Passamos o Domingo da Quadragésima, o Primeiro Domingo da Quaresma. Quadragésima e Quaresma vêm dos quarenta dias que se repetem na liturgia católica e na Bíblia: é o período da purificação, como o que Jesus Cristo passou no deserto, ou como o que Nossa Senhora levou antes de apresentar, com São José, Jesus no Templo; mas é também o período que o Ressuscitado leva antes de subir ao Céu e o que a Arca fica suspensa nas águas e o que Moisés fica no Sinai esperando a Lei etc.
No nosso caso da Quaresma, somos nós que devemos nos preparar para o dia central em nossas vidas, na vida da Humanidade: o da Paixão do Senhor. Temos quarenta dias para isso, mais os domingos, que não entram na conta. Como todas as contas do “calendário móvel”, a data da Páscoa é de encontro complexo, que cria um desacordo entre a Igreja do Oriente e a do Ocidente: esta a comemora, em geral, mas não sempre, alguns dias antes daquela.
A data da Páscoa — do Domingo da Ressurreição — seria fixada no 14º dia da Lua cheia que acontece no dia 21 de março ou depois. Fácil! Mas tente entender os cálculos ou as tábuas ou os algoritmos — sim, há outros algoritmos além dos que impulsionam as fakenews.
O Padre Antônio Vieira — que vocês sabem que sigo por recomendação de meu pai — deixou, entre seus sermões, uma grande coleção dedicada à Quaresma. Três deles foram sobre a Primeira Dominga da Quaresma — domingo vem de dies domenica e se traduzia muitas vezes como palavra feminina. No ano de 1953 o Pai Grande, para os índios, ou o Vieira, para os que levavam lambadas dele, isto é, os que não eram índios, tiveram que ouvir uma baita descompostura.
O Evangelho da Primeira Dominga fala dos quarenta dias que Jesus passou no deserto. Conforme o ano, pode ser segundo as palavras de Marcos, Lucas ou Mateus. Aquele dia foi uma Dominga das Tentações, porque Mateus invoca as palavras que o Diabo proferiu ao Senhor: “Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me.” “Tudo isso Te darei, se, prostrado, me adorares.”
Ele, o Padre, não tinha uma avaliação muito boa dos fiéis de sua igreja. Acreditava que todos estavam prontos a sacrificar a alma — a cometer crimes inafiançáveis, diríamos hoje — por qualquer coisa. “Eu, Cristãos, não quero agora, nem vos digo que não vendeis a vossa alma, porque sei que a haveis de vender; só vos peço que, quando a venderdes, que a vendais a peso.”
Como o que mais se fazia ali era a escravidão dos índios, contra a qual tinha um édito real, Vieira sustentava que, ao mantê-los escravos, estavam vendendo a alma: “Basta acenar o diabo com um tujupar (um abrigo de palha) de pindoba (palmeira de onde se tirava a palha), e dois Tapuias; e logo está adorado com ambos os joelhos.” E anunciava que o que Deus queria naquela Quaresma era que soltassem os escravos. Estavam todos em pecado mortal, todos viviam e morriam condenados e todos iam direto para o inferno, e mudar de vida era a única salvação.
Nosso Padre Vieira acabava de chegar de uma viagem a Lisboa e, um pouco hipocritamente, tinha a intenção de fazer um acordo em que os índios fariam serviços remunerados aos moradores enquanto “livres” — isto é, enquanto viviam nas aldeias controladas pelos jesuítas.
É deste sermão um raciocínio que termina com uma exclamação terrível para nossa História: “[Dizem que] este povo, esta República, este Estado, não se pode sustentar sem Índios. Quem nos há de ir buscar um pode de água, ou um feixe de lenha? […] Hão de ir nossas mulheres? [Eu] digo que sim, e torno a dizer que sim: […] porque melhor é sustentar do suor próprio, que do sangue alheio. Ah fazendas do Maranhão, se esses mantos, e essas capas se torceram, haviam de lançar sangue!”
Sobrevivemos àqueles dias, e o Maranhão se tornou um grande Estado, sem que (todas) as almas se tenham vendido ao Diabo. Infelizmente, lá, como em todo o Brasil, os índios continuam sofrendo tremendas agressões e sendo feridos em suas culturas, numa situação em que nunca é demais cobrar a ação do Estado.
Dizia Vieira, “El-Rei poderá mandar que os cativos sejam livres; mas que os livres sejam cativos, não chega lá sua jurisdição.” São palavras que o Congresso Nacional precisa sempre refletir quando trata dos direitos dos índios, inscritos na Constituição e acima dela, na consciência da Humanidade.