A UDN foi o grande partido do Brasil. Seus quadros constituíam a elite nacional, juntando conservadores com a esquerda democrática, como os dois irmãos que traziam incorporados em sua biografia a luta e o exílio curtidos na oposição a Getúlio Vargas: Otávio Mangabeira e João Mangabeira, brilhantes e combativos. Organizados em partido depois da queda do Getúlio, tinham por hábito reunir-se toda quarta-feira em sua sede, na Rua México, 3, onde as diversas alas e divergências cruzavam espadas. Quando eu cheguei ao Rio, em 1955, um ano após o suicídio Continue a ler
Severo Gomes e Henriqueta, sua mulher, pessoa de caráter e coragem, acompanhavam Ulysses e Dona Mora no trágico voo de helicóptero em que desapareceram ao largo de Angra dos Reis. Joaquim Nabuco, ao escrever esse livro extraordinário que é Um Estadista do Império, nos dá uma lição que jamais aprenderemos: fazer perfis, colocar em poucas linhas um retrato dos homens. É quase impossível fazer sequer um desenho de Severo Gomes. Dizer que foi um patriota é pouco. Em Severo Gomes a ação política estava indissoluvelmente ligada à sua personalidade. Como Continue a ler
Ranieri Mazzilli, deputado pelo PSD de São Paulo, foi, durante muitos anos, presidente da Câmara. Tinha um aspecto de lutador de boxe ou barítono, com uma envergadura muito grande, e falava com certo ar de autoridade, o que lhe dava o respeito dos seus colegas e, ao mesmo tempo, condições para dirigir os trabalhos com muita competência. Quando veio a Revolução de 64, o Presidente Castello pediu-lhe, e à sua Bancada na Câmara, que apoiassem o nome do Deputado Bilac Pinto para substituí-lo, uma vez que já ocupava o cargo Continue a ler
“Pode de Nazaré vir alguma coisa boa?”, pergunta Bartolomeu a Filipe, no começo da vida pública de Jesus. Pois foi nesta humilde cidadezinha da Galileia que o Criador escolheu um casal de noivos, Maria e José — ela, a pureza absoluta; ele, um carpinteiro da linhagem de Davi —, para em Maria encarnar Jesus. Seu Filho vem para que tenhamos ao nosso lado a face de Deus compreensível para os homens, uma presença para nos amparar nos momentos maus, para nos consolar nas horas amargas, distantes da terrível presença de Continue a ler
Otávio Mangabeira fora deputado federal desde 1911, chanceler no governo Washington Luís, exilado, novamente deputado, deputado constituinte, governador da Bahia, senador, participara da fundação da UDN e era membro da Academia Brasileira de Letras desde 1934. Velho, nos últimos anos de sua vida, morava no hotel Glória; se não me engano, na suíte 901, no nono andar. Recordo-me de que ele tinha os pés já bastante inflamados e andava com chinelas de plumas, muito confortáveis. Ali recebia os amigos e admiradores e os líderes dos partidos políticos, que sempre desejavam Continue a ler
O doutor Milton Campos, um dos grandes nomes da UDN, intelectual brilhante, advogado, jornalista, foi deputado constituinte, governador de Minas, senador, candidato a vice-presidente da República, ministro da Justiça. Estava, certa vez, no aeroporto do Rio, quando se aproximou dele uma sessentona, daquelas mulheres engajadas na política: — Doutor Milton, eu sou da UDN, mas da UDN verdadeira: fui uma das viúvas da rotativa e sou da UDN da calúnia! Da calúnia, doutor Milton, como o senhor! O fato é que Carlos Lacerda promovera uma campanha para comprar uma rotativa nova Continue a ler
Quando cheguei à Câmara, lá estava o General Flores da Cunha, de terno branco, sempre de roupa clara, gravata borboleta, cabeça branca e contando histórias dos pagos gaúchos. Sua história já era, então, uma lenda: fora deputado desde a legislatura de 1913, senador em 1928, um dos líderes da Revolução de 30, governador do Rio Grande do Sul em 1935; exilado no Estado Novo, voltara ao Brasil em 42 e fora preso na Ilha Grande; constituinte pela UDN, tornara-se presidente da Câmara em 1955. No primeiro dia em que nos cruzamos, Continue a ler
Nos 150 anos da Independência, em 1972, o Coronel Otávio Costa, chefe da comunicação do Médici, teve a ideia de criar uma diplomacia dos ossos para reavivar o nosso sentimento patriótico: trouxe de Portugal os ossos de D. Pedro I, que percorreram o Brasil inteiro e, depois, tiveram o devido repouso no Panteão do Ipiranga, em São Paulo. O caixão não podia ser aberto, fazia parte do acordo Portugal-Brasil, porque havia sempre o perigo de ossos trocados. E os portugueses bem sabem disso: a urna que continha os ossos de Continue a ler
Um dos grandes amigos de meus primeiros anos de política foi Neiva Moreira. Alguns anos mais velho do que eu, Neiva era “americano” de Nova Iorque, município do Maranhão. Começou no jornalismo no Pacotilha, jornal de São Luís,que foi comprado por Chateaubriand, que levou Neiva para os Diários Associados no Rio de Janeiro. Fomos colegas na Câmara dos Deputados nas três legislaturas que lá passei. Neiva era um grande político, tinha espírito público e, sobretudo, um temperamento revolucionário, o que fez com que chegasse ao extremo: quando Brizola criou o Continue a ler
Goya foi uma testemunha muito especial do que aconteceu na Espanha quando Napoleão resolveu alterar a ordem mundial. Formam-se, então, dois pontos de vista: o do homem de Estado e chefe militar que se colocaria, não só em sua própria visão, mas na da História, num patamar mais elevado que os inúmeros outros que pensaram estar na mesma situação de fazedor de destinos; e a do artista — também o maior de seu tempo — que compreendeu a alma humana em todas as suas nuances, inclusive a da sua degradação Continue a ler
A glória política é efêmera. Como dizia Malherbe das rosas, vivem o espaço de uma manhã. Ela vive de instantes, de uma atitude, de um discurso, de um gesto e logo cai no domínio do esquecimento. Para citar um exemplo maior, veja-se a imagem do Winston Churchill, que é muito mais lembrado pelo anedotário dos seus apartes, do que como o extraordinário homem que, com uma coragem imensa, contra quase todos os colegas da Câmara dos Comuns, alertou para o perigo da Alemanha e, em seguida, comandou a Segunda Guerra Continue a ler
Em 1961, eu estava na ONU, na delegação brasileira — presidida por Afonso Arinos de Melo Franco e composta por Gilberto Amado, Antonio Houaiss, Araújo Castro, Guerreiro Ramos, Josué de Castro e outros — à 16ª Assembleia das Nações Unidas. Ali, no Comitê de Política Especial, tive oportunidade de ter como colega a “Mãe de Israel”, Golda Meir. Odylo Costa, filho, o melhor amigo que tive em minha vida, fez uma carta recomendando-me a Gilberto Amado, que era, desde sua criação em 1948, a figura central da Comissão de Lei Continue a ler
A sociedade se organizou como Estado para enfrentar o medo da morte violenta, diz a velha fórmula de Hobbes. Se não evita a morte, todo o Estado desmorona, como um castelo de cartas. E, infelizmente, há muito tempo o Brasil tem falhado nesta tarefa. Tenho escrito aqui repetidamente contra a violência, que nos cobra preço maior do que o de muitas guerras, atingindo os que morrem e suas famílias, também vítimas irremediavelmente marcadas. Os episódios recentes no Rio de Janeiro acentuam uma das faces mais terríveis desse massacre: o aspecto Continue a ler
Zé Bonifácio — Zezinho, entre os seus colegas de Parlamento, José Bonifácio Lafayette de Andrada —, que foi signatário do Manifesto dos Mineiros e presidente da Câmara dos Deputados, era tido como homem de muito bom humor que gostava de contar pilhérias e, não raro, fazia graça com seus colegas. Mas a mim sempre tratou muito bem e com grande amizade. Era um político muito esperto, de tal modo que, depois de 1945, transitava entre os grupos dos dois líderes que comandavam a UDN mineira, Magalhães Pinto e Milton Campos, conseguindo não Continue a ler
Diante das revelações que saem agora nos Estados Unidos, de que Trump queria acabar com a Constituição americana, com mais de duzentos anos de existência, e dar um golpe de Estado, vemos que a velha realidade do sonho de Monroe — da “América para os americanos” e de um continente integrado — desapareceu. Na verdade, sempre existiram três Américas. Uma, a América do Norte, rica, saxônica, de onde saiu o grande país que dominava o mundo, liderando política e economicamente os países dos cinco continentes e disseminando as ideias de Continue a ler
Falei, na semana passada, que precisamos de duas reformas urgentes: a do sistema de governo, adotando o parlamentarismo, e a do sistema eleitoral. Eleição significa representação. Desde a Revolução Francesa acabou-se com a ideia de que grupos podiam designar pessoas para transmitir uma reivindicação — o chamado voto imperativo — e passou-se a eleger quem representa os cidadãos. É o ato de votar que afirma a cidadania no Estado democrático. A grande dificuldade é fazer com que o representante represente de verdade o povo. Cabe ao sistema eleitoral garantir isso, Continue a ler
Não há palavra mais usada e gasta no vocabulário político do que reforma. Quando as coisas precisam mudar e parecem gastas o caminho a que se lança mão é o apelo a reforma. Vem do Império o primeiro chamado forte a ela, para conjurar a República que já surgia. E veio do conselheiro Nabuco de Araújo, conservador que se tornou liberal e bradou, num momento de grandes dificuldades: “OU A REFORMA OU A REVOLUÇÃO!” Dizia que se não se fizesse uma grande reforma no sistema político inevitavelmente viria a revolução. Continue a ler
Mais uma vez, esta semana, o Brasil proibiu a entrada de estrangeiros por via terrestre ou aquática. Curiosamente não proibiu o acesso por via aérea. Essa tentativa de impor barreiras físicas faz parte da rotina em todo o mundo desde o desenrolar da pandemia de Covid-19. Não é a primeira vez que se impõem restrições em razão de uma doença. Já o Levítico mandava isolar os leprosos. Avicena, o grande sábio que revelou Aristóteles para o Ocidente, recomendava a separação dos doentes com doenças transmissíveis. E na transição entre Idade Continue a ler
O mundo começa a se recuperar, com alívio, de um dos maiores problemas da pandemia: o cansaço da solidão, o desgaste psicológico do isolamento. Infelizmente, aqui no Brasil, ainda vamos continuar nessa provação de ficar longe da família, dos amigos, dos companheiros de trabalho, de toda a sociedade. Há um ano, ainda no espanto com as dimensões da doença, eu lamentava o meio milhão de mortos no mundo. Hoje esse é o número no Brasil. Há mais de um milhão de pessoas em tratamento, as UTIs estão cheias, e os Continue a ler
Tenho escrito muitas vezes que a Covid-19 mexeu em tudo e não sabemos ainda até que ponto chegará. Provocou de maneira mais dramática a saúde, com uma crise sanitária que pegou todos os países de surpresa, mostrando que raros tinham estrutura para enfrentar os problemas que surgiram. Gerou em seguida uma crise econômica que provocou a quebra das pequenas empresas, com repercussões na organização da vida nas cidades, no transporte, nos empregos, com todos os dramas familiares que se pode imaginar, a cujas lágrimas é difícil ter coração para resistir. Continue a ler
Todos elogiam e tiram o chapéu à liberdade de imprensa. Muitas vezes é um gesto repetitivo para agradar àquela que faz ou desfaz a opinião pública, outras vezes é medo de desafiá-la, mesmo que seja desafiar a verdade. Mas qualquer que seja a motivação, tudo será pouco no elogio ao trabalho desenvolvido pela mídia nos tempos trágicos que estamos vivendo da atual Pandemia. A Primeira Emenda da Constituição Americana, que faz parte das dez emendas do Bill of Rights, garante as liberdades individuais: de religião, opinião, imprensa, reunião, petição. Jefferson, Continue a ler
Assumi a Presidência da República em março de 1985. Meu espaço para deflagrar minhas próprias ideias era muito estreito. Não tinha partido político. Minha filiação ao PMDB era uma exigência legal. Minha base política era a dissidência que me acompanhara vinda do PDS, tendo à frente o grande homem público, exemplo de austeridade e patriotismo, Aureliano Chaves, junto de Jorge Bornhausen, Marcos Maciel, Guilherme Palmeira e outras lideranças. Eu vinha de um Estado sem peso político, o Maranhão, sem ligação com a grande mídia, sem apoio de corporações econômicas e Continue a ler
Vivemos num mundo em transformação. A sociedade digital mudou tanta coisa que isso atingiu o nosso modo de pensar. O aspecto mais discutido é o que se chama de “a morte da verdade”. São tantas versões sobre um fato que não se sabe qual é a verdade. Este problema não é novo. Sempre foi uma questão fundamental e está no centro do Evangelho. Pilatos pergunta a Cristo: “Tu és rei?” Jesus diz que veio para dar “testemunho da verdade”, e Pilatos retruca: “O que é a verdade?” O que acontecia Continue a ler
Disseram-me que o grande médico brasileiro Dr. Dráuzio Varella declarou que quem inventou o SUS era um gênio. E um constituinte de 88 declarou com estardalhaço que a maior obra da Assembleia Constituinte foi a universalização da saúde. Estou acostumado a me roubarem meus projetos e realizações. Por 20 anos apresentei vários projetos sobre incentivos à cultura. Só passou o último, e porque eu era Presidente da República, e assim pude sancioná-lo. Os artistas colocaram o nome de Lei Sarney. Ninguém tinha abordado o problema da cultura como eu o Continue a ler
Há mais de 30 anos, quando presidente da República, sancionei a lei que instituiu o Vale-Transporte. Quando assumi, o acesso ao trabalho, principalmente nos grandes centros urbanos, era um dos mais sérios das cidades. Primeiro, gerava uma ameaça constante de greves, sendo os transportes deficitários e, com as frotas sucateadas, lutando com um problema insolúvel. O salário do trabalhador, no fim do mês e muitas vezes no meio, não era mais suficiente para o pagamento de seu deslocamento para o trabalho. E, num tempo de inflação alta, ele não tinha Continue a ler
O Brasil atingiu, esta semana, um número de mortos pela pandemia de Covid-19 que não pode ser ignorado: passaram de 400 mil as vítimas. Os exemplos da imprensa para exprimir a dimensão da tragédia têm, e não poderia deixar de ser assim, um ar macabro. Sejam as comparações com as áreas das grandes capitais do País que seriam ocupadas por um cemitério, sejam as com o tamanho e número de cidades, sejam as com outros grandes morticínios, saímos delas com a certeza de que somos testemunhas de um marco histórico Continue a ler
O Coronavírus não é o primeiro vírus da era digital. Mas é o que está utilizando todos os instrumentos para proporcionar à sociedade um volume extraordinário de informações, fazendo a população conhecer detalhes da doença — a Covid-19 —, do vírus — o SARS-CoV-2 — e de sua estrutura, os métodos que estão sendo usados pelos laboratórios em suas pesquisas e a opinião de cientistas. São conhecidos os nomes das vacinas, os percentuais de imunização das primeiras doses, os efeitos que podem provocar ao serem tomadas. Mas é tanto conhecimento Continue a ler
A alternância de poder, que é uma das bases da democracia, é sempre um tempo de ajustes e transições. Nas democracias mais estáveis a estrutura do Estado não se confunde com o corpo de governo e é formada por um funcionalismo de qualidade que garante que a máquina pública continue rodando. Os governos se sucedem e definem diferentes políticas, que implicam em prioridades, enfoques, orientações. A margem da administração, do governar, está previamente definida. Mas para tudo há exceções. Em 2017 Barack Obama terminou seus oito anos de governo com Continue a ler
Os franceses gostam de dizer que tempos como estes que estamos vivendo são de “excesso de crises”. É um somatório de crises. Esta palavra grega, krisis, descreve um problema que se torna paroxístico, um momento de evolução decisivo, que o Aurélio define como “período de desordem acompanhado de busca penosa de uma solução, situação aflitiva”. É o nosso caso, com a singular diferença de que estas crises com que estamos convivendo todo dia, que fazem parte do nosso cotidiano, não são comuns, mas duas grandes crises; e, embora seja a Continue a ler
A grande epidemia, logo tornando-se pandemia, da civilização digital que está em curso é a primeira, e queira Deus que seja última, totalmente documentada, inclusive no seu processo de desenvolvimento, podendo os cientistas acompanhar as variantes que se multiplicam em todos os países, já existindo quatro mil, sendo que as mais preocupantes são a inglesa, a sul-africana e a brasileira, por serem mais contagiosas, podendo aumentar a possibilidade de reinfecção. Cada vez mais constatamos que as doenças contagiosas constituem o grande perigo, bastando constatar que só a malária mata 400 Continue a ler