Senado Federal, Brasília, DF, 13 de abril de 1972
Nada acrescentam ao brilho desta sessão e à glória do grande morto as palavras que vou proferir neste plenário. Contudo a elas sou levado pou um dever de consciência e motivado por dois sentimentos, a que não posso furtar-me. O primeiro deles, o sentimento de admiração, a admiração que votava a Milton Campos; o segundo, da amizade que, se não posso hoje unilateralmente classificar de íntima, também não posso deixar de dizer que era estreita, afetuosa e de longa data.
Milton Campos deixou neste País não somente um vazio difícil de se preencher, como a todos nós uma dificuldade muito grande para dimensionar esse vazio.
Quando da abertura desta sessão legislativa entrei neste plenário de novas luzes e de novas cores, senti como se estivesse no meio da Casa, tombada, uma grande árvore. E tombara. Milton Campos faltava. Procurei lembrar-me de que essa imagem para mim não era nova, deveria ter lido ou ouvido em algum lugar. Realmente encontrei-a numa elegia de Neruda a amigo morto:
“En este día solemne de despedida eres tú el despedido pero tú ya no oyes
tú noble frente falta y es como si faltara
una gran árbol en medio de la casa del hombre.”
Pertenço à geração de 1930, uma outra geração que não a de Milton Campos, uma geração perplexa e profundamente imantada pelo fascínio de homens da estirpe do grande morto.
Em Milton Campos nunca pude associar a figura de um companheiro; nunca acei- tei o nivelamento dos nossos títulos como sinal de igualdade, jamais consegui, dentro de mim mesmo, senão vê-lo como um mestre, como figura exemplar da vida pública brasileira, um pedaço da história política do Brasil.
Ele era um professor de conduta, um mestre da democracia. O sentimento mais nítido de envelhecer é aquele quando, já ao longo dos anos, vamos sentindo o apagar dos faróis, dos luzeiros que marcaram a nossa formação. É aquela morte dos mestres, é aquele sentimento que nos invade para ver sempre o passado maior que o presente e uma leve indecisão para medir valores do futuro. Esse sentimento foi profundamente sintetizado numa frase de Rainer Maria Rilke quando soube da morte de Rodin, a quem escrevera as cartas mais ternas de sua vida, ao desabafar:“Todos os grandes homens já morreram.”
Relembro quando conheci Milton Campos.Vinha da província, mergulhado nas paixões da vida provinciana, com abominação à ditadura. E na minha mocidade, seduzi- da por todos os “ismos”, não aderi a nenhum deles, mas vinculei-me aos homens liberais da União Democrática Nacional na luta gloriosa pela redemocratização. Daí a emoção que senti, ao chegar convocado à Câmara dos Deputados, bem moço ainda no primeiro contato que tive. Era uma tarde. No Palácio Tiradentes uma comissão estava reunida. Depondo, o General Juarez Távora, outra legenda da vida pública brasileira. Seu rosto estava traumatizado pela situação em que ali se encontrava, mas a confortá-lo, ali compa- recia a grandeza da guarda de honra de algumas presenças. Eu olhava fascinado, naquela mesa, ao lado dele, Otávio Mangabeira, um pouco adiante, Milton Campos, Prado Kelly. E renovava dentro de mim a aventura de um moço de província que num clarão começa a sentir que os seus ídolos são criaturas e pessoas humanas.
Relembro a última vez que estive com o Senador Milton Campos nesta Casa. Confesso que me encontrava agitado, angustiado com as discussões que nos dividiram sobre a reforma da Casa e sem pedir a ele conselho, mas desejando, querendo ouvir a sua palavra, ele como se me acalmasse, totalmente, na sabedoria de uma só frase, como todos nós nos acostumamos a dele ouvir, disse-me apenas:“Sarney, vamos atravessar os tempos; quando a reforma do Congresso for feita, o Congresso não precisará mais da reforma.”
Ouvi o Senador Gustavo Capanema falar da figura do advogado Milton Campos, o jovem que no escritório de Abílio Machado, juntamente com Pedro Aleixo, iniciava os primeiros anos da sua carreira, com a sua formação de filho de magistrado e a sua cultura jurídica. Ouvi-se também falar do literato, do homem de letras, da sua formação huma- nística. Acredito, aliás, como muito bem terá formulado o Senador Gustavo Capanema, que nenhum homem político de Minas Gerais e nenhum homem público pode, re- almente, completar-se sem ter um pouco dessa visão humanística das coisas e da vida.
Milton Campos não vai ficar para a história do Brasil como advogado nem como escritor ou administrador, até mesmo porque os administradores raramente ficam na História. Ninguém sabe o nome de quem construiu, no tempo glorioso dos impérios, do passado, as estradas, os edifícios, quem cuidou dos suprimentos das armas ou dos mercados. Mas a humanidade guarda os exemplos e os nomes dos grandes estadistas e dos grandes artistas.
Grande é o estadista em Milton Campos, grande o político. Grande, também, o ora- dor. Na formulação de suas ideias o estilo era puro, impecável, belo, podemos dizer. Eu, que muito o ouvira falar, me lembrava que também na história do Parlamento Brasileiro o visconde do Rio Branco guarda a fama de sempre ter falado com elegância, e a quem devia esta qualidade, respondia: “Aprendi com o Marquês de Abrantes, — o mestre das elegâncias e formalismos políticos — que dizia que devemos sempre conversar como se estivéssemos discursando.”
Em Minas Gerais, 25 anos depois, ainda se fala no Governo Milton Campos. Com aquela discrição que o acompanhou a vida toda, foi ele quem fez o primeiro plano de Governo do Brasil, do qual sairia o binômio “Energia e Transporte”, que depois se tor- nou a bandeira desenvolvimentista do Brasil. Li isto nas declarações de Edgard da Mata Machado, e os mineiros aqui presentes podem testemunhar sobre sua exatidão.
Os episódios que se contam do seu Governo serão apenas fatos pitorescos de um Governo? Não! O episódio do trem pagador, que é repetido como exemplo aos que governam porque representa, no fundo, a compreensão de quem governa de saber dosar os instrumentos de poder, e também a compreensão de que a violência não constrói. Por isso, ao invés de mandar os soldados ele mandou o pagador. Ouvindo os interesses legítimos de quem necessitava; e não a repressão, que não teria sentido, e que redobraria o problema.
O fato que lhe foi contado, do deputado que falava contra o seu Governo e da sua reação:“Mas eu também desejava falar contra o Governo.”
É um simples episódio? Não. Marca mais profundamente aquele esprit des minoritésque é uma característica profunda dos liberais. A compreensão da minoria, do direi- to de divergir, linha mestra da filosofia liberal, que era a filosofia de Milton Campos. Realmente, abominava — e o disse certa vez — o lado torpe da política, aquilo que ele mesmo lembrava que Eça de Queirós chamava “o lado torpe”. Mas a política, no seu verdadeiro sentido, como bem foi frisado nesta Casa, foi a grande paixão desse homem — e as histórias de todos os países são feitas com políticos e com estadistas! São eles que formulam teorias; são eles que constroem independências; são eles que abrem caminho; são eles que asseguram as nacionalidades; são eles que perpetuam países e nações.
Morre um liberal, nestes tempos em que o liberalismo é tão amaldiçoado e que de suas fileiras tantos desertam dia a dia, e em que o liberalismo é considerado um ana-cronismo. Mas, ouvi, também, nesta Casa, de Gustavo Capanema, que a parte mais fundamental da personalidade de Milton Campos era justamente o amor ao princípio dos direitos individuais. E, de fato, isso identifica a razão mais profunda dos liberais, lembrava Madison, quando falava do liberalismo. Dizia ele que era a filosofia da liberdade e que a liberdade podia ser invocada com três conceitos: o conceito de independência, quando se falava da soberania das nações; o conceito de democracia, quando se cuidava de regi- me aberto em oposição aos regimes autocráticos ou absolutistas; e, em terceiro lugar, a liberdade dos direitos humanos individuais, para defender o cidadão contra os excessos do Estado, quer seja democrático, quer seja autocrático. A única definição de liberdade diferente que existe no mundo contemporâneo, está numa palavra russa, svoboda, que significa que “liberdade é o direito social do cidadão de usufruir aquilo que o Estado acha que para ele é bom”. Este não é o conceito do homem livre. O conceito do mundo ocidental é que fez o pensamento civilizado até hoje, o que permanece imutável e o que Milton Campos guardava.
Milton Campos era um obstinado cultor da liberdade. E o liberalismo, como uma filosofia da liberdade, numa definição simples e sem sectarismo, não morre nunca, por- que a paixão da liberdade jamais pode morrer. Isto não é dito hoje, mas vem atravessando séculos e séculos. É famosa a lenda grega de Xerxes e Leônidas. Quando Leônidas está morto, o seu adversário persa joga-lhe a manta púrpura em cima numa homenagem de respeito ao grande inimigo tombado. Diz o poeta: “Leônidas recusou a homenagem.” E pergunta: “Mas, por que recusas, se estás morto?” Ele responde: “Porque a paixão da liberdade não morre.”
E tanto é mais verdade quando, no mundo atual, também eu não tenho dúvida, de que da Rússia de hoje o mundo esquecerá, dentro de alguns anos ou séculos, o nome dos construtores da sua grandeza bélica. Mas não esquecerá um pássaro preso, chamado Soljenítsin, da estirpe de Dostoievski, e que não pôde sair de sua pátria para receber o prêmio maior, que é o Prêmio Nobel de Literatura, porque tem a paixão liberal de divergir.
No dia em que cheguei a Belo Horizonte, comovido, para prestar a última home- nagem ao grande mestre, abri os jornais.Achei estranho que uma das últimas leituras de Milton Campos fosse Mirabeau.
E agora que ouvi, nesta Casa, falar-se de Milton Campos, o santo, associei a ideia de um santo lendo Mirabeau.
Quem é Mirabeau? Um pensador político, um homem que, vindo à Inglaterra, e vendo suas formas parlamentares democráticas de governo, voltava à França e queria que Luís XVI salvasse a Monarquia através das ideias liberais.
Há, também, um sentido de fidelidade à política, do homem preocupado com as instituições, do homem, até às últimas horas da vida, preocupado com o seu ideal — a democracia e a política — como ele mesmo escreveu na carta revelada ao Senado pelo Sr. Magalhães Pinto. Pois bem, esse homem quis morrer lendo um pensador político, não um frio pensador político, mas um homem de ação, cuja vida fora dividida em duas partes. Uma, a do condenado à perdição e outra, a daquele recuperado quando deixou de ser o escritor das “Cartas” para ser o Mirabeau das doutrinas.
Milton Campos foi desses homens de fidelidade absoluta aos que consideram a razão de sua participação na vida pública. Por isso resolvo dizer estas palavras para que se algum dia, e vai haver muitos dias, algum historiador vier rebuscar a personalidade de Milton Campos nos Anais desta Casa e debruçar os olhos nesta sessão encontrará o depoimento de um senador pelo Maranhão, afirmando que Milton Campos, pelo exem- plo, pelo brilho, pelas atitudes foi ídolo de gerações e sua personalidade não foi venerada somente em sua terra — Minas Gerais — ou em sua região, o Centro-Sul. Não! Sua imagem chegou ao Brasil todo — ao longínquo extremo-Norte — de onde venho e de onde trouxe a veneração que agora deposito em sua glória.
O Senado é menor sem Milton Campos e nós, senadores, estamos diminuídos só pelo fato de não podermos usufruir da honra de sermos seus colegas.Aqui, não queren- do ser nada, era tudo.
Senhor Presidente, Senhores Senadores, com a homenagem da minha profunda admiração a este grande homem, a quem o Senado está homenageando e que já passou à História, quero, neste momento, dizer que o seu coração bate às portas da eternidade, mas, quando essas portas se abrem ao toque do seu coração tão generoso na vida, a ga- leria que se abre é a galeria dos maiores brasileiros.
JS