Os militares o tinham como inimigo. Todos indagavam se eu teria coragem de recebê-lo. Eu o recebi, juntos participamos da festa de formatura e ofereci- lhe um jantar. Falei, chamei-o — como devia — de Presidente e ressaltei o quanto ele tinha trabalhado pelo Brasil. Era o depoimento de um adversário que o tinha combatido enquanto vice-líder da oposição durante o seu governo.
Ele agradeceu e depois chamou-me e disse: “Governador Sarney, o senhor foi da oposição e me recebe assim. Deu-me uma das maiores alegrias de quem vive perseguido. Em Minas Gerais, minha terra, onde o governador é meu correligionário e amigo, pe- diram-me que, se o fosse visitar, entrasse furtivamente no Palácio da Liberdade para que os militares não me vissem. Nunca mais ali coloquei meus pés.” Seus olhos encheram-se de lágrimas. Eu vi o homem sofrido, vítima de tantas injustiças.
Em seguida continuou: “O senhor foi o amigo do meu ostracismo. Nada posso lhe dar senão a gratidão pelo seu gesto.” E quedou-se em longo silêncio.
No dia seguinte, 13 de dezembro de l968, viajamos juntos no mesmo avião, um Caravelle da linha regular. Eu ficaria em Recife para uma reunião da Sudene, ele seguiria para o Rio de Janeiro.
Neste dia, à noite, foi editado o AI 5.Ao chegar à Guanabara, nessa viagem, Juscelino foi preso.
Alguns dias depois as autoridades militares da área do Maranhão abriam um inqué- rito sobre a passagem do ex-Presidente pelo Estado, e eu, Governador, respondi a esse inquérito, fui ameaçado de cassação por tê-lo recebido e saudado com as palavras com que o fiz. É um dos orgulhos da minha vida este gesto de justiça.
Sobre esse fato, dele recebi, alguns meses depois, uma carta extremamente gene- rosa, falando de sua visita ao meu Estado.Vou ler os termos desta sua carta, na sua terra de Diamantina, para marcar o quanto me sinto, nesta solenidade, entre a emoção e a gratidão:
Ao chegar ao Maranhão no dia 12 de dezembro de 1968, tive uma das mais agradáveis surpresas que um homem público no Brasil pode receber. Encontrei o Estado entregue a um governador jovem, inteligente, corajoso, digno e que realizava uma obra indispen- sável ao seu progresso e desenvolvimento.
Aquele discurso pronunciado no jantar do Club, realizado em minha homenagem, deixou-me muito sensibilizado e, ao mesmo tempo, preocupado. Temi, sinceramente, pelas consequências de suas palavras generosas a meu respeito, porém, bravas e corajosas no tocante às afirmações que fazia.
Voltei para o Sul convencido de que na fileira das boas figuras do país, o governador do Maranhão se colocava, incontestavelmente, em primeiro lugar.
Sei que não merecia estas palavras. Foram de extrema bondade, mas elas dizem do homem bom e sensível, generoso e humano que era. Depois, estive outras duas vezes com o Presidente Juscelino: no enterro do Pedro Aleixo, em Belo Horizonte, e com Carlos Murilo, em Brasília, quando disputava sua eleição para Academia Brasileira de Letras, e tentei ajudá-lo.
Cinco dias antes do seu falecimento, tomei um avião para São Paulo. Nesse avião viajavam Juscelino e Ulisses Guimarães. O avião, pelo mau tempo em São Paulo, pousou em Campinas e os passageiros foram de ônibus. Ficamos no salão do aeroporto esperan- do a condução. Sentamos em um sofá. Ele relembrou junto a Ulisses os episódios de 68 no Maranhão. Seguiu para São Paulo num automóvel com Ulisses Guimarães. Os demais passageiros, entre os quais eu estava com minha mulher, fomos de ônibus.
Em São Paulo, alguns dias depois, era domingo. Marly me chamou chorando. A televisão acabara de noticiar o acidente com o Presidente Juscelino na Via Dutra. Ouvi a notícia. Fiquei calado.Também chorei.
Governador Aécio Neves:
Agradeço-lhe a honra da Comenda que me confere e a oportunidade de pres- tar a Juscelino a prova de minha veneração, como o fiz, em seus tempos tristes.Vossa Excelência renova aqui, mais uma vez, este ato que é uma lâmpada votiva à memória do grande brasileiro. Como Tancredo, ele não pertence só a Minas, mas ao Brasil.
Fico feliz em vê-lo, Governador Aécio, na chefia do Estado, fazendo um governo brilhante, fiel às tradições de Minas e vigilante na defesa dos interesses nacionais. Desde cedo eu vislumbrei as responsabilidades públicas que o destino iria dar-lhe, pelo seu talento, inteligência e vocação.
Juscelino é o exemplo de que a História se faz com crises e com a lenta sedimenta- ção da vida, inclusive e sobretudo da vida política. Uma e outra têm sido construtoras ou destruidoras. Cabe aos políticos agir de maneira a construir.Atualmente todos os poderes do Estado, Legislativo, Judiciário e Executivo, Congresso e partidos em particular, são atingidos pela onda de descrença que varre a opinião pública.
Estamos com a impressão de que o atual sistema eleitoral-partidário chegou ao fim. Apodreceu. Não pode sobreviver. Não temos o direito de deixar que sobreviva. Ele, sem nenhuma dúvida, tem responsabilidade sobre os males que atravessamos, sobre a quali- dade de recursos humanos que surgiram na vida partidária.
Que aqueles que denegaram os valores da política sejam punidos e afastados da vida pública. Nada de contemplações nem acomodações. Mas não podemos dar absolvição às instituições políticas que produziram um caldo de cultura que permite o desmora- lizante abuso do poder econômico, o uso de métodos e procedimentos que viciam e corrompem a vida pública.
Nestes sombrios dias em que se discutem os valores morais da política, em que atravessamos uma crise de caráter e de conduta, que Minas Gerais seja uma prece de esperança, de renascimento, na evocação de Juscelino Kubitschek, que foi uma luz de otimismo, de perseverança, de obstinação, de construção e de amor às instituições.
Mas o Brasil é maior do que todos seus problemas. Encerro com Juscelino:
Creio na vitória inexorável e final do Brasil como Nação.
JS