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Rachel de Queiroz: sobre “O Dono do Mar”

Rachel de Queiroz: sobre “O Dono do Mar”

Rachel de Queiroz•

Da Academia Brasileira de Letras. Prêmio Camões de Literatura 1993. O Estado de São Paulo, 20 de abril de 1996.

 

O mar e os donos do mar

Quando o homem era Presidente da República, ouvi muito maldizente comentar: “Ora, pra um Presidente é fácil eleger-se acadêmico…” Mas verdade é que José Sarney entrou para a Academia muito antes de sonhar em ser Presidente (ou talvez já sonhasse, que ele é homem de sonhos altos), mas o que lhe abriu as portas da Academia Brasileira foi o seu belíssimo livro de contos Norte das Águas, publicado há mais de uma década. Todos nós já o sabíamos escritor, e muito bom, mas o Norte das Águas excedeu nossa expectativa. Conquistou-lhe imediatamente um grande público, foi traduzido em vários idiomas.

Político profissional, no melhor dos sentidos em que possa ser usada a expressão, o parlamento é a sua oficina de trabalho: Sarney foi Deputado Estadual*, Federal, Senador, Vice-Presidente da República, antes que a imprevista morte do Presidente eleito o levasse ao Palácio do Planalto.

Senador pós-presidente, ei-lo de novo em outra Presidência, desta vez do Senado, o que implica uma terceira Presidência, a do Congresso Nacional. Pois esse homem tão completamente envolvido em política consegue tempo para escrever um romance — e que romance! — que todos nós teríamos vontade de assinar.

O Maranhão é um Estado híbrido, que na beira-mar parece e se diz nordestino, com praias belíssimas (semelhantes às nossas do Nordeste verdadeiro); mas saiu da beira-mar vira amazônico, cortado de rios, de florestas, que nada sabe de seca e de mais agruras de que nós padecemos.

O Dono do Mar, como vem no seu título, é um romance de mar; ou, digamos de mar e praia, pois os dramas se passam todos entre as barcas de pescarias que vão ao mar alto, e os dramas dos praieiros que em terra apenas moram, mas, viver, vivem é com os peixes, as redes, os facões e os remos, e mais utensílios do ofícios. Mulher inclusive.

Mas como o autor soube fugir, com graça e astúcia, aos artifícios da narrativa folclórica, das quais de certo modo já andamos fartos, com suas reivindicações políticas ou sociais. Eu sou a primeira a bater no peito com aquele O quinze da minha estreia, onde, pensando bem, só há choro, tragédias da terra seca, lamentações e pedidos de socorro.

A saga do Capitão Cristório, que é o herói principal da narrativa, tem tudo: romance, mistério, paixão do corpo, do coração e das estranhas; e ao mesmo tempo se entrelaça de lendas; as lendas que os pescadores contam, que Sarney deve ter escutado da boca dos próprios viventes dessas lendas, os que se dizem testemunhas delas e falam de peixes de tamanho desmesurado, de vários e estranhos bichos que vivem na águas fundas; como aqueles piocos, bichos saídos das profundezas que têm um olho só, são cobertos de pelos e, de vez em quando, surgem aos bandos para raptar e deflorar as donzelas que se arriscam em banho de mar.

São tantos e tão variados os nomes, os dizeres, os costumes daquela gente praiana que o autor tomou a medida prudente de pôr ao fim do volume um glossário, indispensável ao leitor não maranhense — quero dizer, não maranhense de praia; que os do interior também não a entenderiam.

Sim, pode o romance ser um repositório de lendas, mas na verdade trata-se de um romance mesmo, onde não se fazem aberturas especiais para o pitoresco nem à exibições folclóricas. O que há de diferente e novo na linguagem tinha que estar ali, trazia o seu lugar marcado. A bela prosa do romancista é a sua sempre linguagem, harmônica, contida (ah! esse pessoal do Maranhão como sabe usar bem a língua portuguesa!). Sim, bela e forte. Seus personagens são vivos como gente de carne e sangue; as vezes parece até que tem mais sangue do que carne quando o coração os atormenta demais e a vida incerta de beira de praia, ou de praia adentro do mar, lhes parece tão complicada e infeliz!

Enfim, para o livro novo do Presidente José Sarney só tenho sinceros e fervorosos louvores.

* Equívoco da autora: José Sarney não foi Deputado Estadual

 

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