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Lucy Teixeira: sobre “Norte das Águas”

Lucy Teixeira: sobre “Norte das Águas”

Lucy Teixeira•

Da Academia Maranhense de Letras. Prefácio da 2a edição, 1980.

 

 

Intenso lirismo

As histórias que o escritor José Sarney reuniu em seu livro de estreia, Norte das Águas, serão aqui examinadas no sentido de relevar-se a consequência ficcional do livro e sua intenção narrativa. Por outro lado, ao situar sua presença dentro do regionalismo nacional, seremos tentados a fazer uma leitura crítica de Os Boastardes (segunda história  e o Norte das Águas) à maneira de Northrop Frye, tão visíveis para nós são certos arquétipos psicológicos e a presença de uma alegoria que conquistam sem dúvida para o livro valores bem mais graves. Sem prejuízo, porém, da análise de uma impostação regionalista que será naturalmente redimensionada no contexto da literatura brasileira.

Trazendo uma solução pessoal à uniformização de nossa língua literária, Guimarães Rosa, com Grande sertão: veredas, criou novas exigências para a temática regionalista. Depois dele, a mesma sofreu esse impacto: para existir, deveria despojar-se do que, até então, vinha constituindo um de seus importantes suportes: o convencionalismo, o pitoresco tout-court, males, aliás já apontados por Nelson Werneck Sodré, ao visar a emancipação do regionalismo brasileiro: este deveria antes de tudo ou também contribuir para o que existe de universal no Homem.

A lição de Guimarães Rosa serviu extraordinariamente a José Sarney, cujo caminho, como veremos, partindo desse impacto, se desenvolve com segurança, revelando secreta originalidade, embora a mesma possa passar desapercebida ao leitor menos atento, pois que a lógica narrativa é a habitual e a distância de observação é a de uma vizinhança imediata.

Cônscio da lição roseana, José Sarney teria também pressentido o grande perigo que o escritor mineiro representava para um jovem escritor que se propõe uma linguagem sua, dentro de determinada realidade ficcional. E o perigo seria exatamente a novidade estilística de Rosa. No escritor mineiro, a linguagem é, antes de tudo, o grande personagem, se sobrepondo, muitas vezes, de maneira genial, ao plot, à ação dramática. A linguagem de Guimarães Rosa, esse estranho e insólito personagem que se “independentiza” através de milagres e se inaugura, para espanto nosso, uma outra realidade no conto Meu tio, o Iuaretê. Nessa narrativa, a emoção que fora o germe da operação ficcional se apaga, para deixar a linguagem gerar por si mesma um significado ímpar e novo, revelando seu caráter de mágica mistificação, por meio da índole automática e não radicada, que hoje o fato verbal reivindicou e conquistou.

Para o escritor maranhense, porém, a paixão é outra. De nenhum modo, ele se serve da linguagem para “desrealizar” a realidade. Ao contrário de Rosa, a linguagem de Sarney não põe em segundo plano a ação, sendo a mesma sempre ao serviço de determinada veracidade ficcional. Portanto, o espaço estilístico não se alarga, não se alastra nem invade qual outra delirante pororoca e o rio indefeso do real, não violentando aquele do qual se alimenta. Em resumo: não há dilatação do instrumento condutor. Ao contrário, ele é sempre aderente à história, ao entrecho, sem desarticulações inusitadas. É que José Sarney se serve da língua como de um organismo cultural cuja estrutura é a mente do povo que ele apresenta literariamente. Eis sua maneira de ser escritor, e é essa maneira que ora nos interessa.

Examinemos pois o processo expressivo em Norte das Águas, para depois passar à intenção narrativa à qual o processo está logicamente conjugado.

O livro apresenta oito histórias, sendo que as três primeiras constituem um ciclo, uma tríade imaginosa; as outras, com exceção da última, Brejal dos Guajas, revelam uma práxis riquíssima de sutilezas físicas e participam do melhor daquele regionalismo tout-court, que Guimarães Rosa de certo modo desbaratou, mas, por outro lado, redimensionou, dando-lhe existência universal. Sarney, nessas histórias, paga a sua “taxa” regionalista.

No processo expressivo, a primeira observação a fazer diz respeito ao dialeto. Como o escritor resolve esse problema que sempre traz para a linguagem, entre tantas dicotomias, a mais grave e que chamaremos aqui de assemanticidade? José Sarney utiliza o dialeto maranhense sem indicá-lo graficamente, incorporando-o, promovendo-o a língua, afastando, a priori, essa circunstância de exclusão. Isso porque os termos regionais não são enxertados com constrangimento numa estrutura erudita, mas sim eleitos e escolhidos pelo que valem internamente. Em consequência, sem perder a espontaneidade, o escritor foge à marca popular, óbvia por exemplo, na primeira prosa de José Lins do Rego. Para isso, contribui ainda o ritmo periódico do discurso que se simplifica sabiamente: a língua é tomada como suporte das invenções, onde o dialeto se exerce como viva fulguração do tempo. Nesse nível operacional, sem rigidez e sem a preocupação de reelaborar a estrutura de fundo, que ele não problematiza — o que o salva —, a língua passa a ser para esse escritor um a priori indiscutível, poupando-lhe aquele esforço interpretativo por meio das múltiplas zonas de linguagem. José Sarney nos traz, extraordinariamente, esse sentido das coisas e dos seres maranhenses, palpitantes em suas frases. Eis aqui o segredo de uma práxis vivíssima e o estilo, em sua fluidez expressiva, passa a ser o resultado de uma relação liberatória que se faz de maneira contínua e direta. É que o estilo de Norte das Águas é intimamente inervado na história, desenvolvido aliás em um só sentido. Os binários da ação são mínimos porque o processo é aditivo e por inserções no uso dos eventos.

De onde nasce, porém, e como se mantém essa tensão significativa sempre presente no livro, se o tecido narrativo não permite multiplicidade de relações?

Comecemos por citar a razão menor, mais fácil e óbvia: a interpolação da poesia folclórica, suporte de um certo dinamismo expressivo e que adquire, por exemplo, muito interesse na história de Merícia do riacho Bem-Querer. As toadas de Nicolau no bumba-meu-boi valem como um presságio no destino dos dois namorados, Pedroca e Merícia (pp. 163 a 185).

O segundo motivo dessa tensão repousa nos acidentes visuais que ultrapassam a zona simplesmente descritiva e adquirem ressonância contribuindo a diminuir, a smorzare a passagem entre os espaços psicológicos externo e interno que se fundem e se completam, principalmente com o diálogo. Este, pela sua própria natureza, um registro duplo, agindo em dois planos diversos, não se dispersa nem acentua, como acontece frequentemente, o eixo do personagem e de seu pensamento com o narrador. É que a força da integração narrativa também resiste a essa prova, e o fluxo estilístico procede em seu espaço dinâmico.

Das três primeiras histórias, a mais importante, como veremos a seguir, é a intitulada Os Bonsdias. De modo geral, os nove heróis das três famílias têm nomes especiais, incomuns para verdadeiros personagens, num sentido tradicional. Em Os Boastardes, Olegantino, Vitofurno e Mamelino são os clássicos valentões do sertão. Nesse ciclo, não devemos esquecer que a tônica insistente é o imediatismo vital. Assim, o eu narrador não julga porque não dispõe de parâmetros ou de valores preconstituídos. Os Boastardes têm muito de uma crônica imaginosa e o recurso interrogativo e adverbial no início dos períodos é visível, para dinamizar o processo narrativo. Tudo leva a crer que essa foi realmente a primeira história escrita por José Sarney para esse livro, pois em certos momentos se percebe a falta dessa segurança, desse fluir conquistado nas histórias sucessivas. Aliás, Os Bonsdias será particularmente examinado, por julgarmos ser essa história uma das mais originais do livro e cuja importância só pode ser comparada com a que conclui a obra, Brejal dos Guajas, embora por qualidades diferentes.

Valendo-se ainda do recurso interrogativo, José Sarney inicia a história de Rosiclorindo, Florismélio e Brasavorto, três primos carnais e amigos para a vida toda. Mas é só essa, a intenção narrativa do autor? Não cremos, após a introdução de Os Boastardes, classicamente regionalista. É aqui que os parâmetros de referimento inicial que apontavam para aquele imediatismo vital tocam realidade bem diversa, direi inédita num livro de feição regionalista, como é Norte das Águas. Desse modo, o leitor do livro, diante das esquisitices dos três primos, vai se sentir um tanto perdido, quase frustrado em sua exigência de leitura. Entretanto, em face de um texto símile, a atitude desse leitor deverá ser por consequência diversa, pois, apesar de todas as aparências, não se trata de uma história puramente regional em sua gênese psicológica, como explicaremos a seguir.

Mas Os Bonsdias não é o pretexto para revelar um mundo primitivo, estranho ao nosso espírito em sua inocente verdade? Claro. Não são as figuras, em seu roteiro, sem perscrutações? Exato. Então, de que revelação se trata? Como qualificá-lo? Aparentemente, é uma história com muita comicidade no recurso clássico à repetição excessiva. Mas não se trata de só humor. O humor já é uma consequência do sentido maior da história, uma consequência que não sabemos se é lucidamente desejada pelo autor, por ele provocada e desabrochando de um núcleo central para o sentido último da narrativa.

Para começar nossa análise, vejamos a esse respeito o que Guimarães Rosa diz a respeito do humorismo, num dos seus importantes prefácios de Tutameia — Aletria e Hermenêutica. Diz Rosa: “É que na prática de arte, comicidade e humorismo atuem como catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e ao não-prosaico, é verdade que se confere  de modo grande.” E mais incisivamente: “Risada e meia? Aceite-se nisso em Chaplin e em Cervantes. Não é o chiste rasa coisa ordinária, tanto seja porque escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento.” Por sua vez, classificando o valor transcendente da anedota, o escritor a denomina de anedotas de abstração.

A observação é importante e na história que examinamos o aparente não-senso, o exagerado sofrimento de Florismélio aos cheiros, principalmente de unhas, depois de dentes e, mais precisamente, do incisivo esquerdo, vem a confirmar, ainda, segundo o escritor mineiro, ou melhor “reflete por um triz a coerência do mistério geral que nos envolve e cria”.

Como encontrar o abstrato dessa realidade exteriormente cômica, para usar a terminologia rosiana? No próprio texto da história, longe de qualquer ressaibo parafilosófico. Assim escreve José Sarney dos citados Bonsdias: “Não era a indolência nem preguiça estas abusões que tinham, mas fortes funções que não podiam deixar porque eram de corpo e não da alma.” E mais além: “Outras abusões também estavam incorporadas com seus caracteres, dando apoio àquela indolência que nada tinha de preguiça, mas era uma formação mesmo de corpo que não tinha disposição para essas necessidades do trabalho. Assim, era da vida mesmo dos Bonsdias não olhar o sol nascer. Diziam todos que fazia mal para o fígado e dava tonteiras.”

Vemos agora que o espaço regionalista não é uniforme, pois o mesmo se transcende para aludir, por meio da comicidade, às abusões do corpo, como escreve o autor. Eis o que se poderia chamar de uma inédita secreta metafísica do corpo, um terreno fechado que o autor adverte sem abandonar seu processo aditivo de composição: este, segundo Chklóvski seria, mais precisamente, o da construção ficcional em patamares, forma aberta, pois aqui os termos enumerados (as três histórias dos Boas) apresentam sempre o mesmo traço comum.

Nessas três histórias, assim como em Brejal dos Guajas, a ação importa por ela mesma e a ênfase recairá sempre sobre o predicado e não sobre o sujeito da ação, apesar da aparência contrária. Estamos pois diante de uma literatura de natureza predicativa segundo os ensinamentos de Teodorov.

Voltando a essas obscuras e secretas abusões do corpo e tentando compreendê-las, acode-nos à memória a observação de Yeats a propósito de nossa coerência mental. Escreve o poeta da Crazy Jane “que os nossos corpos estão mais próximos à coerência porque, mais do que o nosso pensamento, se encontram mais vizinhos ao inconsciente”. Eis uma observação que nos fará certamente receber, sem tanta surpresa, essas “discrepâncias” corporais que acenam àquela parte do nosso ser cuja lógica, mais subterrânea, está além de nossa consciência, essa mesma consciência que Merleau-Ponty aponta como o lugar mesmo do equívoco.

À crítica especializada, aos psicólogos e psicanalistas deixamos as abusões do Boastardes. Aqui basta acenar à particularidade da história que, de improviso rompe seu espaço regionalista onde, aliás, maravilhosamente existe — para trazer ao leitor de índole mais subjectiva a pura inquietação do corpo, essa inquietação sem nenhum sentido para nós, animais racionais, e que, talvez, pertença a essa noite do corpo, a esse arquétipo noturno, apenas entrevisto.

Não nos deteremos a comentar criticamente as outras histórias do livro em face do nosso desejo de examinar sem pressa a história que encerra o livro de José Sarney.

Para nós, Brejal dos Guajas oferece aquela harmonia politónica típica da composição predicativa à qual aludimos. Brejal apresenta essa difusa causalidade, aparentemente descontínua porque se traduz em vários aspectos da mesma ação — melodias várias que se desenrolam dentro de igual tonalidade. Aqui, o autor não entende criar tipos-personagens, mesmo se, por inadvertência, o leitor seja levado a encarar como tais um Né Guiné ou um Francelino Javali. Esses e outros “tipos” são figuras estilizantes e não constituem personagens no sentido estritamente ficcional, simplesmente porque são grupos de elementos que reagem uns sobre os outros na execução desse extraordinário painel no qual o Homem está diante de nós, não no sentido humanista, porque ainda não dispõe de sua máscara cultural. Por esse motivo exclusivo, Brejal dos Guajas seria, em última análise, o grande personagem da história — essa realidade urbano social que o autor escolheu como motivação estética, despindo-a, porém, de qualquer colorido rousseauniano. Todos os habitantes do Brejal são como pequenas pedras de um grande mosaico. A distinção interna dos tipos existe na medida em que “constroem” o Brejal dos Guajas, “cidade” primitiva que equivale à suma das substâncias dos indivíduos em sua singularidade. Os átomos de cada pequena significação se precipitam visando o resultado final, quando o afresco se conclui através da adesão de todos os habitantes com sua forma quase primordial. Eis que o processo ficcional de repente se faz em correlações onde pequenos binários de ação se sintonizam por força da mesma tensão significadora.

Nessa história, José Sarney poderia falsamente sugerir uma leitura “sociológica”, principalmente se pensarmos na afirmação de Lukács, quando defende a tese que a grandeza da obra de arte é tanto maior quanto mais os homens aí revivem o presente e o passado da humanidade. O escritor maranhense, porém, não examina as premissas do processo histórico nem as estruturas econômicas. O político, o governador do Maranhão aqui não comparece. Ele tudo vê em intenso lirismo, de onde ele afirmar que algumas de suas histórias poderiam representar um convite ao que se chama uma crítica arquetípica, segundo a visão de Frye. E aqui não nos resta senão acenar ao mito da Primavera, mas isso é outra história, que um dia ou outro, quem sabe, abordaremos.

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