Quem perde a memória histórica pode repetir os erros do passado. A história das relações Brasil e Argentina foi marcada por desencontros. A Questão do Prata, como a via dominadora do centro da América do Sul, criou rivalidades e alimentou muitas disputas que, por imobilismo, chegaram à segunda metade do século passado.
A tese que naquele tempo se tornou verdadeira argumentava que quem dominasse a Bacia do Prata dominaria a região, porque os rios que ali desembocavam levavam ao reino de Preste João, uma lenda sobre lagos de ouro que ali existiriam. Mas a única coisa que foi encontrada na região foram as minas de prata de Potossi, muito exploradas, cuja prata foi levada, paulatinamente, para a Europa.
Como intelectual, tendo a perfeita consciência dos nossos equívocos, ao chegar à Presidência do Brasil, levava a firme decisão de iniciar nova etapa em nossas relações com a Argentina.
Mandei a Buenos Aires, dois meses depois de assumir o cargo, meu Ministro das Relações Exteriores, Olavo Setúbal. Tinha pressa. Ele foi propor a abertura de conversações para estabelecermos uma grande mudança. Nasceu meu encontro com Alfonsín, em Iguaçu, novembro de 1985. Havia uma identidade total em nossas visões. Nesse dia conheci as virtudes extraordinárias desse homem, estadista das Américas e patrimônio moral e político da Argentina.
Alfonsín também defendia que devíamos crescer juntos, mudar a história do continente com a formação de um mercado comum entre nossos dois países. Então ele deu o primeiro e mais importante passo para mudar a imagem de nossas divergências. Fora do programa oficial, contra aconselhamentos de sua Assessoria, visitou Itaipu. Tiramos uma foto que sepultou a guerra importada das águas do Paraná.
Assinamos acordos básicos, inclusive o primeiro da área nuclear. Precisávamos sepultar essa tentação de alguns setores militares de nossos dois países dessa coisa brutal que seria uma corrida nuclear no Cone Sul. Alfonsín, depois, foi mais longe: levou-me a Pilcaniyeu, na Província de Rio Negro. E eu o trouxe a Aramar, onde o Brasil enriquecia urânio. Ele inaugurou a nova usina brasileira, tida como secreta, sob a jurisdição da nossa Marinha de Guerra. Essa querela estava detonada. E prestamos um serviço ao mundo: Alfonsín e eu tornamos a América do Sul o único continente que não tem arma nuclear nem disputas sobre elas. Juntou-se a isso a minha proposta nas Nações Unidas, por ela aprovada, de considerar o Atlântico Sul “zona de exclusão de armas nucleares”. Assim, aqui, em nossas águas, não poderá trafegar nenhuma arma que use energia nuclear, seja de quem for.
Mas nosso ideal, de Alfonsín e meu, era criar um mercado comum nos moldes europeus. Integração econômica, estratégica, política e cultural — enfim, no futuro, a livre circulação de bens, serviços, capitais e mão de obra.
A Europa, havia 34 anos, começara o seu mercado pelo carvão e aço. Nosso projeto não era uma coisa retórica, como frustrações passadas. Mas, séria e profunda, deveria dar passos firmes para evitar recuos. Estabelecemos um marco de 10 anos para chegarmos até o final da etapa com tarifas zero. Assinamos cerca de 34 instrumentos bilaterais. Estabelecemos um arcabouço de mecanismos bilaterais com vista ao grande projeto.
Enfim, nossa visão não era somente uma união aduaneira, mas um mercado comum, onde estaríamos mais fortes e seguros, vacinados contra as assimetrias, abrangendo vários países, como fez a Europa Ocidental.
Porém, em julho de 1990, na Ata de Buenos Aires, resolveram mudar os rumos: em vez de um mercado comum, uma união aduaneira, área de livre comércio, num prazo de cinco anos.
Reduziram nossos objetivos e ficamos vulneráveis ao que viria. Ainda assim, nossas relações comerciais pularam de dois para 18 bilhões de dólares. São resultados que não podem ser desprezados e já estão incorporados ao patrimônio de nossas relações. Resultado das circunstâncias e sorte de ventos favoráveis, mas não de base estrutural sólida.
Não nos preparamos para os riscos dessa decisão da união aduaneira que fez cadáveres nos dois lados e tem um potencial de atrito e crise, cuja sedução é sempre fechar mercados, proteger setores, com uma solução simples que tem como única lei de vida a competição.
Mas posso afirmar: o Mercosul é irreversível, é um caminho que não tem volta. O Mercosul tem problemas sérios de ajustamentos e atravessa mais uma área de turbulência, mas apresenta resultados extraordinários. O primeiro deles, a mudança de nível nas relações entre Brasil e Argentina. Depois, uma relação que vai do fim das disputas militares, leia-se, uma vez mais, corrida nuclear, a uma aproximação mais estreita. A Argentina com o Mercosul incorporou 200 milhões de consumidores brasileiros.
Mais adiante em artigos abordarei os caminhos do futuro.