Nações Unidas, Nova Iorque, EUA, 25 de setembro de 1989
Abertura da 44a Assembleia Geral da ONU
Senhor Presidente,
Senhores Delegados,
Apresento a Vossa Excelência meus cumprimentos pela sua eleição.
Temos certeza de que sua experiência assegura a nossos trabalhos um caminho firme e construtivo. Estendo minhas congratulações a seu ilustre antecessor.
Registro, mais uma vez, o reconhecimento do Brasil ao Secretário-Geral Perez de Cuéllar.
Quero, ao iniciar este discurso, prestar a minha homenagem e reverência ao povo da Colômbia e ao Presidente Virgílio Barco, pelo exemplo de coragem cívica e sofrido heroismo que vêm oferecendo ao mundo, de governar em região de tantas tempestades, onde a marginalidade e o fanatismo se juntam para destruir a pátria, na alucinação da antivida das drogas.
Senhor Presidente,
Em 1985, ao começar meu mandato, compareci a esta tribuna. Saia o Brasil de longa noite. Emergia de uma tragédia e enfrentava grandes incertezas. O panorama internacional apresentava graves dissonâncias.
Quatro anos depois, vejo paisagem política, diferente, com a redução dos conflitos e a retomada do diálogo.
Há esperança. Termina a guerra entre o Irã e o Iraque. Retiram-se do Afeganistão as tropas estrangeiras. Na América Central e na África Austral ocorrem desenvolvimentos positivos. A Namíbia torna-se independente. Abrem-se reais perspectivas de pacificação e entendimento em Angola. Retomam-se os contatos diretos entre a Argentina e o Reino Unido. Reforçam-se os interesses de paz, segurança e desenvolvimento no Atlântico Sul. Os supergrandes acordam redução efetiva dos artesanais nucleares.
Mas ainda está longe um mundo sem angústias, tensões, medo. Alguns temas clamam por solução.
No Oriente Médio, as fúrias do fanatismo continuam a vitimar populações inocentes e a dilacerar nações como o Líbano, outrora exemplar pelo seu equilíbrio pluriconfessional. Na África do Sul persiste o regime do apartheid, afronta a consciência dos povos civilizados. Em alguns lugares, em caráter grande ou pequeno, são relegados os direitos humanos. Estão abertas as Súplicas de Timor Leste.
Mas progrediu o espírito da paz como valor supremo do convívio entre as nações. Restabeleceram-se outros grandes valores da consciência moderna: a democracia e os direitos humanos.
Contemplando este quadriênio temos uma certeza: a dos avanços da democratização no mundo contemporâneo. A conquista e reconquista das instituições livres que constituem desejo universal.
Caminha-se para a recuperação ou inauguração de liberdades democráticas.
Trago testemunho e sofrida vivência do meu exemplo, na luta pela transição democrática. Tem o valor da vida e de amarga luta. Mas há o fascínio de participar das transformações.
Deixarei em breve o governo. O balanço que ofereço é de ter o Brasil caminhado 50 anos de democracia, nestes cinco anos. Temos o período de mais plena liberdade de nossa História. As instituições estão restauradas, o Estado de Direito instalado. Uma verdadeira sociedade democrática construída, com um alto grau de organização e participação, num sistema de capilaridade que permite ao povo fazer presente a sua vontade.
Somos a terceira democracia do mundo, com 82 milhões de eleitores. Promovemos eleições em 1985 e 1986. Em 1987 instalamos uma Assembleia Nacional Constituinte. Elaboramos uma nova Constituição. Tivemos eleições em 1988. E, em 15 de novembro deste ano, vamos eleger o meu sucessor. Tudo isso dentro de um clima de paz e de ordem, harmonizando sempre a efervescência de aspirações finalmente liberadas. Lidamos com 10.000 greves. As soluções foram encaminhadas com espírito de conciliação. Enfrentamos uma conjuntura econômica de crise.
Os ventos da liberdade não passaram apenas pelo Brasil. Na América do Sul, este vasto e novo mundo, ao término deste ano não haverá um só país que não esteja sob um regime democrático. Os autoritarismos mergulharam no descrédito.
Eu disse em 1985, aqui desta tribuna, que o caminho do desenvolvimento passa pela democracia.
Democracia e integração, eis o nosso objetivo de modernidade. Dessa causa tornei-me um andarilho. Vivi profundamente essa paixão. Esse binômio é a marca da América
É latino-americana a maior onda de democratização que o mundo conheceu desde o último pós-guerra.
Temos, contudo, a queimar a consciência de nossos povos, terríveis indagações: serão os valores democráticos, que construímos, capazes de responder às questões de sofrimento, miséria, pobreza, desigualdade, exploração e violência que se integram ao nosso quotidiano?
Estão as democracias dos países ricos solidárias com as nossas causas, ou apenas preocupadas com o seu bem-estar, condenando-nos à marginalidade?
Estou convencido de que a democracia é o caminho. Ela foi a bandeira que comandou nossos povos para varrer autoritarismos, caudilhos, tiranos, ditadores. Mas não para substituí-los pela fome, pelas doenças, pelo atraso, pela dívida externa, pela recessão, pelo desemprego.
A América Latina apresenta indicativos de involução. Não é que tenhamos crescido menos do que os outros continentes. É que regredimos.
Basta dizer que, em 1988, o produto interno bruto da região se encontrava no mesmo nível de 1978. A transferência líquida de recursos para o exterior alcançou, somente em 1988, a cifra de 29 bilhões de dólares. Só o Brasil, nestes últimos cinco anos, remeteu cerca de 56 bilhões de dólares. E um Plano Marshall às avessas.
Os anos 80 registraram expansão sustentada das economias industrializadas. Era de se esperar que essa expansão impulsionasse o crescimento econômico dos países em desenvolvimento. No entanto, à nossa revelia, a alta das taxas de juros internacionais, a dramática redução dos preços das matérias-primas, o protecionismo comercial, a volatilidade das taxas de câmbio, a globalização dos mercados financeiros e a saída líquida de capitais encarregaram-se de frustrar essa expectativa.
As Nações Unidas planejaram para a década de 80, em sua estratégia de desenvolvimento, uma diminuição do fosso entre ricos e pobres. E o que aconteceu? O número dos menos desenvolvidos aumentou de 30 para 42.
Volto a perguntar: se a democracia que implantamos em todo o Continente não responder aos legítimos anseios de nossas sociedades, como evitar que seus valores sejam contestados? Não há como alegar a realização imperfeita desses valores.
Os maiores inimigos da democracia no Continente têm sido os baixos padrões sociais e a inflação que corrói nossas economias.
À falta de recursos, e oprimidos por conjuntura internacional perversa, os governantes latino-americanos não dispõem de meios para atender aos mais legítimos e elementares anseios de suas sociedades. Multiplicam-se manifestações espontâneas de revolta. Há todo um acúmulo de violência, uma carga de rebelião sublimada que pode, a qualquer momento, aflorar e se alastrar incontrolavelmente.
Não se trata mais de motivações ideológicas. O que está em jogo na América Latina não é a dicotomia entre o sistema capitalista e o socialista. Na América Latina a persistência da pobreza e o esgotamento dos modelos do desenvolvimento conduzem à superação das idedogias. Esse clima não parece ser fecundado por doutrinas, nem alimentado por desígnios revolucionários. É a revolta da ausência de perspectivas, da frustração de grandes massas carentes e desencantadas. Suas origens estão perdidas no fundo do tempo histórico.
O dilema atual não é militarismo ou populismo, mas recessão ou crescimento.
Muito se fala sobre a interdependência do mundo de hoje. Para a América Latina, porém, a interdependência somente tem mostrado a sua face negativa. Alega-se a interdependência quando se trata de eternizar uma ordem internacional que nos relega, na realidade, à dependência; onde os mais pobres estão paradoxalmente reduzidos à contingência de financiar os mais ricos; onde os fluxos de conhecimento trafegam apenas em sentido horizontal. Esta não é certamente a interdependência que almejamos.
O Mercado Comum Europeu necessitou do choque da guerra para materializar-se. No nosso caso, estamos decididos a aproveitar o choque da democracia para caminhar na direção do velho sonho de Bolivar: a edificação da irmandade política latino-americana.
Vítima de violenta cobiça colonial, a América Latina se converteu no mais genuíno cadinho de raças e culturas, estendendo em escala inédita a miscigenação das etnias e a fusão de crenças e costumes.
Para o Brasil a sorte dos nossos vizinhos é a nossa sorte.
Para nós, América Latina e Caribe, a opção pelo social é imperativo ético-econômico. Não podemos continuar a desperdiçar ingentes quantidades de talento humano por lhes ser vedado o acesso à nutrição e à instrução. Segundo a Unicef, existem atualmente no mundo 145 milhões de menores desvalidos entre 12 e 16 anos, com talvez 100 milhões desse total vivendo nas ruas entregues ao furto, à prostituição, à droga e ao assalto.
Será necessário lembrar que essa adolescência faminta e desprotegida do III Mundo é a versão contemporânea da juventude miserável que perpassa pelas páginas mais pungentes de Charles Dickens, Victor Hugo ou Dostoievski?
É preciso criar urgentemente as condições pelas quais os países em desenvolvimento retornem à sua condição natural de receptores de capitais, fazendo reverter o mais rápido possível a condição de exportadores de recursos financeiros, sob o cruel gravame da dívida externa.
A disciplina e cooperação estabelecidas pelas instituições monetárias e comerciais criadas no pós-guerra cederam lugar à predominância da autonomia nacional dos países poderosos na formulação das suas políticas macroeconômicas. Geraram-se acentuados desequilíbrios e assimetrias. Agravou-se a situação de penúria das economias em desenvolvimento. O Brasil, por exemplo, paga mais àquelas instituições do que delas recebe.
Outro grande problema é a tendência ao oligopólio do saber. Todo conhecimento se constrói por processo cumulativo que transita pela história do homem, em qualquer lugar, em qualquer tempo. O saber é universal. Deter seu potencial de mudar o bem-estar mundial, para reduzi-lo ao campo das mercadorias, da vantagem econômica, da colonização cultural, é reduzir o homem a objetivos materiais, negadores do próprio homem.
A ciência e a técnica, hoje ou amanhã, têm de ser colocadas a serviço de todo o mundo e não de poucas nações.
Outra evolução preocupante é a exploração da vulnerabilidade em que nossa dívida externa nos colocou. Os países em desenvolvimento estão sendo pressionados a seguir modelo de ajustamento que os países industrializados pouco praticam. Os orçamentos estão sendo equilibrados a altíssimos custos sociais e à custa da falência do Estado; os salários são comprimidos abaixo do nível de subsistência; as legítimas aspirações das indústrias nascentes e as necessidades de balanço de pagamentos são menosprezadas; o setor público é atrofiado mesmo nas áreas mais necessitadas de ação, como as de educação e saúde.
Ignora-se que a necessidade primordial dos países devedores é crescer, e que só através do crescimento acelerado poderão introduzir as reformas econômicas necessárias, cumprir os seus compromissos, e contribuir, como fizeram no passado, para o progresso global.
Urge compreender que não é possível crescer quando se remete para o exterior, todos os anos, cerca de um terço da poupança interna.
Não será possível operar qualquer ajustamento, enquanto nos derem para resolver uma equação que não é fechada.
Já é tempo de reconhecer que, até agora, o remédio para o problema da dívida externa tem melhorado sobretudo a saúde financeira dos credores. Para os devedores tem sido uma receita de estagnação e empobrecimento. Repito: É chegada a hora de adotar uma estratégia que parta do pressuposto da retomada do crescimento dos países devedores. Tal estratégia exigirá forte redução do estoque da dívida e da transferência bruta e líquida de recusos: para o exterior, única forma de reter a poupança necessária para financiar o desenvolvimento.
É com grande preocupação que assistimos à lentidão e apatia com que este problema vem sendo tratado e sua solução postergada.
Senhor Presidente,
Senhores Delegados,
Duas grandes questões devem igualmente ser objeto da nossa preocupação prioritária: a proteção ambiental e o combate ao tráfico e uso de drogas.
Estes temas estarão cada vez mais presentes em nossa agenda.
O primeiro é o da sobrevivência da humanidade, a morte da vida no planeta. O segundo, o da vida da morte, a antivida, a liquidar a pessoa humana, principalmente em sua fonte mais pura, que é a juventude.
Na questão do meio ambiente temos outra dimensão da interdependência entre as nações. Habitantes de um mesmo e pequeno Planeta, estamos condenados à solidariedade.
À questão ambiental nos seus aspectos planetários — mudança do clima, destruição da camada de ozônio — não pode nem deve ser discutida de uma perspectiva estreita, como se fora um problema Norte-Sul, em que os países menos desenvolvidos estivessem, por um comportamento irresponsável, afetando o equilíbrio ecológico mundial.
A realidade é outra. Cabe aos países industrializados a maior parcela na poluição ambiental. Os países em vias de desenvolvimento não podem aceitar, como base para um novo relacionamento internacional, um conceito de desenvolvimento ecologicamente sustentável que confira apenas a eles a tarefa de assegurar o equilíbrio ecológico do Planeta.
Para que esse conceito tenha validade, será indispensável estendê-lo aos países industrializados, de forma que se possa determinar também a possibilidade de sustentação, do ponto de vista ambiental, dos padrões de produção e de consumo atingidos por esses países. Será indispensável uma íntima associação de todos os países no esforço de pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias que sejam mais eficientes na utilização de recursos naturais e menos poluidoras do meio ambiente e que se definam obrigações firmes de transferência de tecnologia, a preço de custo.
A relevância que atribuímos à questão ambiental e a disposição brasileira de tratá-la de forma serena e aberta acham-se claramente refletidas em nossa disposição de sediar, em 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.
Mais do que ninguém, tem o Brasil consciência de sua exuberante, rica e extraordinária natureza. Suas florestas, sua fauna e sua flora. São um patrimônio e uma riqueza que não abdicamos de preservar. E o fizemos no passado, quando as grandes companhias colonizadoras formadas no mundo rico invadiram as regiões selvagens da África, da Ásia e da América, depredando-as brutalmente. O Brasil não as aceitou. Proibiu sua presença. Nos anos 60 o Instituto Hudson concebeu um grande lago, para inundar a Amazônia. O Brasil repeliu. Se o mundo hoje pode voltar suas vistas para a Amazônia é porque os brasileiros souberam conservá-la até agora e o farão para o futuro.
Estamos dispostos, como sempre estivemos, à cooperação. Contudo, nunca a imposições que atinjam nossa soberania.
Com o Programa Nossa Natureza, já diminuimos em um só ano as queimadas em cerca de 40%, proibimos a exportação de madeiras em tora, retiramos incentivos a projetos que se revelaram predatórios e criamos o “Instituto do Meio Ambiente” reunindo dezenas de órgãos em amplo projeto de proteção ecológica. Aproximadamente 8 milhões de hectares de território brasileiro estão hoje sob o regime de preservação permanente. Cerca de 10% do território nacional estão destinados às populações indígenas, que reúnem 200 mil índios.
O Brasil acompanha, por outra parte, com grandes preocupação, o problema do tráfico, da produção e do consumo ilícito de drogas.
Já demos um importante passo adiante em 1988, com a adoção da Convenção de Viena. As dimensões cada vez mais graves do problema recomendam agora que esta Assembleia se volte com urgência para a definição de medidas efetivas de cooperação.
O Brasil não poupará esforços no sentido de contribuir, juntamente com os países consumidores, produtores e de trânsito, para a erradicação de uma vez por todas dessa séria ameaça a nossas sociedades.
Nossa política, nesse campo, é enérgica e profilática. Há quatro anos, com o Programa Calha Norte do Amazonas, ocupamos e fiscalizamos nossas extensas fronteiras para assistir às populações locais e impedir a entrada de traficantes perseguidos de outros países. Controlamos o comércio de precursores. estamos travando luta sem trégua contra as drogas.
Este quadro nos leva a pensar na transformação qualitativa de nosso mundo.
A confrontação ideológica que condicionou os acontecimentos internacionais durante todo o século dá sinais evidentes de atenuação. A oposição irreconciliável cede lugar ao entendimento. As ideologias perdem sua carga passional à medida que os progressos da ciência e da tecnologia abrem perspectivas crescentes de bem-estar.
Seria utópico imaginar um mundo sem conflitos. Mas creio não ser insensatez pensar em mundo racional, em que a cooperação e o entendimento se substituam à confrontação e à desarmonia; em que a paz finalmente possa ser construída sobre as bases sólidas da comunhão universal de interesses, em que a democratização das relações internacionais conduza à superação da política de poder.
Diferença fundamental entre as Nações Unidas e sua predecessora, a Liga das Nações, é precisamente a consciência do direito ao desenvolvimento. Outra não é a inspiração permanente do Conselho Econômico e Social e, de modo geral, de toda a Organização. A Liga das Nações buscava — e não era pouco — uma ordem internacional. Mas a Organização das Nações Unidas aspira a mais: visa também, a Justiça internacional.
Henry Adams afirmou que “a chamada política prática consiste em ignorar fatos”. Receio que essa observação esteja sendo aplicada à mentalidade dominante do quadro presente. Necessitamos do arrojo de novas concepções, do pioneirismo de novas abordagens, da coragem de novos experimentos institucionais. Oxalá os anos noventa, e as Nações Unidas, saibam pensar os problemas que assaltam a Humanidade às vésperas do ano 2.000. O nosso século não envelheceu em vão.
Alguns espíritos tentam caracterizá-lo como um “fim da História”. Estaria o mundo, e o mundo rico em particular, destinado a uma longa inércia histórica Feita de prazeres prosaicos e satisfações medíocres. O preço do afastamento da violência seria a letargia cultural, a preguiça política de uma era sem convulsões, mas também sem ideais. Essa formulação nega a experiência humana.
Países novos, temos a sensação de ingressar no limiar de uma época de amplas transformações. O processo histórico está em plena florescência. Uma humanidade liberta dos antagonismos, das ameaças e do medo, abrindo fronteiras para um novo homem, que pode realizar o objetivo da criação, concebido à semelhança de Deus.
Faz dois anos, por honrosa eleição desta Assembleia, o Brasil — após praticamente duas décadas de afastamento — passou a integrar o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Vêm sendo dois anos de intensa participação nos trabalhos do Conselho.
A experiência nos leva a algumas reflexões. Para que as Nações Unidas, através do Conselho de Segurança, possam desempenhar o papel de relevo que dela se espera no campo da paz e da segurança internacional, impõem-se algumas alterações na estrutura e nos procedimentos do próprio Conselho. Como dar solução a questões importantes relacionadas, por exemplo, com a instituição de operações de paz e com seu financiamento, sem um reexame da adequação da própria composição do Conselho?
Este é um problema que merece ser examinado não apenas sob o ângulo tradicional da adequação entre a quantidade de membros não-permanentes e o aumento verificado no número de Estados-Membros das Nações Unidas, mas sobretudo à luz das mudanças nas relações de poder ocorridas no mundo desde a criação da Organização. É chegado o tempo de uma reavaliação destinada a permitir que a multipolaridade atual se veja refletida no Conselho de Segurança, a fim de habilitá-lo a melhor exercer suas responsabilidades. Poderíamos contemplar uma categoria adicional de membros permanentes, sem o privilégio do veto.
As novas circunstâncias internacionais — em particular a atenuação da confrontação política e ideológica — certamente abrem oportunidades a uma utilização mais efetiva da ONU. Mas isto não deve significar um retorno puro e simples a um excessivo predomínio das superpotências sobre a Organização. A ONU seguramente não pode dispensar o consenso entre as superpotências como base para uma atuação eficaz. Em muitos casos, porém, esse consenso não será bastante. A contribuição de outros Estados-Membros pode ser necessária e até indispensável para que a Organização possa agir de forma efetiva e responsável, como uma verdadeira instituição internacional.
É chegado o momento do desenvolvimento e da Justiça como fundamentos da paz e da estabilidade mundiais.
Esta Organização nasceu da luta contra o totalitarismo e representa o que de mais aperfeiçoado se alcançou em termos de convivência democrática entre os Estados.
Devemos, pois, aproveitar as oportunidades abertas com a desmobilização ideológica para dedicarmo-nos com renovado ímpeto às grandes causas da cooperação internacional.
É preciso ousar “Se ousares, ousa”, diz Fernando Pessoa.
Proponho que as Nações Unidas se comprometam em processo de diálogo amplo e total sobre os grandes problemas deste final de século, a fim, de que ingressemos no século XXI com a consciência dos nossos desafios e das nossas potencialidades.
— do desarmamento ao meio ambiente;
— do banimento das armas químicas às transferências de tecnologia;
— da democracia como instrumento da estabilidade e do desenvolvimento aos direitos civis e liberdades políticas;
— das reformas econômicas ao comércio internacional;
— da regionalização da economia mundial à novas faces da interdependência;
— da conquista do espaço exterior à erradicação da pobreza.
Todos são temas que convidam ao debate. Precisamos ir à origem dos problemas; entendê-los em toda a sua complexidade; enfrentar, sem vacilações, as suas consequências; tomar as decisões que se impuserem, e remover os fatores de desestabilização e de desigualdades.
Atuemos antes que seja tarde. Antes que os sacrifícios e as frustrações se cristalizem em revoltas. Antes que, em sua autocomplacência, os satisfeitos se tornem insensíveis às justas demandas dos que pouco ou nada têm. Antes que os espaços de negociação se vejam reduzidos pelo temor recíproco e pela confrontação intransitiva.
Nenhum país ou grupo de países, por maior que seja o seu poderio, pode pretender resolver isoladamente a crise.
De espírito aberto, sem reservas mentais, ressentimentos ou motivações ocultas, vamos trabalhar.
Talvez não se repita momento histórico em que a desmobilização ideológica ofereça condições tão favoráveis.
Sejamos capazes de transformar a realidade mediante o poder criativo das ideias. Convocamos todos para esta tarefa. E, em primeiro lugar, as grandes potências.
Não é tarde para resgatar o sonho de paz e justiça das gerações que nos precederam.
Ao abrir esta quadragésima-quarta sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, desejo deixar uma mensagem de otimismo e determinação, a mesma que anima os brasileiros que se tornaram sujeitos de seu próprio destino pela democracia que souberam construir.
É por acreditar que o Brasil consolida nesta América uma democracia nova, vencendo tantos desafios.
Pela mesma razão, os brasileiros se expressam pela voz do seu Presidente, para sonhar o sonho de paz e de justiça, exorcizando o medo e levantando altares à esperança.
Político e intelectual, jamais considerei a poesia uma convidada intrusa neste plenário. com ela que me despeço na companhia dos versos de Luís de Camões, o universal poeta da língua portuguesa:
“Depois de procelosa tempestade
Noturna sombra e sibilante vento
Traz a manhã serena claridade,
Esperanca de porto e salvamento”.