Saraminda
Para
Álvaro Pacheco
Joaquim Campelo
Napoleão Sabóia
Pedro Paulo de Sena Madureira
da família dos ultraboasgentes
“La Guyane est une terre où la passion est souvent présente.”
Patrice Moureau-Lascaux
“São Tomás, mergulhado na escrita de sua Suma Teológica, ouviu um frade chegar à janela e dizer: ‘Olha, um boi a voar…’ Ele levantou-se e foi à janela ver.”
Antonio Alçada Baptista
1
La couleur[1]
Caiena é triste. Uma brisa leve, quase imperceptível, sopra na boca do CanalLaussat. Silenciosos adormecem os edifícios símbolos do poder da metrópole francesa: a Alfândega e o Palácio dos Governadores. Em frente, no meio da praça, uma fonte de ferro, vinda de Paris, aberta como uma flor minando águas, lembra Tardy de Montravel, que canalizou as nascentes do lago Rorota. E junto ao mar, ao lado da Ponta das Amendoeiras, o presídio sopra no silêncio um murmúrio negro, que vem dos cárceres, sons de sofrimento e morte. São destinos que se consomementre o rancor e a solidão, em masmorras, ferros, febres e torturas.
As ruas são sinuosas, sem traçado, com poças de água estagnada, mosquitos e vermes fermentando o lixo que se espalha por toda parte. A cidade, pequena e abandonada, tem casas de tábuas cobertas de palha, madeira e zinco. Tudo cheira a decadência. As histórias que se contam são de condenados ou de assombrações nas matas, onde os pretos vão buscar alimento. Vivem do extrativismo e das poucas indústrias dos alambiques de rum.
O casarão da Oficina dos Mineiros Guianenses e do Serviço das Minas está abandonado e as águas que batem no monótono rebojo das marés vão derrubando seus muros. A noite não consegue esconder o desmoronar da vida. O ouro desapareceu. E a Guiana, que era só o ouro desde sua descoberta, em 1854? Os tempos bons estão distantes e a lembrança deles remanesce apenas nos relatos da euforia das descobertas, quando se acharam rios com leitos de areias amarelas, ou do fantástico espoucar dos preços do ouro, após a guerra de 1870. As esperanças quase não existem e os únicos alentos, sempre difusos, são os acenos frágeis da colonização agrícola e da nova política indígena. Nem boatos e sonhos de novas riquezas minerais circulam na cidade tonteada pelo desânimo. Tudo é sombrio. A Guiana vegeta na miséria da canela e dos paus-de-tinta.
A escuridão que cobre as ruas esconde o desencanto. Não há noites de alegria. As portas dos velhos bares, fechados há tanto tempo, estão com as cores desbotadas, as fechaduras enferrujadas, caindo e quebrando como cerca velha. Sumiram as calçadas onde as mulheres circulavam. Naquele mundo de silêncio, um som solitário e renitente, cheio de melancolia e saudade, vem do Chez Martin, onde o velho Louis, num piano de cordas partidas, de cauda rachada, salvo de um navio que naufragou na barra, toca uma antiga canção da Bretanha.
Os aventureiros que fizeram a glória da colônia emigraram para fugir dos tempos ruins. Restam os pretos, descendentes de escravos da Martinica e de Guadalupe, ou vindos dos quilombos do Maroni: bonis, saramacas[2], os negros da floresta. Mesmo as lembranças sobre os enfrentamentos da descoberta e da conquista, época de invasões, sítios e saques, foram sendo esquecidas. Ninguém lembra a velha Guiana, tocaia dos piratas que cruzavam o mar das Antilhas e ali se escondiam, assaltando caravelas bojadas de ouro, cobre e prata saqueados dos impérios destruídos por Cortês e Pizarro, que mandavam os despojos para terras de Espanha, onde o reino nadava em riquezas e Deus recebia sua quota nas talhas douradas dos altares da Catedral de Sevilha.
Não escapavam também da pilhagem os galeões portugueses carregados de açúcar do Brasil, madeiras de tintas, peles de onças, gatos-do-mato e papagaios. Os corsários dos mares quentes buscavam Caiena e lá mantinham feitorias. Não eram só franceses de Dieppe, Saint-Malo e Cancale. Eram também ingleses e holandeses que nos porões traziam escravos chineses, mandingas, bantos, jejes e congos para os engenhos nascentes ou para o trabalho braçal de todas as serventias. Toda essa gente deixou marcas que se misturaram no forte sangue negro que dominou, resistiu e domesticou a todos.
Clément Tamba era um deles. Moreno, pele lisa, tinha os cabelos repartidos de lado, esticados com brilhantina. Era alto, rosto largo, olhos pequenos, lábios finos, nariz anguloso, mãos alongadas, ombros fortes, peito saliente como se estivesse sempre com os pulmões cheios. O corpo musculoso dava-lhe uma imagem de solidez. Vestia-se limpo, roupas cuidadas, e seu semblante era triste.
Sempre se envolveu com negócios dos franceses, fornecendo vinhos e carnes de caça ao presídio, ao Palácio do Governo e às autoridades coloniais. Crescera na miséria de um casebre de tábuas, junto com as irmãs, a mãe e o padrasto. Menino, vendia cocadas de mel de cana em pregões de rua e, jovem, começou a vida de biscateiro, acumulou algum dinheiro, abriu uma futrica de frutas, depois de aguardente, mais adiante de tecidos e, finalmente, loja de mercadorias sortidas que incluíam produtos comprados na França, na Inglaterra e em Portugal, adquiridos dos flibusteiros que freqüentavam e negociavam desde as costas do Orinoco até o Amazonas.
Mas Clément Tamba sofria da cobiça do ouro, sabendo que algum dia se jogaria nas aventuras da riqueza, das mulheres de perfume e de viajar.
“Tenho saudades das avenidas de Paris, onde nunca estive”, costumava pensar na evocação do seu pai bretão perdido para sempre. Todas as vezes que algum freguês europeu visitava sua loja, pedia: “Conte-me histórias de Paris”. E ficava ouvindo, olhos perdidos longe, a descrição das luzes de gás, dos cabriolés, dos espetáculos de cancã e das mulheres que apanhavam fregueses na Rue Saint-Denis.
Seus antigos estavam na memória do sofrimento da imigração africana. A história familiar remontava à tragédia dos navios negreiros, na lembrança distante de uma avó, preta escrava do Daomé, princesa de um reino vencido e vendida aos mercadores que freqüentavam o Forte de São Jorge, na Costa da Mina, na África. Em Caiena, foi comprada por Jacob Biarritz, judeu sefardim, que com ela se amasiou depois de perder todas as suas crenças religiosas e mergulhar nos desejos que o atormentavam na solidão dos vapores quentes do setentrião. Dessa linha perdida vinha sua mãe, Possidônia Biarritz, judia preta que acabou sua flor de menina num romance de violências, nas mãos de um soldado do Fort Cépérou, um certo Augustin Ruppert, francês desregrado e bruto, punido, por mau comportamento, com servir nas colônias. Deu-se a beber e passava a noite cambaleando pela Rue du Port, onde urinava pelas esquinas e gritava palavrões em créole. Clément Tamba viveu a infância entre as lágrimas da mãe e as desordens do pai, ouvindo os gritos dele na velhice da noite, tremendo de medo de suas brutalidades. Até que um dia ele desapareceu.
— Onde está meu pai, Augustin Ruppert, que não chega mais bêbado pelas madrugadas?
— Viajou para a França, fugiu, foi embora atrás da mulher. Deus o faça morrer no mar — respondeu a mãe.
Possidônia Biarritz, ainda jovem, logo se casou com um egresso da prisão do Maroni, René d’Orville, onde tinha cumprido pena de vinte anos por ter matado a mulher, Edith Mourreau, bailarina de cancã. Um dia, no mercado Les Halles, em Paris, afogado de ciúmes, asfixiou-a com um lençol de rendas encharcado de lavanda. Depois se entregou à polícia, jurando amor eterno à sua memória.
Calado e triste, foi um bom companheiro para Possidônia e com ela teve três filhas, Marie, Mazi e Marthe, que morreu cedo. As duas mais velhas foram para a Martinica e delas só restou, alguns anos depois, a notícia de Mazi, casada com um inglês plantador de cana que vivia em Marigot.
Foi numa noite desses anos de solidão e decadência que a cabeça de Clément Tamba ficou transtornada quando viu brilhar uma luz de ouro no relato que lhe fez o brasileiro Firmino Amapá sobre descobertas nas cabeceiras do rio Calçoene, na região do Contestado, território disputado pelo Brasil e pela França.
Clément não acreditou, acostumado a tantos anúncios desses achados que jamais se confirmavam e que aumentavam os desenganos daqueles tempos.
Firmino deu-lhe detalhes sobre a rota das cachoeiras que tinham de ser vencidas até as nascentes de riachos que vinham do monte Salomoganha, situado num platô aurífero, de onde desciam córregos de águas douradas e de pepitas, derramando ouro pelas bacias do Calçoene, do Carnot, do Cunani e do Caciporé. Falou de aventuras, de velhos pioneiros farejadores, dos veios embrenhados na floresta que já estavam em mineração. Revelou que o segredo não era somente seu, mas de muitos garimpeiros e faiscadores da região, e a notícia corria como fogo no campo, desde as margens do Araguari até Saint-Georges, no Oiapoque. Os caminhos eram freqüentados por andantes misteriosos e estranhos que escondiam sua ambição sem revelar para onde iam, mas todos sabiam que estavam na caça de nova estrada do ouro.
— Clément Tamba, ouro não se esconde, se mostra e fica na cara da gente. Eu sonhei com ele, dormi na beira do córrego que deságua no rio Carnote ele apareceu. Minhas ventas estavam inchadas de tanto farejar. Olhei para a água limpa e ele brilhava no fundo, perto das montanhas. Tem tanto ouro nas grotas que a gente está juntando com as mãos.
Para despertar a curiosidade de Tamba, encheu-se de suspicácia, começou a falar palavras dúbias que sugeriam coisas ocultas e perguntou-lhe, como se não quisesse mais alargar revelações, enquanto enrolava com cuspe seu cigarro de palha:
— Você quer ver?
— Ver o quê, Firmino?
— A lei de São Tomé.
Clément Tamba sentiu que alguma coisa definitiva estava para lhe acontecer. Relembrou os sonhos indecifráveis que andava tendo de dragões dourados, princesas encantadas, florestas de montanhas que brilhavam, coisas de menino e de aventureiro.
— Não me tente falando dessas visões — Tamba pediu.
Firmino, então, devagar, a voz baixa, como se falasse num esconderijo, olhou para um lado e para o outro, mergulhou num longo silêncio e abriu o pensamento:
— Clément Tamba, sua sorte está nas suas mãos. Nem sei por que resolvi relatar estes mistérios. Vim a Caiena em busca de um companheiro. Para arrancar ouro é preciso gente e recursos. Ouro não gosta de solidão.
Firmino aumentou a sedução com um pedido:
— Quero a confiança de entrar em sua casa, só nós dois trancados no seu quarto, sem testemunhas, com sua palavra de guardar só para você o que vou lhe mostrar e que não mostrei a ninguém.
— Firmino — disse Tamba, cheio de curiosidade —, venha, faça sua revelação.
Os dois passaram pela cancela que ficava no fim do balcão, bem junto à parede, caminharam por dentro da loja, cruzando o compartimento de trás, que dava para um corredor comprido, e se dirigiram para o quarto de dormir.
— Aqui estamos, Firmino.
— Feche a porta com chave.
Clément Tamba obedeceu. Os dois ficaram em pé, junto à janela, ao lado de uma cama desarrumada, marca de uma casa sem mulher. Olharam-se com um silêncio de indagação.
— E agora, Firmino? Fale o que tem a falar.
Firmino não teve pressa. Calmo, sem vacilações, devagar, foi desdobrando a conversa, precedida por um silêncio tático, e tossiu seco antes de arrematar:
— Esta é uma prova de grande confiança.
Em seguida, desabotoou o cinto e tirou a calça. Tamba não entendeu o que estava acontecendo e achou vulgar a figura que surgiu. Por cima da ceroula, Firmino trazia na cintura, amarrada na barriga, uma peça de sola larga com dois compartimentos, ambos do tamanho de um bolso de paletó, dependurados, um ao lado do outro, com abas presas por colchetes. Num ritual cuidadoso e pausado, desatou as duas fivelas, retirou e depositou a estranha cinta em cima da cama. De dentro da peça sacou dois vidros transparentes, cheios de uma areia amarelada. Pegou-os, um em cada mão, e levantou-os diante da claridade forte que entrava pela janela.
— Você sabe o que é isto?
— Deixe-me ver, Firmino. Entregue-me. Quero segurá-los nas mãos.
— Não, nada de pegar, olhe apenas, veja — sacudiu os vidros e disse: — Veja de novo, veja bem, que é coisa de mistério revelado!
— Entregue-me, deixe-me vê-los de perto — pediu Tamba.
— Não, olhe apenas. É coisa de ver, não é de tocar.
Clément olhou, contemplou os dois objetos com mais atenção e fixou os olhos na luz amarela que foi crescendo, brilhante como uma estrela, ofuscante como o sol.
— Sabe o que é? — retornou Firmino, de pé, os lábios encostados junto ao ouvido de Clément Tamba, e soletrou cada sílaba: — La cou… leur.
Clément Tamba parou o olhar entre as mãos de Firmino. Os dois vidros ali, suspensos. Aquelas palavras não entraram em seus ouvidos, ficaram zoando espetadas, como se fossem arrombar-lhe os tímpanos. Clément Tamba foi invadido por um calor imenso, cheio de suores. Tinha os olhos vidrados de cobiça.
— Onde você encontrou esse ouro?
— Venha comigo — retrucou Firmino — que eu lhe mostro onde correm os rios de ouro, onde as bateias não apuram menos de cem gramas, as areias são amarelas, tem ouro em todo lugar.
Clément viu seu destino. Estava vencido. Isso teria de acontecer algum dia. Em algum momento da sua vida ia encontrar o caminho da aventura.
— É la couleur! É la couleur! — falou, para dentro de si mesmo, mais baixo do que a voz que acabava de perder, e acrescentou: — Tem mesmo ouro do lado do Contestado do Brasil. É um novo Approuague[3]!
2
A navalha de ouro
Clément Tamba chegou solitário e delirante ao fim da vida, um esqueleto do garimpo de Calçoene. Os anos o haviam transformado.
— É difícil recordar o pé de jasmim-estrela branco que brilhava como lua de agosto e cheirava, junto com a noite e a brisa, perfume que invadia meu quarto, sempre de janelas abertas — disse Clément ao responder ao que Lucy lhe pedia, quando o viu trôpego a buscar o jarro de água.
— Clément, o pé de jasmim-estrela já morreu, secou, sumiu no tempo.
— Morreu também a luz dos meus olhos. Foi esse cheiro que fez você me visitar, vir deitar no meu quarto perfumado. Lembra, quando eu lhe disse: “Lucy você está só, eu estou só, você continua bela, como nos anos em que sua beleza encantava os bailes de Caiena. Vamos esperar a morte juntos.” E convidei você a caminhar pelo corredor longo, as tábuas cedendo aos nossos passos pesados. Abri a porta, as janelas estavam escancaradas e o cheiro de jasmim enchia aquela cama de alfombras, pedindo corpo de mulher.
— Clément, o perfume do jasmim-estrela me lembra, não sei por quê, as poucas vezes em que visitei sua casa no garimpo, aquelas árvores de verdes profundos, as chuvas de fevereiro.
— Não me pergunte por ninguém. Todos já morreram. Acabaram-se os anéis, as plantas, o tempo. Tudo morreu. Estamos velhos e despedaçados.
A casa de Tamba era uma soturna edificação de madeira consumida pelos anos, um pardieiro destroçado na Rue d’Estren. A solidão invadia os cômodos: uma sala de móveis velhos e gastos, a mesa de sulcos afastando as tábuas ressequidas, as cadeiras com os assentos de palhinha rasgados e uma cristaleira sem copos nem taças; no quarto ao lado, uma cama suja, o colchão cheirando a mijo, o urinol de ágata com os beirais feridos pelo baque dos anos.
Nesse fim de tarde Clément, tateando a própria sombra, caminhou para o corredor que levava aos seus aposentos, observado por Raimunda, brasileira velha, viúva de um vendedor de cana, ali vegetando como empregada havia mais de vinte anos.
— Seu Clément, a morte é uma coisa difícil. Eu e o senhor a esperamos faz tempo — falava com voz vacilante.
Nessa tarde, diferente das outras, Clément chamou-a e pediu que trouxesse a chave, escondida num mofado saco debaixo do colchão. Pediu-lhe também que desse corda na caixa de música que tocava o Minueto, de Bach, aprisionado aos pequenos pinos que levantavam as alças de flandres, de onde escorria o som de um plim que tinha o ritmo do tempo. Essa era a única música ouvida na casa. O velho piano, que pertencera a Louis e que ele comprara como relíquia, era só poeira e teias, no seu silêncio guardando a sala. Tudo se perdera. Clément Tamba era o trapo da solidão que ele mesmo construíra ao longo dos anos.
— Meu destino foi buscar o meu destino — dizia, olhos cerrados. — Lucy, recebe a chave de Raimunda e vamos abrir meu cofre.
Ainda era o velho cofre de sua loja, para o qual não teve comprador quando a liquidou. Era um objeto de duas partes. A de cima tinha duas colunas trabalhadas que sustentavam as engrenagens pesadas onde repousavam as dobradiças. A outra era decorada com um desenho quadrangular, bordado em cores tênues de amarelo e verde-claro, com as formas desdobradas em alças que se enrolavam numa composição de flores. Simetricamente colocados, o segredo, com sua roda de números, e, embaixo, o bocal da fechadura. Ao lado, solitária, a maçaneta grande que manejava as quatro barras roliças de segurança. A parte de baixo era uma caixa fechada, sem outra função senão ser a base do verdadeiro cofre que estava em cima. A marca gravada na ruela do segredo: Coffres Smith: Sécurité Totale. Pesava duzentos quilos. Era a memória amarga daqueles anos.
Lucy também guardava recordações. Ela passou a morar com Clément quando ele voltou para Caiena depois da destruição do garimpo. Não buscara a aventura do ouro. Ficara ali, com o filho, que morreu na Argélia. O marido foi assassinado numa rixa, no cais de desembarque, quando, fiscal do governo, multava um contrabandista de rum. Solitária, presa às marcas de sua beleza de moça, aceitou viver com Clément, e juntos estavam, sem saber a conta dos anos.
“Por que Clément, nesta tarde, quer abrir o cofre, coisa de que nunca falou?” — perguntou-se. Clément nunca dissera o que nele guardava. Seu dinheiro ficava na gaveta do criado-mudo, com o saco de pepitas de ouro, as jóias e as apólices do Tesouro francês que ele comprara e cujos rendimentos recebia pela agência do Banque de la Guyane.
Clément queria ver-se livre do peso daquele segredo. Até hoje não sabia qual teria sido a decisão de Cleto Bonfim quando uma noite, no meio de um temporal imenso, as goteiras mostrando pela casa o péssimo estado do telhado, pedira-lhe, entre soluços:
— Clément, guarde este embrulho. É uma relíquia que me custou a alma. A você tenho confiança de entregá-la. Nada revele sobre ela. Peça que seja colocada no seu caixão. É uma jóia eterna cuja guarda só é dada a um amigo — e acrescentara: — Clément, acabo de saber que a França perdeu estas terras que agora são do Brasil. Foi uma decisão da Suíça. Amanhã, só vai haver uma bandeira, a do Brasil. Você é francês, eles vão querer expulsá-lo.
O soco daquela notícia, de repente, podia ser o anúncio da morte ou do saque. O armazém de Clément Tamba, o maior de Saint-Laurent, era francês. Desde o nome France deCalsoène, com a bandeira azul, branca e vermelha tremulando no mastro. Afinal, ele era francês da Guiana e aliado dos rebeldes que enfrentavam Veiga Cabral, o guerrilheiro das selvas do Contestado.
— Bonfim, é uma notícia ou é ordem de viajar?
— Não, Clément. Eu lhe darei proteção. Aqui ninguém lhe faz nenhum agravo. Quero apenas entregar-lhe este objeto, que é uma parte de minha vida. Não consigo que durma comigo mais uma noite. É meu inferno. É uma desgraça que quero afastar. Não posso estar com ele mais um dia. É uma obsessão e um martírio. Me dói na consciência, mas é uma dúvida que quero longe.
Clément Tamba voltou ao quarto.
— Lucy, você que tem olhos, veja entre minhas coisas o papel que tem o número do segredo do cofre.
Ela abriu o saco onde ele guardava papéis velhos. Dentro, um impresso amarelo. Coffre-fort. Segredo do mesmo pertencente a Clément Tamba, cidade de Caiena. Nº 11 728. Duas voltas para a direita até o zero. Continue, pare no 20. Uma volta à esquerda, pare no zero. Continue até 71. Volte e pare no 14. Introduza a chave, dê duas voltas na fechadura e torça a maçaneta para abrir.
— Lucy, comece a desvendar o verdadeiro mistério deste cofre. Siga as instruções.
Lucy fez as operações recomendadas e tomou-se de emoção e curiosidade. Clément pensava no instante em que conhecera Bonfim, no CaféTour d’Argent, onde se faziam leilões das mulheres que aceitavam a aventura e o caminho do garimpo. Lucy, mãos trêmulas, inquieta, com a emoção de quem lidava com o desconhecido, abriu o cofre. O compartimento de cima estava vazio. As gavetinhas de aço entreabertas. Ao lado delas, no fundo, quando pôs as mãos, tateando com os dedos, encontrou um mofento pacote. Retirou-o.
— Clément, é esse troço aqui que você está procurando?
Era um embrulho de veludo desbotado com um objeto dentro.
— Abra, desenrole.
Lucy desdobrou o pequeno embrulho em cima da cama. O tecido estava velho, tomado de mofo e de caruncho. Esticou-lhe as pontas e deixou exposto o segredo.
Era uma navalha de ouro, a lâmina mais fina do que papel. Brilhava como se o tempo não tivesse passado. O ouro polido faiscava na penumbra da luz do quarto. Lucy tocou a navalha e abriu-a. O cabo tinha incrustadas, nos dois lados, na parte que guardava a lâmina, uma dúzia de diamantes e, no centro, uma esmeralda, com um olho-de-gato refulgindo. Todas as pedras se acendiam ao mesmo tempo.
Clément pediu para tocar a navalha. Seus olhos, como um milagre do pensamento, recuperaram a visão e ele pôde reconhecer a mão de Cleto Bonfim segurando o cabo. Era uma jóia de beleza misteriosa, trabalhada em sulcos com desenhos de pássaros, curvas desdobradas em fundo de sereias. Na ponta, quase imperceptível, um perfil de mulher.
Seu olhar distante pôde ver, na sua beleza créole[4], um corpo, com seus cães, seu perfume, seu sortilégio.
— Lucy, guarda de novo essa navalha. Ela tem uma história de muitos amores.
3
Um riacho amarelo
Clément Tamba voltou a Caiena depois de seis meses embrenhado nas selvas da bacia do rio Calçoene e de ter subido as sete cachoeiras que serviam de escada para o rio descer e chegar ao mar. Era um rio de águas cristalinas que vinha do platô das Guianas e caía em degraus, atravessando densas florestas, savanas, pântanos, campos, contornando as elevações, buscando seu leito, aqui e ali recebendo afluentes, pequenos riachos, águas represadas das chuvas e outros rios maiores, o Carnot o maior deles. Desaguava no oceano, numa boca larga de areia e lama, fazendo baixios e alagados.
Acertara com Firmino avaliar o garimpo, voltar a Caiena e contratar homens para a lavra. O trato era organizar uma sociedade para explorar o garimpo, o que não podia ser feito sem arregimentar braços. Naquele mundão de mato, o ouro se escondia embaixo das montanhas e fugia escondido nas nascentes que escorriam para todos os lados. A população do território pertencente ao Brasil era muito pequena e a do francês, menor ainda. Mesmo a notícia que ia aos poucos caminhando até Belém do Pará não mobilizara senão velhos garimpeiros e antigos aventureiros que, nas terras de Roraima e Maracaçumé, dedicavam-se à mineração em decadentes minas, quase esgotadas. Dos que iam aos garimpos, como nas grandes navegações, poucos voltavam. As doenças, a selva, as lutas com os índios e o isolamento dizimavam os grupos.
“Garimpeiros são os maiores sofredores que Deus já botou no mundo. Vivem de mentira, dizendo que acharam ouro”, falava Firmino e acrescentava: “É gente que não sabe fazer nada, desencantados da lavoura, ou levados pela sorte, depois de famílias desfeitas, fugas ou crimes cometidos. Freira e santo não vêm tirar ouro”. Depois, quando ali já estavam, dia e noite com os pés dentro da água, as pernas inchavam, os mosquitos picavam e abriam feridas, e vinham as doenças dos ossos, os catarros, o não poder parar e a convivência com o medo, a desgraça, a violência e a morte. Era um sofrimento que não passava. Para esquecê-lo, só a cachaça e o rum, o sonho de mulheres e o cantarolar. Os homens dali não sabiam mais rezar.
Tamba, que nunca estivera na varação, quando chegou perto do primeiro garimpo, que depois veio a ser o do Limão, encontrou uma porteira de paus cruzados vedando o acesso. Era guardada por um homem de uma perna dura. Para facilitar o andar segurava com a mão esquerda o joelho. A direita trazia um rifle. Tinha olhar sombrio e determinado.
— Para onde pensam que estão indo os senhores? — perguntou o vigia.
— Viemos ver a garimpagem, pois fui eu quem descobriu este ouro — retrucou Firmino.
— Mas este garimpo tem dono, é de Cleto Bonfim, e aqui só se entra com sua ordem.
E com um gesto que devia ser muito constante, tal a naturalidade com que o executou, levantou a arma como se quisesse dizer que falava para ser obedecido.
— Quem é Cleto Bonfim? — perguntou Firmino.
— É meu patrão. Vim com ele, empregado dele, e sou o vigia da porteira.
— Quando ele chegou?
— Há seis meses. Viemos do Chiqueirão, lá no Pará.
— Quantos vocês são?
— Uns cinqüenta.
— E onde está o Seu Bonfim?
— No barracão.
Quero falar com ele.
— Não é fácil. É homem que só recebe conhecido e avisado.
— Vá lá, diz que é Firmino Amapá, ele deve saber minha fama.
O vigia ficou bem calmo. Olhou para cima. Deu um espaço para falar e disse:
— Espere um pouco.
O homem manobrou o rifle, segurou o ferrolho, levou-o para trás e para frente, meteu a bala na agulha, recolheu o dispositivo de armar e parou, detido pelos gritos de Firmino e Tamba.
— Não atire. Nossa conversa é de paz. Não faça isso. Não viemos para morrer nem para matar!
O homem tranqüilizou-os:
— Não vou matar ninguém. Vou atirar para avisar ao patrão que tem gente por aqui. É o nosso sinal de alerta. Eles virão logo ver o que é. Os senhores fiquem sem receio, aguardem e logo virão. O que não podem é nem sonhar em passar…
O tiro ecoou na solidão da floresta e, para Firmino e Clément, parecia som de fuzilamento.
Meia hora depois surgiram do mato cinco homens armados de rifles, por trás da porteira, na retaguarda dos visitantes. À frente deles, o único que portava revólver, uma figura magra, de barba rala com barbicha. De estatura mediana, olhava sempre para baixo, falava sem empatia, frágil de rosto e corpo, cabelos raspados em cuia, passos largos, um pé levemente torcido para dentro. Não inspirava medo, mas desconfiança.
— Seu Cleto, aqui estão estes senhores com uma conversa de querer visitar o garimpo. Falei que só entravam com sua ordem.
— E o que eles disseram? — perguntou, dirigindo-se ao seu empregado e ignorando os visitantes.
— Nada.
— Eu sou Firmino Amapá. Fui eu quem descobriu ouro nesta região. Todos sabem disso, vim com meu sócio Clément. Esses três homens que nos acompanham são de nosso trato e não estamos para brigar com ninguém. Eu sei que aqui tem lugar para todo mundo.
— Quem é mesmo o senhor? — perguntou Cleto, e repetiu: — É o Firmino?
— Sim, sou Firmino. Se não fosse, quem é que saberia como chegar a este lugar? — E acrescentou, como se conhecesse Cleto: — Olhe, Cleto, você chegou primeiro, mas quero lhe dizer que descobrir este veio me custou demais.
— É claro que eu sei que foi você quem descobriu o ouro no Calçoene, aqui só se conta essa história. Todo garimpeiro daqui sabe disso. Nosso ouro desapareceu de todo lado, no Pará, e ao que eu sei também no Approuague, e veio se esconder nestas bandas. Fique tranqüilo, Firmino, o que falta aqui é gente. Tem ouro demais. João está aqui para não deixar entrar bandido nem forasteiro ruim. Você sabe como garimpo chama cabra ordinário. Mas você tem direito e minha amizade. Se quiser.
E Cleto convidou-os a irem ao barracão. Deu-lhes comida e depois mostrou o garimpo. Eram uns cinqüenta homens na bateia, incluindo os vigias e o capataz, Celestino Gouveia.
*
Quantos anos se passaram desde aquela manhã? Agora, Clément Tamba vegetava, na solidão das lembranças, no velho casarão ao lado de Lucy. A noite avançava e os olhos não fechavam. Há mais de cem anos ele esperava morrer. Todas as coisas do seu tempo tinham desaparecido. Só restavam as lembranças amargas e o fantasma de Cleto Bonfim, que o visitava e vinha levantar na memória esburacada sua outra vida, a mais forte de todas, a que vivera nos garimpos do rio Calçoene.
“Cheguei. Estou aqui, olhe-me, Clément.”
— Cleto Bonfim, fiquei com receio de você naquele dia. Você não me inspirou confiança. Sua cara disfarçada me dizia que de você se podia esperar uma cilada.
“Não, Clément”, respondeu Cleto. “Nunca fui homem de matar veado em espera. Eu sabia que ali tinha ouro para todo mundo, quanto mais gente garimpasse, mais eu tinha para comprar. Ninguém podia fugir de mim. Só eu tinha os aviamentos, a comida, as ferramentas, o remédio e a força dos meus homens. Firmino descobriu o ouro, mas eu fiz o caminho com terçado. Eu tinha o domínio da estrada. Também, como garimpeiro, tinha respeito pela fama de Firmino, homem de ferro, descobridor do ouro no Calçoene, e este tem mistérios. Pensei logo que, se ele voltou, era porque o ouro o havia chamado. Nos garimpos, a gente aprende a sentir as mensagens e o desejo do ouro. Tudo tem seu sentido. Quando se contraria a vontade do ouro, ele foge e acaba. Eu sabia que o ouro do Calçoene estava chamando Firmino. De você, não; eu não gostei de sua cara, achei que você era aventureiro explorador. Não tinha nada conosco, não era garimpeiro. Você tinha o rosto fino, jeito de cabra esperto. Mas isso tudo passou. Nos tornamos os melhores amigos e passamos a vida juntos, no mesmo sofrimento.”
E disparou a falar:
“Firmino não pôde tirar o ouro que descobriu porque este não quis. Assim é o ouro; chamou Firmino, mas matou Firmino. Aqueles seis meses que eu e você passamos juntos fez nossa amizade, a maior de dois homens. Clément, você me ensinou créole, me convidou a visitar Caiena. Eu lhe indiquei o barranco do Limão. Você não entendia nada de ouro. Eu lhe expliquei, e você, muito esperto, aprendeu tudo. Foi lá que você enricou. Nunca disputei nada com você. Pouco tempo convivi com Firmino, ele foi irmão de aventura e companheiro. Homem sério, sem falha.”
— Senti muito a morte de Firmino — disse Clément.
“Eu também. Mas sempre respeitei a vontade do ouro. Nunca pensei que ela pudesse ser contrariada. O ouro para mim sempre foi um rei encantado, com todos os poderes e vinganças. Ele é mau. Ele se vingou do Firmino. Ouro tem poder de deus. Ele faz a alegria, mas também faz a desgraça. Só ele sabe por que se revelou ao Firmino e depois o matou. Aquela febre que ele pegou, coisa de rapidez que eu nunca vi, em três dias estava liquidado. Vomitando sangue. Mas, antes de morrer, pediu desesperado para ser enterrado no topo da montanha Salomoganha, em pé, coisa de gente que não queria que nem a alma saísse dali. Morreu não querendo morrer.”
— Nós fizemos o que ele pediu. Não foi fácil subir e fazer aquele buraco comprido lá em cima, tinha muita pedra. Cova em pé, na rocha, coisa difícil.
“Mas eu mandei apurar três bateadas para ele levar na morte. Chamei Raimundo e disse: Avisa ao ouro do barranco que vocês vão dar três bateadas para Firmino Amapá levar na sepultura. Anuncia alto. É para o ouro ouvir’. Cada uma delas deu mais de cem gramas. O rei do ouro mandou essa prenda para ele. Quando desceu em pé no buraco, eu derramei o pó de ouro e o xerém[5]em sua cabeça. Levei numa lata vazia e fui espalhando. A vida é assim, o filé nunca é para o dono do boi.”
Seus olhos embaciaram. Clément sussurrou:
— Lucy, apaga o candeeiro da cozinha. Com a luz mais baixa eu olho melhor Cleto Bonfim.
“Você não precisa me olhar, o tempo me dissolveu.”
— Não, Bonfim. Vendo você, eu vejo o dia em que voltei a Caiena, com sua ordem para que eu me estabelecesse no novo garimpo. Eu já estava doente pelo ouro. Meu sangue já era amarelo. Mandei avisar todos de minha chegada. Caiena inteira ficou sabendo. Vieram muitos amigos e conhecidos. Lembro-me do olhar de Linderfo. Era esbugalhado e vermelho. Todos me ouviam. Naquele tempo, minha loja era na Rue d’Enfer. A mesa grande da sala estava sem toalha. A tábua preta polida, bem lisa, sem arranhões nem rachas. Eu mesmo tinha acompanhado o serviço de limpeza para que ficasse brilhando, o cuidado de não deixar farpas. Arrumei dois bancos grandes, um de cada lado da mesa. Todos estavam sentados. Eu, em pé, na cabeceira, a falar: “Caiena, minha gente, foi triste. Agora vai mudar. Passaram as vacas magras. Nosso destino vai ser outro. Estou chegando das terras do Contestado do Brasil. Lá tem ouro para todo lado. Ninguém dá conta de tirar. Precisa de gente para arrancá-lo. Vocês podem se juntar a mim e vamos para lá. Já tenho um garimpo aprazado. Vamos ficar ricos, nossas vidas vão mudar e Caiena vai voltar a ter vida. Vai circular dinheiro e riqueza como antigamente.” Conversei mais, descrevi as localizações, falei dos caminhos, da selva, das montanhas e saí para o meu quarto, criando um suspense. Todos ficaram desconfiados, parados e curiosos. Voltei com três garrafas de vidro verde. Estavam cheias, dando por fora a impressão de areia. Retirei a rolha de cada uma e, sob olhares de espanto, fui derramando devagar numa travessa de louça branca, no centro da mesa polida, aquela areia amarela, meio grossa, e fui fazendo um monte que ia aumentando a cada garrafa derramada. Quando terminei, com ar de mistério, disse: “São cinco quilos de ouro! La couleur, aquilo que sempre foi o símbolo e o sonho da Guiana. Dois meses, seis homens e a bateia. Lá, o costume é pôr na bacia de alumínio e dividir com caneca. O que não será quando nós colocarmos os lontanas que nós, créoles, já usamos no Approuague?” E, num gesto entusiasmado, proclamei: “Agora, se quiserem, acreditem. O ouro do Mapá[6]é muito, não acaba como acabou aqui. E nós franceses temos de ir para lá, ocupar a terra, senão os brasileiros ficam donos. Ali a terra é da França e o ouro da gente”.
Clément Tamba estava contagiado pela aventura, mas era um homem de negócios, que sabia ver longe. Não era nenhum patriota nem estava interessado nas disputas territoriais francesas, apenas desejava que o comércio de Caiena se expandisse.
— O que nós queremos da França? A França nos abandonou. Só prestamos para prisão de criminosos. Eles não gostam dos créoles, que insultam como fez o sábio Coudreau, mas nós somos pretos franceses — disse Jean Pierre, que era vendedor de fumo e açúcar, negociante na área do Cépérou.
— Os metrôs[7]vão gostar e apoiar — retrucou Tamba —, porque nós vamos dar a eles um território que é um terço da França, rico de matas, de ouro e de tudo. Só vendo como é o Mapá…
E fez um gesto espetacular para impressionar a todos.
— Tem tanto ouro no Mapáque eu — levantou-se, foi ao quarto de novo e trouxe uma espingarda velha de caça que colocou sobre a mesa e continuou — que eu trouxe esta espingarda para mostrar a fartura. Eu a troquei no caminho com um caçador e dentro dela, dentro dela — tornou a dizer — o cano está cheio de ouro! Nem os caçadores têm onde colocar pólvora. É cheio de ouro o cano das espingardas, vasilha de guardar o pó…
E tirou a rolha da boca do cano da arma e derramou o ouro na mesa. Sacudia a espingarda e, num gesto teatral, batia no cano para esvaziá-lo. Depois, trouxe a balança e começou a pesagem de tudo:
— Cinco quilos e duzentos e doze gramas!
No dia seguinte anunciou o desmonte de sua loja. Começou a retirar das prateleiras as mercadorias e empilhou os lotes, arrumados, prontos para liquidar. Primeiro os panos, chapéus, roupas feitas, calçados, caixas de açúcar, biscoitos de Reims, chocolates Meunier, tabaco, fumo pau-ronca, fósforos, papel-abade para cigarros, leite condensado, caixas de doces, conservas de aspargos, azeitonas. Com saudade, desmontou a prateleira das bebidas, conhaque, vinhos Saint-Juliene Saint-Estèpheem garrafões, Madeira, Moscatel, Guignolet, Contenac, Bordeauxe caixas de Syracuse. Depois foi a vez das cordas, pregos, arame, cereais e quinquilharias de todos os tipos.
— Cleto, no dia seguinte fechei a loja e liquidei tudo. Fui de cabeça e alma para o desconhecido. Lá ficamos os dois: você, o chefão; eu, o francês.
A partir das notícias da nova frente de ouro, os barcos que chegavam a Caiena tinham um destino certo: o rio Calçoene. E os navios que vinham da Europa não demoraram a estender suas linhas para novas escalas, cheios de gente e de mercadorias. Iam em mar aberto até a foz do Calçoene e subiam daí até a primeira cachoeira, a do Firmino, onde ficava a vila que lembrava o descobridor do ouro. Outros navios navegavam, na rota do ouro, o Cunani, e iam até a Vila do Cunani, que ficava num barranco alto, com uma pequena igreja e algumas casas. Ali, a maioria já era de franceses e a bandeira da França estava hasteada em frente à casa do capitão Trajano Benítez, brasileiro que aceitara ser representante da França,delegado do governador de Caiena. Não eram só navios franceses como o Belle de Martinique, o Guyane, o Carsevenne, mas ingleses, como o Admirale o Meteor, e até um holandês, o Catupania.
As localidades foram sendo povoadas e a mais importante de todas era a vila de Calçoene, que se incorporou à do Firmino,das duas fizeram uma, na margem esquerda do rio, onde nasceu um grande comércio com lojas que vendiam de tudo e a moeda era o grama de ouro. Foi lá que Clément Tamba instalou a sua primeira casa de negócios e montou a nova loja, comprando ouro e vendendo máquinas de garimpar, ferramentas, fazendo parcerias, cobrando comissão e ganhando o que queria e o que não queria. Depois estendeu seu domínio e fez casa no Limão. Mas não se igualava a Cleto Bonfim.
“Clément, você me trouxe para Caiena, me apresentou à Société Equatoriale, que passou a comprar meu ouro. Aqui, montei casa e me acostumei a gozar a vida, até aquele dia em que nós fomos ao Tour d’Argent, para levar mulheres para a brincadeira de alegrar nossas noites no garimpo.”
— Você só, Cleto, porque eu não gostava de apanhar mulher de cabaré. Levava sempre minhas conhecidas, namoradas daqui, que iam e vinham.
A porta bateu. Raimunda entrou. Trouxe a bilha de água e resmungou:
— Seu Clément, com quem o senhor está conversando?
— Com Cleto Bonfim.
— Onde ele está?
— Aqui — e apontou com o dedo para a parede. Raimunda viu crescerem aquelas pernas finas e um rosto magro de barba rala.
— Olhe — disse Raimunda —, não fale a Seu Clément mais nada. Ele não gosta de conversar sobre o passado.
— Raimunda, vá para a sala. Deixe-me receber os amigos — resmungou Clément.
Lucy chegou.
— Raimunda, não se incomode. Tamba está preparando a morte dele. Toda noite quer ir a Calçoene. Eu não o acompanho porque minhas pernas estão fracas e lá tem cheiro de defunto.
Tamba fechou os olhos. Seu pensamento parou num latido de cachorro. Saraminda estava nua, banhando-se na cachoeira.
4
Saraminda
Tinha olhos verdes, cabelos lisos que escorriam nos ombros, a pele cafuza, peitos firmes, de cones finos, castanheiras eretas, linheiras, que não se dobravam na ventania. Os quadris eram definidos nas saliências das curvas, baixos, como se escorregassem na linha do corpo, harmoniosamente ajustando-se e engrossando as coxas, pernas roliças e cheias. Tinha o tronco um pouco alongado. O rosto era de uma beleza parda, entre negro-limpo e branco-sujo. Trazia no olhar um enigma que passava aos lábios carnudos, elevados, levemente repuxados na parte superior, os dentes aparecendo num risco breve, e, no sorriso, a ponta de vida que vinha do rosto, no conjunto daquele olhar e boca, com a força do carisma no falar e no sorrir.
A pele era lisa, macia, acetinada. Como pelúcia, marca do sangue índio, que vinha da avó, a créoleBalbina, que montara um bordel para marinheiros de longas travessias, filha de um holandês de nome Jansen e uma índia waiapi, de serviço cativo no Convento dos Jesuítas.
Balbina deixou grande descendência. Sua filha Julienne, mãe de Saraminda, aos quatorze anos foi prostituta no cais, de onde saiu levada por um preto da Guiné, escravo forro que fugiu da Jamaica e aportou em Caiena, com quem morou até que morresse na epidemia da gripe. Viúva, com quatro filhos, vivendo de uma venda de peixe e caça, apaixonou-se pelo Sargento Descoup, que a levava para longos passeios atrás do cemitério, um bosque de favas, e a ele entregava-se num amor experiente e maduro. Descoup nunca quis visitá-la em casa, nem ela queria a visita, com vergonha dos filhos, e ele, para que seus chefes militares não soubessem que era amante de uma créole.
Desse romance nasceu Saraminda. Sua mãe desde logo descobriu-lhe pintas da avó. Viveu na mais completa miséria até que, aos quinze anos, estava na casa noturna de Marie Turiu, a Tour d’Argent, freqüentada por garimpeiros e boêmios de Caiena, onde se realizavam leilões e festas de encontro para recrutar mulheres que iam para as noites dos garimpos, que se descobriram na nova fronteira do ouro, no Contestado do Brasil.
Nessa noite, Cleto Bonfim, da região do Calçoene, estava ali. Era sala de festa grande. O cheiro de cigarro, a fumaça que subia, o frege de homens que pediam rum e aguardente, bebiam e jogavam os copos, os brasileiros desejosos de bebidas destiladas e os franceses pedindo vinhos, de onde fossem, Bordeauxou Bourgogne, e os créolesbebendo uns e outros sem preferências.
A noite passava, entre disputas, mulheres, bebidas e a música que escorria de um saxofone, um violino e um piano velho, aquele mesmo salvo de naufrágio no cabo Orange, e onde tocava Jean-Maria, que havia sido músico em Paris, num cabaré da RiveGauchechamado La Nuit de Lyon.
Cleto estava bêbado. Enfrentara índios e aventureiros, mas, por fim, conseguira ser o dono do mais rico garimpo, de onde saía de meses em meses rumo a Caiena em companhia de Clément Tamba, na busca de mercadorias, aviamentos, e para depositar o ouro que retirava daquelas terras. Na volta levava companhias arrematadas para alegrar as noites e espantar os carapanãs no barracão do seu garimpo. Tinha grande gosto por mulheres. Era vivido. Conhecia as manobras e os trejeitos de todas para arrancar dinheiro. De muitas conseguiu escapar, de outras pagou os dias e achaques, e a outras mandou embora com esporão e raiva.
A noite era de grande alegria. Já subira a euforia do vinho, a música era frenética, as mesas turbulentas, e começou o leilão das mulheres. Marie Turiu, dona da casa, conhecida cafetina, abriu os lances:
— Estas moças bonitas estão querendo conhecer os garimpos. Aceitarei convites e ofertas. Nada na vida se faz sem a felicidade de mulheres bonitas — deu uma grande risada. Abriu os braços e fez o pregão: — Quem mais oferece por esta prenda, quinze anos, pele de deusa?
Saraminda entrou no tablado com passos seguros e um jeito de quem fazia teatro. Era como ninguém podia pensar. Destacou-se no meio das duas colegas, uma ruiva francesa e outra bela créole. Todos repararam em seus seios sem prisões, coxas e pernas grossas, cabelo estirado, liso e brilhante, no olhar aquela coisa de um verde de esmeralda, contrastando com a pele escura.
Não esperou ofertas. Bonfim estava cercado de acompanhantes, gente de confiança, capangas e amigos. Eram homens de vários tipos, de cabelos longos ou curtos, todos de olhar firme, armados e copos na mão. Cleto Bonfim, como era de seu costume, trazia pendurado no pescoço um quilo de ouro em pepitas que se estiravam num cordão grosso que descia pelo peito cabeludo, aberto, para que todos vissem o que sempre gostava de mostrar e ostentar. Contrastava com seu corpo franzino a expressão de um rosto cujos pêlos não eram uniformes. Vestia um dólmã de brim desbotado.
Saraminda, sem pensar nos amores passados, resoluta e desinibida, avançou no rumo da audiência e levantou a mão direita, com o indicador para cima, e avisou:
— Não sou do leilão. Sou de Cleto Bonfim. Vou com ele e quero ser dele. Eu sei onde ele está e de minha parte o leilão está resolvido.
Marie Turiu olhou-a com surpresa. Cleto, na sua mesa, ficou tomado de grande espanto. Não conhecia aquela mulher, não tinha relações maiores na cidade nem amizades que pudessem dar informações a seu respeito, nem se julgava um tipo alvo de sedução. Mesmo com a cabeça tonteada procurou arrumar as idéias e entender o que acontecia. Seria um golpe de Marie Turiu ou brincadeira de um de seus amigos? Recobrado do susto, levantou-se, ocupou o corredor, entrou no jogo da festa e replicou com arrogância:
— Não aceito mulher que se oferece. Quero escolher e sempre escolhi bem.
Foi uma risada geral e um hurra! Saraminda não se perturbou. Impressionou pela firmeza e pelo jeito de quem tinha estudado o papel. Coisa diferente naquelas festas de gestos e gostos primitivos.
— Não sou mulher que se oferece. Já escolhi. Sou sua, Bonfim.
Houve um silêncio seguido de muitas palmas. Os bêbados recuperavam a razão, a atenção voltada para os cantos da sala.
O lampião de querosene ardia numa luz amarela, que ganhava o teto e se espalhava pelo ambiente. Todos trocavam olhares curiosos, que convergiam para Bonfim. A banda de três instrumentos voltou a tocar frenética e dava, a cada resposta, uma batida geral.
— Mulher, de onde você tirou essa história de jogar-se para o meu lado? — disse Bonfim, do meio do salão.
— Não pergunte o que não se pode perguntar — disse Saraminda. E adiantou: — Não sei por quê, mas meu desejo é esse e — trocou de tática, transformou-se em tímida, amaciou a voz, concluindo melosa — quero ir ao teu garimpo, junto… contigo…
Bonfim já não sabia quantas garrafas de vinho tinha na cabeça, nem se o que estava acontecendo era fruto de bebedeira. Dirigiu-se ao palco, olhou para Saraminda:
— Mulher, se você quer o meu ouro, eu lhe dou, mas não venha com essa história de me engabelar.
Saraminda o fitou com sedução, torceu os lábios e não se deu por achada:
— Bonfim, não quero seu ouro. Ouro sou eu. Eu nunca tive nada nem sei o que é ter. Alguma coisa me diz que eu devo ser sua. Esta foi a missão que meu destino me deu. Vem.
Cleto Bonfim perturbou-se. Nunca tinha visto mulher desse jeito, já que a iniciativa era sempre dos homens. Disseram-lhe uma vez que a mulher créoletinha por hábito procurar, e não ser procurada. Mas, ao viver essa situação, não achou normal. Subiu no tablado, tirou seu conhecido cordão de pepitas pesadas e colocou-o no pescoço dela. “Se é isso que você quer, aqui vai.” Foi um aplauso geral. Saraminda, o colo adornado, começou a chorar, e ele viu de perto a beleza do seu busto e da sua pele.
Depois, encolheu-se, fechou-se como a flor-de-onze-horas, os olhos murcharam e de seus lábios saiu, modificada como por encanto, adocicada, cercada de mensagens, a palavra molhada, que mais parecia uma dança de acasalamento de juritis:
— Obrigada, Bonfim…
Ela poderia ter esperado os homens começarem a oferecer pelas mulheres o ouro que explodia no Contestado do Amapá, no Brasil. Mas não quis. Ofereceu-se e arrematou-se sem preço, antes do leilão, o que foi surpresa até para Marie Turiu. Ninguém soube como ela descobriu quem era Bonfim, aquele homem que, quando vinha a Caiena, comprava toneladas de alimentos, carnes e peixes secos, mercadorias de todos os tipos, para o consumo e o dia-a-dia do garimpo. Do querosene até os perfumes da França, em vidros populares, potes de vaselina para pentear os homens nos dias de festa, vinhos, conservas, remédios, ferramentas e sacos de estopa, as sarrapilhas. Sempre visitava as casas de alegria, bares, pensões de mulheres e bailes. Nessa noite estava no Tour d’Argentpara assistir ao desfile das mulheres, tão falado na cidade. Não era a primeira vez. Era cliente festejado, sempre acompanhado do seu séqüito e invariavelmente de Clément Tamba, que todos sabiam ser seu amigo e participante dos negócios do Contestado.
Depois de colocar o cordão de pepitas em Saraminda, Bonfim voltou para a mesa de onde saíra. A audiência brindava. Os homens e as mulheres se excitavam entre fumo, bebida, música e o prazer da sedução. Saraminda permaneceu imóvel junto a suas companheiras, tímida, sem deixar o tablado, com uma decisão a ser concluída. Nem parecia a mulher que havia pouco aparecera. Não acompanhou Bonfim. Ficou imóvel, desfrutando dos olhares, escondendo a alma.
Marie Turiu, então, passou adiante, pegou no braço de Lucienne, uma loura de cabelos longos, francesa da metrópole, filha de um egresso da prisão de Saint-Jean du Maroni:
— Quem deseja levar esta princesa para conhecer o rio Calçoene, cantar e dançar para os homens do ouro? Mulher bela e pessoa de trato. Quem é o felizardo?
— Quatrocentos gramas — gritou Gérard, um rapaz de Caiena.
— Não é para ficar aqui uma hora, Gérard, é para viajar para o Brasil — disse Turiu.
— Eu sei, Turiuinha, é para morrer de febre e matar carapanã…
— Para lá, boca maldita… — disse Lucienne.
— Minha filha — respondeu ele, fica aqui, vai lá para casa. Tem lá uma coisa que não tem no mundo. O Gérard!
Todos se divertiam. O leilão continuou:
— Quem vai com Lucienne?
— Vai comigo — disse Zacarias, um comprador de ouro do Cunani. Dou um quilo de ouro e dois meses na minha casa, com direito a vinho e amor…
— Vai ser feliz, minha filha. Vai com você, Zacarias! — Bateu o martelo a dona da casa.
Novas palmas foram ouvidas. Turiu segurou a mulata Wiabo e apresentou-a.
— Não vou falar nada. Vejam que saramaca bonita. É uma peça rara. Que rosto, que lábios, que quadril! Que felicidade ter este amor de raça… Quem?
Houve uma sucessão de lances, e Juvenal, dono de uma casa de aviamentos no Cunani, dirigiu-se para o tablado, pegou-a pelo braço e gritou:
— Um quilo e cinqüenta gramas, sem prazo para voltar…
Marie Turiu ficou sozinha com Saraminda no tablado.
— Cleto Bonfim — disse ela —, você ainda não estabeleceu quanto vai pagar para levar esta menina, a mulher mais linda que eu já vi. Vejam — e pegou no rosto de Saraminda, como se quisesse arrancá-lo como uma máscara e mostrá-lo ao público —, olhos verdes, rosto de Santa Ifigênia, fino, sedutor, precioso…
Bonfim, meio cambaleante, levantou-se e gritou com a força de sua fama:
— A mulher já é minha, é falta de respeito comigo abrir o leilão de novo. Ela tem preço. Dou dez quilos de ouro e vai viajar para sempre.
Saraminda contraiu os lábios, levou as mãos ao rosto e chorou. Por uma escadinha lateral abandonou o palco, andou entre as mesas, sob o aplauso de todos, a música arremedando um cancã, e dirigiu-se para o grupo onde estava Bonfim. Ele levantou-se, agarrou-a e deu-lhe um beijo que parecia de noivado. Ela pediu, num gesto macio de carinho:
— Abanque-se, Seu Bonfim.
E sentou-se no seu colo, passou a mão no seu pescoço, descansou a cabeça na sua cabeça e murmurou no seu ouvido:
— Você sabe, Seu Bonfim, por que pagou dez quilos de ouro por mim?
— Não quero saber, porque já sei — respondeu com a voz engrolada pelo vinho.
— Pois, quando estivermos a sós, vou mostrar. É mistério. Qualquer homem daria o mundo.
A noite continuou, enquanto o piano, isolado, punha-se a tocar uma antiga canção da velha Caiena.
5
Um preço a pagar
Cleto era proprietário de uma grande casa em Caiena, onde ficava quando vinha trazer e vender ouro, acertar contas com seus representantes de comercialização e exportação, o maior deles a Société Française de l’Amérique Equatoriale, que dominava os negócios do ouro. Aproveitava esses tempos para noitadas, que acabavam em sua casa, onde as festas continuavam com amigos e mulheres, que terminavam em sua cama. Era um ponto de alegria, testemunho da explosão de riqueza das novas minas.
Cleto, quando saiu com Saraminda do Tour d’Argent, trazia uma idéia confusa. A madrugada ia alta e, na rua deserta, pouco a pouco ele sentiu que a mulher estava esquiva, não o deixava avançar no seu modo de sempre, envolvendo-a no seu desejo. Desacostumado dessa reação, com a língua enrolada numa boca de rum e vinho, reclamou:
— Que está havendo com você? Depois de tanta provocação, nega fogo?
Saraminda não se deixava mais tocar, afastava a mão dele do corpo e do rosto.
— Estou pensando, sem saber o que fiz — respondeu.
— Tire a roupa, você é mulher de bordel, não tem que pensar, nem romance, quero ver seus peitos — falou cambaleando.
Saraminda retrucou, resoluta:
— Seu Cleto, me trate com respeito. Não sou coisa suja, sou mulher para ser tratada com gosto. Aprecio modos. Entrei na vida mas não sou uma sem-vergonha.
Cleto insistia, a voz pastosa:
— Arrematei você por preço alto e quero receber a mercadoria. Sou assim e não sei esperar. Pago mulher para ela ser como eu quero. Deixa de sestro. Já estou me chateando.
Pois fique calmo. Se sou mercadoria, você arrematou mas não pagou — respondeu Saraminda, disfarçando o medo e querendo encontrar saída para a indecisão.
— Mulher, você está me cobrando e duvida que a palavra de Cleto Bonfim vale mais do que ouro? — E concluiu: — Deixa de ser besta, senão entra na minha taca, e dez surras em vez de dez quilos.
— Não é sua palavra, é minha sorte. E trato de compra tem norma — voltou ela a argumentar. — Apanhar não estou acostumada. Assim é melhor que a coisa acabe agora. Podemos desfazer o negócio.
Sentiu-se aliviada com essa hipótese. Estacou, afastou a mão de Cleto e, ao mesmo tempo, segurou-o, para que não caísse por causa da bebedeira.
— Você não sabe quem eu sou? Cleto… Bonfim! E trato que eu faço não se desmancha. Minha vontade é de ouro!
Estavam chegando à casa dele e entraram.
— Não sei —retornou Saraminda —, isso é questão sua. Veja lá, Seu Bonfim — abriu a blusa e mostrou os seios, apertando os mamilos —, isto não é mercadoria para ser comprada assim. É coisa minha, rara da natureza, que eu não jogo fora. Veja o valor deles e me trate de outro jeito, sem bebida e sem brutalidade.
Cleto abriu bem os olhos e viu nos seios escuros as pepitas incrustadas, de um amarelo intenso, derramado, a mesma cor das pequenas flores da ucuuba.
— Que é mesmo o que estou vendo? — balbuciou Cleto, quase caindo.
— Pois veja, Cleto Bonfim.
Um gato quebrou o silêncio derrubando caixas na cozinha. Saraminda espantou-se.
— Não é nada, são almas do outro mundo querendo olhar você — disse Cleto, conhecedor dos ruídos da casa, e continuou: — É gato, não é nada. Bicho ordinário e abelhudo.
Saraminda, imersa na vaidade de mostrar os seios raros, não se perturbou:
— Veja, Cleto Bonfim!
E eles apareceram fosforescentes, os mamilos brilhando como ouro trabalhado e polido.
Os olhos dele corriam em círculo, acompanhando a fagulha de luz que girava ao redor.
— Cleto, eu tenho coisas de ouro que dinheiro não paga. Ele avançou para tentar tocar os seios.
— Não, isso não se pega assim.
— Mas vou beijar.
E avançou, os lábios abertos.
— Nem isso. Aqui não se faz nada. E jóia minha que só eu sei usar.
Cleto pensou que ela falasse do pagamento.
— Eu pago.
— Não tenho pressa em receber.
“Que mulher misteriosa”, ainda pôde concatenar em meio às tonturas da cabeça, percebendo, alucinado, que estava bêbado demais:
— Onde é que vou arranjar, agora de madrugada, dez quilos de ouro, mulher enfeitiçada? — falou alto.
— Não sei — ela pegou na desculpa para fugir. — O que sei é o que você sabe… Se o ouro só tem amanhã, só amanhã você tem o que quer.
— Estes teus seios são de ouro ou eu estou doido? — perguntou Cleto.
*
Naquela noite, em casa de Clément, ele, Cleto, falando pela alma do corpo que não tinha mais, tanto tempo depois, só retinha na memória azulada pelos anos, romanceada pelo esquecimento, o momento em que, sentado na cama, Saraminda ao lado, cambando para seu ombro, com voz macia disse-lhe dentro dos ouvidos: “Olha, Cleto, não quero ser vagabunda ao seu lado. Fêmea como sou, o preço que você pagou merece respeito de mercadoria de coisa boa. Vou dizer e você pode não acreditar, quero estar com você como mulher tem direito de ter homem. É coisa de fêmea, não é coisa de puta.”
— Cleto, essa história me perturba — disse Clément. — Como é que você me conta agora, depois de uma vida de tantos anos juntos, estas coisas que você não sabe mais se aconteceram, quando você está morto? Não me censure. Você morreu, morreram suas paixões. Você não lembra que eu fui em seu enterro, naquela tarde, quase de noite, e chorei com os olhos e com a alma?
“Como vou me lembrar se eu era o defunto?” disse Cleto.
— Pois naquele dia eu fui até o cemitério e lá ouvi o saxofone do velho Esode tocando a canção francesa que você gostava de ouvir, La routine des jours. Era tanta gente, um choro só, que parecia ladainha na quaresma. Foi quando surgiu a discussão sobre se você devia ser enterrado com seu cordão de pepitas de um quilo de ouro, que era sua vaidade, sempre pendurado no pescoço. “Não pode, senão hoje mesmo vão arrebentar a sepultura para tirar”, ponderei. “Quem vai roubar o cadáver de Cleto?” “Não, isso não pode ser. As pepitas não podem ficar no pescoço dele.” Era a procissão dos palpites vindos de uns e outros. Então, a idéia foi minha, tomei a decisão e todos aceitaram: “Mandem buscar um martelo e um moedor de pilão, para reduzir as pepitas a pó, bem moídas, misturar na terra, jogar na cova. Não há como ladrão roubar.” A noite caía. Uma lua nova botava a cara, nós todos começamos a misturar o pó da pepita com terra e, então, você foi sepultado. Lembro as pazadas de terra no caixão, o ouro misturado, e você lá embaixo, imóvel, sentindo-o acompanhá-lo na morte. Foi o único ouro que você levou.
“Mas você não sabe que, depois de alguns meses de chuva, o ouro desceu e se juntou no meu peito? Grudou, veja.”
Abriu a camisa e mostrou para Tamba o peito de cabelos dourados.
— Não, compadre, você está morto. Não mostre nada, esse peito já não existe.
“Estou aqui. Me mostra a navalha que entreguei a você, quero vê-la.”
Bonfim voltava na memória. Lembrava a primeira noite com Saraminda: “Cleto, eu vou embora. Minha casa é na Rue Madame Payé. Eu espero pelo seu ouro amanhã. É tempo de você curar essa bebida e pagar os dez quilos de ouro.”
No lusco-fusco da memória, eram as últimas lembranças da saída de Saraminda naquela noite.
Recordava-se de que se tomou de valentia. Avançou, apertou-a, abriu a boca buscando a outra boca e foi levantando sua saia, rasgando sua blusa, empurrando-a para a cama.
— Venha logo, quero logo…
— Seu Bonfim, não me force — falou com decisão e raiva. — Meu corpo é meu, não é seu, você não me pagou. Não há força que me obrigue. Não me entrego a você.
Cleto sentiu, pela primeira vez, o poder dos mistérios daquela mulher. Perdeu a sensibilidade dos braços, que pareciam de espantalho. A cabeça rodopiou, os olhos embaciaram, faltou-lhe força, seu corpo era uma carne morta.
Quando acordou, na manhã seguinte, o sol já ia alto. Saraminda havia sumido.
6
Um pensamento fugindo
“Compadre Clément, o cheiro daquela mulher me persegue até hoje. Tudo o que passei a fazer foi por desejo e paixão, desses que eu não sabia que habitavam cabeça de homem.”
— Bonfim, vá embora. O piano de Louis eu comprei para fazer minhas noites serem passado. Quando acordo, nas madrugadas quentes desta Caiena, ele está tocando sozinho, mas não é Louis que toca, não é ninguém, é o Barba-de-Fogo, Kemper, o moço de Saint-Malo.
“Não me mate de novo. Não fale desse homem. Nunca mais quero ouvir esse nome. Tipo nojento e asqueroso. Fedia a traição. Não sei qual foi o diabo que o levou ao nosso garimpo. A Guiana era de criminosos e aventureiros, mas aquele foi a pior raça de gente que passou pela Guiana. Devia ser descarregado como leproso na Ile des Cabris[8].”
— Compadre Bonfim, a Guiana é uma terra de paixão. Ninguém saltou aqui sem ódio, paixão ou aventura. É a floresta de lendas e sortilégios. É o sofrimento da escravidão, o remoer da ingratidão da França. É Caiena. Eles pensam que ser guianense é ser só de Caiena. O resto são os outros povos. Somos todos franceses nascidos de uma noite de porre. Mas eu amo Caiena, na beira do mar, suas ilhas, suas matas.
“Eu não, Clément Tamba, eu sou brasileiro. Você esquece que…”
— Mas Saraminda era francesa, Bonfim.
“Olhe, compadre, não me mate uma vez mais, Saraminda nasceu no céu. Saraminda foi a única mulher que existiu na Guiana e no Brasil.”
Clément Tamba achou que os anos tinham feito com que ele pudesse participar dos mistérios da vida e da morte.
— Estou cansado de viver, Lucy.
A sombra de Bonfim perambulava pelo corredor.
— Lucy, eu quero libertar meus pensamentos — disse Clément. — Eles estão presos, ficaram encarcerados mais do que os deportados para o presídio de Saint-Laurent du Maroni. Eu não deixei que saíssem. Não são segredos, são assombrações, demônios que permanecem algemados na minha alma, presos dentro de mim. Choram, gritam, gemem, pedem socorro. Eu seduzi Denara, filha de minha tia Greba. Eu a possuí, quase que a estuprei. Ela não queria, ela fez tudo para libertar-se do meu desejo. Eu furtei o ouro do movimento para formar as volantes francesas. As armas não chegaram porque não as comprei. Lucy, eu vou libertar meu mais preso pensamento, que foi condenado à pena de morte. É um desejo que não chegou ao fim.
— Clément, você não está na idade de se amaldiçoar, nem de fazer penitência. Acabe seus dias em silêncio. Tudo já passou.
— Lucy, eu também amei Saraminda.
O piano começou a tocar. Era Les miroirs d’argent, velha canção da Bretanha que tocava na sebenta partitura de Diougan, editada em 1847 e que ele possuía desde que chegara a Caiena. Aquela voz e aquele canto negro surgiram claros e melodiosos no silêncio da noite, escorrendo lentos e tristes, como se brotassem de lágrimas surgindo de muito longe, numa magia de sons.
— Lucy, é Jacques Kemper quem está cantando.
A noite ia e voltava. No casarão da Rue d’Estren, Clément tinha os olhos nublados pelo tempo. Ninguém existia mais, as horas eram outras. Tantas noites se levantava e punha os ouvidos em alerta, a cabeça arriada para o ombro esquerdo, depois para o direito, tentando ouvir os sons da mata, do sacudir dos ventos, dos pássaros e do silêncio da casa. Quantas vezes pedira para morrer, estava cansado de viver. Mais de cem anos, e os dias se repetiam numa monotonia destruidora. Foi nesse tempo que a visita de Bonfim quebrou sua solidão, Bonfim, ali ao seu lado, no remoer do tempo antigo, a espremer a saudade e fazer sofrer com o relembrar dos anos. Mas esse sofrimento era tudo que lhe restava.
— Fale, compadre Bonfim — pedia, enquanto segurava o rosto em suas mãos e passava longo tempo mastigando pensamentos, pintando na cabeça as paisagens desbotadas da Vila do Lourenço, do Limão, do Calçoene, do Cunani.
— Lucy, você se lembra da chegada dos mortos da luta de Veiga Cabral? Essa guerra me trouxe de volta a esta casa. A corveta Bengali se aproximava do Canal Laussat, trazendo a reboque um batelão misterioso. Exalava um fedor grande que empestou Caiena e ninguém sabia o que era. Eram os corpos apodrecidos dos soldados franceses que chegavam com três dias de viagem. A cidade se revoltou. Era choro, lamentação e tristeza. Todos queriam vingança. Eles trouxeram como despojos os mais ricos brasileiros do Amapá, feridos e torturados. Era um troféu para o Governador Charvein. Lucy, você assistiu ao desembarque? Caiena era só sofrimento. O enterro foi à noite. Velas por todos os lados e depois um movimento para erguer um monumento aos mortos. Até hoje ele está bem ali, ao sul do cemitério.
Clément e Bonfim calaram. Ao longe, ouvia-se no piano uma melodia francesa.
“Que sons são esses? Que piano toca?” indagou Bonfim.
— Um piano do passado. Está tocando dentro de sua sepultura.
“Aquele francês nojento, Clément.”
— Não, é o piano do Louis, das nossas noites no Chez Martin.
“Ah, compadre, nada me ficou de mais triste, me dilacerou mais a alma do que aquele francês. Lembrar-me de que Saraminda o amou mais do que a mim…”
— Não, compadre, Saraminda amou todos os homens, mas quem foi dono dela foi você. Uma mulher como aquela não ficava como ficou, sua, dentro daquela casa, no meio da solidão do garimpo, se não fosse por uma grande paixão. Você foi o homem dela, só você.
“O ouro, compadre.”
— Não, ouro ela teria de quem quisesse.
“Clément, mas eu me lembro do olhar dela para ele, no dia em que recebeu o vestido de Paris. Depois dos cachorros, pediu-me um macaco de presente: ‘Bonfim, me beija, Bonfim. Eu quero que você me dê um macaco para me fazer companhia.’ E eu mandei pegar um macaco na mata. Primeiro, trouxeram um sagüi. Ela recusou: ‘Não, Bonfim, não quero macaco pequeno, não quero macaco para ficar nos meus ombros, quero um macaco para pular nas árvores e eu ficar olhando.’ E eu mandei pegar outro macaco. Com vergonha, encomendava aos caçadores que me trouxessem macacos. Veio um meriquiná, depois um macaco-cabeludo, outro macaco-de-cheiro, outro jupará, e outros mais. Até que trouxeram um macaco-prego, dos pretos, de longos braços, rabo comprido, dos que enrolam a cauda nos galhos e, de cabeça para baixo, ficam balançando. Ela achou engraçado. Ele era todo faceiro e sem-vergonha. Foi longo amansar o macaco. Ela lhe botou o nome de Nicomedes. Amarraram-lhe uma corda comprida na cintura para não fugir e, com ela esticada, pulava e brincava nos galhos de árvore em árvore. Saraminda ficava na janela do quarto, olhando, um sorriso largo, as mãos batendo, fazendo bico de chamada, jogando beijos, e Nicomedes pulando, balançando, soltando uivos. Os cachorros latiam, o macaco parava, fingia que tinha medo, todos se divertiam. Compadre Clément, eu tinha pena de mim, mas gostava, tinha gosto em fazer seus desejos. De outra vez ela quis um papagaio: ‘Bonfim, me traz um papagaio, desses que falam, sachant déjà quelques mots de créole.’ Ela sabia que eu não falava francês, só créole, mas ela pediu em francês. E eu contratei a velha Ritinha, lavadeira vinda de Caiena, para ensinar créoleao papagaio: ‘Seu Bonfim, eu tenho uma papagaio fêmea. Ela já sabe dizer non ka pati, pa ni problem bom eto ka emerde mo[9]. Mas vai falar mais.’ ‘Vou saber de Saraminda se ela aceita papagaio fêmea e depois respondo.’ ‘Saraminda, Ritinha tem uma papagaia, você quer?’ ‘Me beija, Bonfim, eu quero. Mas pede para ela ensinar a chamar Saraminda.’ E eu fui e fiz assim. Quatro meses depois, a papagaia chegou: ‘Saraminda, urupaco, papaco.’ Ela ria feliz e brincava, enquanto Nicomedes pulava e Leão da Rodésia rosnava. Dei-lhe o nome de Xaxá. E depois de algum tempo, de tanto ouvir Saraminda chamar Nicomedes, a bicha dizia, misturava: ‘Saraminda, emmerde, Nicomedes, pula’. E sem ninguém saber por quê, soltou um palavrão: Patate to maman[10]. E Saraminda ria, feliz.”
7
Os relógios que não andam
A noite voltava e o amanhecer não chegava. É como se os relógios recuassem. Os ponteiros davam voltas contrárias, iam e vinham, retrocedendo as horas do dia e da noite. Clément Tamba estava exausto. O cansaço de viver arrastava-se com os pés, dominava seus movimentos e a solidão da alma.
— Você amou aquela créolevagabunda?
— Não, Lucy, não era amor. Dentro do amor tem desejo, tem paixão, tem amizade, tem carinho, tem ciúme, tem de tudo. Quando eu quebrei a caixa do meu amor por Saraminda, tinha apenas silêncio dentro dela. Dentro do silêncio, a obsessão de deitar-me com ela. Saraminda era um desejo que não se sacia. Nada queimava mais o pensamento dos homens do que imaginar seu corpo nu no varandão da casa, cantarolando e se remexendo.
A noite voltava. Tocavam os relógios horas próximas do amanhecer. Clément quis abrir a janela para ver a alvorada. Mas o tempo parou e voltou a anoitecer.
— Lucy, coloca a navalha dentro do cofre. Eu não devia tê-la tirado de lá. O fio da sua lâmina me corta o pensamento. Recordo-me de quando cheguei do Calçoene e fiz a reunião na minha casa para levar gente para garimpar. Ali começou a minha loucura. Vendi tudo. Foi uma festa em Caiena. Só ficou esse cofre que Ledério, não entendi por quê, não me deixou vender. “Cofre não se vende, é vender a sorte”, disse.
Ledério era um preto marrom, cujo avô trabalhara na expedição de La Condamine. Trazia de um modo estranho toda a carga do feitiço dos pretos do bosque, os boschsque tinham fugido do Suriname e se embrenhado na floresta, para sair da escravidão dos homens e ficar na escravidão da floresta. Às vezes, dormindo, ele falava taki-taki, a língua dos bonis. Sempre se recusava a ser chamado de créolee justificava: “Nós lutamos pela liberdade, não a recebemos de graça. Os créoles, não, eles fugiram da luta, foram livres por lei.”
— Ledério me acompanhou sempre — recordou Clément. — Ficou comigo a vida inteira, até o dia em que desapareceu no labirinto da floresta. Até hoje não sei se foi feitiço, piaille[11], ou se ele quis voltar à selva, como seus avós.
A porta rangeu, abrindo-se lentamente. Era mais uma vez a presença de Cleto Bonfim, cuja alma não se libertava de Clément.
— Compadre Cleto Bonfim, você de novo?
“De novo, Clément. Você sempre me tira da paz, faz remoer meu ódio e minha paixão. Mas eu não sei partir.”
— Você entregou o ouro a Saraminda na noite em que dormiu com ela?
“Não, Tamba, ela não quis deitar comigo, como já lhe disse. Mas eu estive com ela no outro dia. Eu já estava bom, mas preso. Voltou depois que acertei o pagamento. Eu morava na Rue du Fort, aquela grande curva que circundava o pé do morro da fortaleza. Aí ela foi para minha cama, mas me convenceu de que tinha de ser diferente, assim como se fosse ajuntamento de noivos. Mulher estranha. Quis me levar à loucura: tirou a roupa e deitou-se ao meu lado. Quando a vi nua, meu pensamento parou no seu corpo, que brilhava. Nada mais belo do que a mulher negra. Era de um preto-azulado claro, as curvas e todas as partes arrumadas, sem qualquer erro, o sorriso manso. Era mais do que mulher, era ouro. Quanto pesava? Cinqüenta quilos? Eu ia pagar dez. Meu desejo era forte. Era um cavalo preso, sem poder me mexer, encantado pelo seu feitiço. Clément, como é bonita a mulher créole!”
Clément começou a chorar. A caixa quebrada de seu amor abria mais esse desejo de ter vivido aquela noite. As lágrimas desciam lentamente, os olhos fechados, mirando o passado.
“Clément, foi nesse dia que eu vi pela vez primeira que ela era toda livre, até das vestes. Por isso aquela coisa que ninguém no garimpo compreendia e o gosto dos cachorros. Para cumprir meu trato e as exigências dela, fui à Companhia. O gerente me recebeu com as mesuras de sempre. Disse-lhe que queria dez quilos de ouro em barra. Ele ficou espantado. Eu sempre trazia ouro, agora queria levar. ‘Seu Cleto, nós lhe damos o certificado de depósito. Quanto o senhor quiser, tem a garantia, mas ouro, hoje, nós não temos. Nosso embarque para Paris foi ontem, no navio Dauphine.’ Eu nunca esqueci o nome desse navio. Tinha nome de peixe. Será que Saraminda aceitaria um certificado de depósito? ‘Seu Cleto, é muito perigoso o senhor sair com ouro assim, sem acompanhamento. O senhor sabe o cuidado que nós temos. Pode sacar francos ou libras, o valor que quiser, pois é grande cliente nosso, tem todas as regalias e confiança de nossa casa.’ O homem que falava era o Monsieur Jean-Louis Lefèvre. Tempos depois, matou-se porque sua mulher, Laurence, fugiu de volta para a França com um oficial da Gendarmerie. Ela era muito fêmea e tinha os cabelos puxados a fogo. Um dia na sua casa tomei um vinho Bordeauxe vi que seus olhos inquietos eram de mulher que ainda não acalmara a alma. Coitado do Jean-Louis.”
“Quando ela voltou, indaguei: ‘Saraminda, pergunto se você aceita um certificado do ouro que lhe devo, passado pela Companhia. É a mesma coisa que ouro.’ ‘Não sei muito dessas coisas’, respondeu, como fazendo pouco caso. ‘Me entregue e eu vou falar com minha avó, que é velha sabida.’ Mulher de desconfiança e cheia de nós. Mas eu não tinha como fugir. Eu pensei em preparar uma gaiola de ouro para prender seu coração. Coisas da África antiga, por causa do sofrimento das almas dos reis bantos. Ela não quis ir à Société. Eu lhe entreguei o documento. Foi uma longa espera da minha vida. Não era pelo ouro, era por ela. Saí à porta, olhei para Caiena. A cidade estava dormindo para mim.”
8
Ouro debaixo da rede
Balbina era velha, mas guardava as marcas dos seus tempos do cais. Ouvira do companheiro, o preto saramaca Wandero, com quem nunca se casara mas tivera oito filhos, histórias dos escravos trazidos para os engenhos do Suriname e, por tradição oral, o relato do sofrimento das viagens, a perseguição na selva e nos quilombos. Dona do mais antigo bordel da cidade, conhecia bastante essa vida, sofrera a penúria dos anos de decadência. Recolhida por velhice e invalidez, morava num cortiço sujo, onde recebia a visita dos filhos, dos netos e dos amigos antigos. Saraminda a ela recorreu para aconselhar-se.
— Saraminda, não entendo dessas coisas. Sua avó está velha, no caminho da morte. De onde você tirou essa história de ouro de banco? No meu tempo, eles não pagavam nada, eram frações de franco. Na pensão, nunca ninguém viu ouro, a não ser nos cordões sujos e pequenos de metal falso.
— Fui arrematada por dez quilos de ouro — disse a neta.
— Arrematada? Isso acontecia no tempo da escravidão branca, quando as mulheres ficavam escravas de compra como os negros. Não entendo nem quero entender o que foi essa sua sorte. Mas leiloar mulher para ser de homem é coisa nova para mim.
— A senhora guarda o valor que recebi enterrado debaixo de seu catre. São dois quilos de ouro e um papel do banco. Eu vou para o garimpo, minha sorte me persegue e não vou me libertar. Se eu não voltar, compre casas para seus netos.
*
— Seu Bonfim, recebo o papel, mas quero dois quilos de ouro em barra — foi assim que Saraminda acertou seu trato com ele.
Ele indagou, desconfiado, coçando a barbicha:
— Para que você quer ouro em barra?
— Coisa minha — e não falou mais nada.
Bonfim fez a sua vontade. Recordava aquele dia, quando, depois de receber o ouro e o documento do banco, ela ponderou:
— Seu Cleto, o senhor pagou caro. Não acha que nosso encontro não deve ser um negócio de bicho? Eu quero que você tenha alegria e felicidade. Prazer de coisa de amor de gente que se junta.
— Paguei, quero receber. Não posso esperar mais.
— Você me tem na hora que quiser. Sou mulher de vergonha, já sou sua. Quero que você receba meu corpo de ouro embrulhado em papel de seda, enrolado em veludo, cheirando a patchuli.
“Foi assim que ela me convenceu a comprar um vestido de noiva, bordado de miçangas, e uma camisola de dormir, de brilhante branco, a mais cara que tinha no comércio pobre de Caiena, que comprei na Rue Lallouette, na loja que distribuía na Guiana o jornal de modas de senhoras, Le Seul, editado em Paris, no número 30 da Rue de Lille, que era a referência das costureiras da cidade. Como brilhava naquela noite, cor da lua, entre branco e azul, o seu corpo escuro dentro dela, a voz macia, e um riso de quem não tinha pecado.”
Cleto parou. Clément esfregava as mãos. Ele continuou:
“Eu soube o que era o amor. Suas mãos me cobriam escorregando, ela dizia: ‘Como você é liso, parece couro de lontra. Me beija, Bonfim’, ela pedia como quem rezava. E eu fui implorando para ela se entregar, e ela era uma cobra sucuri que se enrolava em mim e fugia sem fugir, assim junta e sussurrando. O candeeiro estava ao pé da cama. Sua luz caía. Eu não via direito e levantei para aumentar o morrão. O quarto foi invadido por raios de luz de fim de tarde. Quando baixei a vista no seu corpo e vi aquilo, com medo de ser trapaça de meus olhos, deixei que eles parassem bem em cima. Ela ficou quieta. Baixei bem a cabeça, encostei a vista. Ali estavam os bicos dos seios que eu apenas tinha entrevisto, amarelos como ouro bruto tirado da terra, mas do brilho trabalhado por mãos de ourives, artista do bonito. As pontas eram grandes, altas, duras, roliças, faiscavam como tição. Beijei-as. Elas encheram minha boca e se derreteram. Mas não ficou aí minha devassidão. ‘Bonfim, vem devagar.’ E minhas mãos frias desceram sobre seu corpo, deslizavam na sua pele, enlaçando o pescoço, acariciando os ombros e as costas, e mudavam para um lado e para o outro, subindo e descendo, passeando no ventre. Procurei a pele da barriga para apertar, mas não achei. Libertei minhas mãos para que me guiassem a cabeça. Não quis beijá-la, encostei a cabeça no seu pescoço para descobrir os caminhos que me conduziriam até o garimpo. ‘Bonfim, é melhor devagar, venha devagar.’ ‘Saraminda, quero ver teus olhos.’ E via as pedras verdes, cor de noite enluarada. ‘Bonfim, estou com sede, quero um copo de água, estou suando.’ ‘Não, água agora, não.’ E ela: ‘É para você descansar e não passar o tempo.’ A luz do quarto estava forte. Era frenética a emoção da chama do candeeiro. Tremia, alumiava alto e diminuía. Não me lembro de ter ouvido sons. Lembro-me de ter trazido o copo de água. ‘Bebe, Saraminda.’ E ela quis refrescar-se com o resto da água e eu gritei: ‘Não, Saraminda, não quero você com água, quero seu suor.’ E minhas mãos recomeçaram. Meus desejos galopavam. Minhas mãos deslizavam, passavam por caminhos já percorridos, mas ainda não chegavam à beira da montanha do Salomoganha. Eu estava frio, e sua pele era quente. ‘Vem devagar, Bonfim.’ Olhei para dentro de mim e vi o olhar de felicidade e de plenitude de Cleto Bonfim. Minhas mãos estavam soltas, andorinhas na ventania, escorregaram, desceram aquela corredeira de limo molhado. Nas partes altas de mulher, Saraminda não tinha pêlos. Minhas mãos tocaram. Era como costas de jeju, babosa, lisa e mais escorregadia do que semente de linhaça. ‘Saraminda!’ gritei. ‘Você é índia?’ ‘É pinta que vem de minha avó. Ela também é assim.’ Eu já não tinha cabeça. Minha ansiedade começava a ser coisa-feita, paixão, amor, eu estava invadido por uma felicidade-surpresa que não tinha limites. Era como se eu tivesse aberto um garimpo novo, sem terra, nem água, nem plantas, só ouro. ‘Seu Bonfim’, a voz macia de reza que era tão boa de ouvir, ‘o senhor é meu dono, quero que veja o dia e a noite dos meus olhos.’ Olhei, eles faiscavam.”
— Cleto Bonfim, você está contando coisas que não deve. Não quero ouvir suas intimidades, coisas de seus romances, amores loucos, que me perturbam — disse Clément, nervoso.
“Você precisa saber, compadre. Não posso guardar meus sonhos nem minhas passagens, nem minhas noites de turbilhão e mistério. Isso tudo está dentro de mim, pesa, preciso descarregar. As surpresas e novidades vieram como as chuvas de janeiro, muitas e fortes. Sabe o que aconteceu?”
— Não me conte. Não quero saber. Volte para seus infernos, com suas confissões e picardias.
“Saraminda era virgem!” exclamou Cleto Bonfim.
— Mulher de bordel virgem? Você ficou besta demais, Bonfim.
“E eu mais ainda, ouvindo esta conversa do que ela dizia: ‘Bonfim, a virgindade para os homens é mais forte que para as mulheres. Eles fazem muito gosto disso. É coisa que em mulher não pesa nem aparece. Não se sabe quando tem ou não tem. Ela está é na cabeça. Mas, quando elas amam, mesmo possuídas, a virgindade volta, e volta a honra.’”
“Clément, avalie Deus o sentimento de loucura que me invadiu. Fiquei alucinado, o coração disparou, e fui eu que corri e apaguei o candeeiro. Naquela noite, ela em minha cama, mais aninhada do que juriti. Saraminda era a cobra e a anta nova. As águas caíam, goteiras na madrugada, chuva que não acabava, frio das gotas da noite, cachoeiras, tropas, tropeiros, ondas, ventos e marrecos nas carícias, garças voando, e a boca do dia mais longe, batendo, batendo. Os tormentos e lamentos da doce mistura faziam a felicidade limpar meu rosto. Era um campo verde, aberto, sem fim, tudo de amor.”
Cleto baixou a cabeça. Depois a ergueu bruscamente e disse devagar: “De noite chegou, era moça. Amanheceu, era mulher”.
— Não, Cleto, cale-se, mentiroso devasso.
“Foi verdade, Clément, Saraminda entregou-se na flor da pureza. Guardou-se para mim. Era destino.”
Clément levantou-se e chorou, tomado de uma comoção sem freios. Lucy perguntou:
— Que aconteceu com você, homem?
— É dor de quem não se banhou na água da cachoeira nem jamais sentiu o gosto de uma abelha-rainha.
9
Um amor em viagem
Como eu recordo a viagem para o garimpo do Lourenço, depois que ela veio para mim. Eu estava numa felicidade que crescia cheia de coisas estranhas. Não era uma viagem. Nunca foi uma viagem. Era tudo diferente. Quantas vezes fui a Caiena? Quantas mulheres levei para Calçoene? Era sempre uma festa. Elas embarcavam pensando na volta, e eu em mandá-las embora. As luzes da noite passavam e seus rostos já não eram mais os mesmos. As mulheres estavam feias, amarelas, dentes desalinhados, falhados, secos. Nada disso se percebe na noite. Marie Turiu se encarregava de arrebanhá-las e enfeitá-las. Sabia quando eu chegava, preparava tudo para que me divertisse, e eu gostava de trazer as mulheres para o garimpo. Era um brinquedo muito triste esse jogo de gostar. Ponta da minha vaidade, da tristeza, da aventura. Não era nada que na verdade justificasse distrair a cabeça de um homem. A mulher se tornava uma boneca frágil. Quando chegava, mudava o ambiente, a curiosidade surgia, os homens se excitavam, porque ali eram proibidos mulher e jogo, e isso não saía da cabeça de todos. Mas eu podia. Minha força impunha a ordem e as desordens. Eu podia tudo. Eu, não, o meu ouro. As mulheres vinham sonhar com o futuro cheio de gramas de ouro. Eram garimpeiras da alegria triste. Não tinham que ir à bateia. Recebiam em Caiena. Quase sempre eu me enjoava delas e as mandava embora.
A voz de Saraminda: “Seu Cleto, eu sou sua, você pagou.” Que história é essa? Paguei para dar vida ao garimpo. Mulher nenhuma me prendeu, me amarrou nem teve coragem de levantar a voz ou dizer não. Eu sou, eu era Cleto Bonfim.
Tudo mudou quando Saraminda me disse que eu não deitava com ela senão depois de receber o ouro. Mulher nenhuma nunca pensou que eu não fosse mão aberta com elas. Se já não houvesse um feitiço mudando Cleto Bonfim, eu tinha lhe dado uns tabefes, surra de cinto, pontapés, bogues e mandava embora. Mas eu não era mais eu. Os olhos verdes no corpo preto, os seios amarelos, aquele campo sem capim, a voz de reza, o escorregadio de cobra me enfeitiçaram. “Sou sua, você me fez coisa sua.” “Minha, não. Só é meu o que eu quero e eu nunca quis mulher minha, sempre quis mulher no meu ouro e não no meu coração.” Sempre julguei que elas eram como prato de louça, quebra-se e compra-se outro, como alguidar, troca-se, põe-se outro no lugar. Mas ela falava como se tivesse de morar firme no garimpo e ficar comigo, coisa de ajuntamento para valer. Foi a bebedeira que me custou a vida. Dez quilos de ouro não foram nada, eu nasci sem um grama. O caro foi minha vida e essa mulher pregar-se em mim. Mas me deu felicidade, e isso vale. Eu, Bonfim, fiz coisa nojenta que nunca pensei fazer. Logo eu, beijando porcaria de mulher. Mas ela pediu: “Cleto, me olhe, me veja.” E eu vi, e me deu uma sujeição tão grande, uma vontade de fazer carinho, que eu beijei. Era um beijo gordo, ela suspirou, pedindo ar. “Me beije com vontade, Seu Bonfim.” E foi agarrando meus cabelos, empurrando minha cabeça, puxando e abaixando. E ela, passando a mão em minhas costas, eu sentindo o cheiro do seu corpo. “Quem lhe ensinou essas coisas, se você era mulher que homem nenhum tinha conhecido?”
“Bonfim, não sou mulher costurada, como essas moças de Caiena que querem enganar os homens. Sou como a natureza fez. Eu conheço muitas bruxas que fazem tricô em mulheres.” Eu não gostava de créolese gostei dessa. Muitas vezes tive mulheres de todos os tipos. Algumas de sangue francês, outras holandês, e outras guianas sararás, dessas que vinham atrás de condenados, irmãs, mulheres deles ou da família deles; tive mulheres dos chinos de Caiena e marajoaras do Pará, baixas de corpo bem-feito, arrebitadas, bonitas de rosto, cabelos longos, e mulatas de trejeitos e caboclas abertas. Me juntei com uma índia e com outras de que não me lembro. Tive muitas, de aventura mesmo ou deserdadas da sorte que eu levava para meu barracão. Mas enjoava logo, as alouradas me cansavam os olhos, tinham a pele de osga, e muitas eram enxeridas. Os garimpeiros gostavam de cabeça alaranjada. Uma dessas, de nome Tatie, fez tanta coisa que, quando voltou, um grupo saiu para atacá-la na mata e foi oito vezes possuída. Ficou muito machucada e apostemada da bondade. Eu soube e mandei dar em cada homem trinta chicotadas de pau de goiaba para punição e exemplo. Mulher, mesmo da vida, se deve respeitar. Esse foi meu jeito. Eu respeito mulher e mulher nunca tomou liberdade comigo. Eu sempre fui macho, até aquele dia em que eu desconfiei de Kemper, aquele nojento, barba de fogo.
Eu, Cleto, me lembro do desembarque no porto do Calçoene. “Me segure pela mão, Seu Bonfim, eu quero entrar na canoa.” Com cuidado, peguei aquela mão de dedos curtos, agordados, com a palma cheia, que colava na mão da gente como se fosse o corpo todo. Carreguei nos meus braços mulher comprada, mulher livre de garimpo. Eu, Bonfim. Ela sentou no banco perto da popa da canoa. Os remos começaram a deslizar e iniciamos a viagem até a segunda cachoeira do rio. Lá, esperamos que o leito subisse, que fosse na nossa frente para ter o domínio das águas. Eram muitas embarcações com mantimentos, caixas de querosene, paneiros e mais paneiros de gurujuba seca, sacos de farinha, charque, feijão, pólvora, espingardas, barris de banha de porco, temperos e muito sal. Uns fardos de brim de algodão grosso para dólmãs e calções. Confecções de tipo variado. Iam também os remédios e purgantes Le Roixe penico com tampa para que Saraminda não fosse no mato. Eu, Bonfim, já estava perdido. Não sei por que fui comprar penico, mas queria que ela não mostrasse suas partes, nem para o chão, fazendo necessidades no chiqueiro, aonde todo mundo ia, no buraco da latrina com aquele cheiro danado e as minhocas fervendo embaixo, moscas, mosquitos, varejeiras. Mas levei. Era um penico alto, de beira azul e tampa com uma bolota no meio, também azul, onde se pegava para suspender. De manhã, os empregados vinham e levavam a porcaria para despejar e lavar com água fervida, e ela depois quis a novidade de lavar o urinol com água de hortelã. Eu, Bonfim, nunca sentei em penico. Não sou fresco para mijar sentado. Sempre fui homem de força e não gosto de mesuras.
“Compadre Cleto, você só trouxe essa créole?” perguntou Astrolábio, quando desembarquei: “O que houve? Aqui no meu porto você nunca voltou senão com um batalhão!” Era meu representante, dono do comércio no lugar, meu amigo. Mas fui duro com Astrolábio, grosseiro, coisa que nunca fiz com ele, cortei o comentário: “Compadre, não gosto de liberdade. Não lhe dou o direito de falar da minha vontade nem da minha vida. Trago o que quero, sem dar satisfações a ninguém.” Ele saiu de lado: “Pois bem, fico calado. Não é da minha conta.” Mas ficou tão contrariado que ainda me lembro de sua cara. Saraminda saiu, sentou-se num banquinho e se encolheu toda. Estava como se fosse uma andorinha molhada, toda triste, pousada numa estaca. O cabelo descobria-lhe o cangote roliço. Aí eu vi outra bondade. Tudo nela era beleza. O pescoço era de um preto esbranquiçado e brilhava. Tive vontade de beijar, beijar com força, ficar deitado nele, mas me controlei, não dei modos para não verem onde estava minha bestitude.
Nossos homens atolaram até o joelho no porto de atracar. Seguraram o bote e foram retirando a mercadoria para preparar a viagem na mata, os dias de subida do rio, a estrada de pântanos, caminho sujo, molhado e frio. O garimpo ficava longe unas trinta léguas, mais de semana de viagem, entre a mataria grande, cheia das surpresas da floresta. Saraminda não perguntava nada, quero dizer, ela perguntou, uma pergunta que me deixou sem resposta: “Seu Bonfim, quanto tempo o senhor vai querer de mim?” Tomei um susto. Será que já estava pensando em me deixar, na sua cabeça não estava ficar comigo para sempre? Como falar de tempo para voltar? Sem me assustar, eu disse, julgando ser Cleto Bonfim: “Quanto eu quiser.” Ela ficou calada e eu, arrependido. Minha resposta devia ser: “Nunca você me abandonará.” Eu já estava certo de que ela jamais voltaria, que eu era dela e não a largaria nunca. Queria que fosse sempre minha. Em minha cabeça a felicidade estaria quando eu fosse leiloado: “Quanto dão por Bonfim?” e ela dissesse: “Dou vinte quilos de ouro e toda a minha vida.” Eu não devia ter falado o que falei. Por que ela perguntou? Era para saber de meus desejos, sabendo da minha fama? Ela não tinha dito que era minha, mercadoria minha? Por que perguntar? Logo senti que meus pensamentos mudavam e que agora minha mente era um depósito de perguntas de desconfiar e duvidar.
“Saraminda, você já andou nos caminhos da mata?” “Nunca, Seu Bonfim.” Que diabo. Aquela créoleque me inspirava ser uma força de aventura, capaz de enfrentar tudo, me parecia frágil, indefesa para aqueles lugares, poderia gastar os pés, sentir o silêncio aterrador da floresta, dormir debaixo dos paus, atravessar rios, riachos e alagados e lutar com os mosquitos.
Era um caminho longo, de onde muitos não retornavam. E eu, Bonfim, preocupado com aquela créole, que era como mulher qualquer de alegrar as noites quentes do garimpo. Quando que me preocupei com viagem de mulher? Quantas vieram, andaram, racharam os pés, pegaram malária, ficaram na estrada, ou voltaram do meio ou não voltaram? Isso nunca foi minha preocupação. Mas agora eu só pensava nela, queria que não ferisse os pés, que seu sangue não fosse comida de carapanã, que não tivesse medo, que não pegasse febre, que estivesse sempre alegre de minha proteção.
Foi quando me veio a idéia de levá-la na taboca, como se transportam os doentes e velhos, com mosqueteiro de filó e abanos de pindoba. Mas eu, Bonfim, ter coragem de falar aos homens que ia levar aquela mulher na taboca? O que não iam pensar e dizer? Era comprometer minha autoridade no garimpo com essa fraqueza por mulher. “Bonfim trouxe uma créolena taboca, toda dengosa!” Isso era vergonha. E recrutar os homens? Teriam de ser no mínimo oito carregadores para as oito horas diárias de viagem. E mais dois para o eventual de alguma baixa. “Saraminda, você vai na taboca.” “Sim, senhor. Do jeito que o senhor quiser. Me beije, Seu Bonfim.” Mulher danada. Como poderia beijá-la ali? “Aqui não pode.” “Me leve para o depósito da quitanda.” Ah, os homens a olhavam desconfiados com cara de sorrir e sem dúvida matutando: “Que diabo Bonfim está fazendo com essa mulher?”
Mas ela era ardilosa: quando dei por mim estava beijando seu pescoço no quarto da quitanda, acariciando seu rosto, apalpando seu corpo e, depois, resoluto e enérgico, dando ordens: “Preparem uma rede nova, uma taboca grossa e firme. Celestino, providencie oito carregadores bons, de passo macio, para levar Dona Saraminda para o garimpo nas etapas de chão.” Foi uma surpresa geral. Não por carregá-la, o que já era muito, mas pelo tratamento de “Dona”. Dona Saraminda. Essa créole, mulher de garimpo, “Dona”? Onde Cleto estava com a cabeça?
*
A noite chegou. Todos foram para o barracão de comer, Cleto e Saraminda caminharam para dormir na casa de Astrolábio, no quarto onde tantas vezes ele ficava nas paradas de desembarque. De manhã cedo, no outro dia, era a hora de pé na canoa e na estrada, madrugada escura e o encontro do sol no caminho.
Saraminda pegou sua trouxa e, sob a luz da lamparina de morrão, abriu-a lentamente. Cleto olhava. Dela retirou uma rede branca de algodão, de varandas de renda, feita de linha inglesa que luzia como se fosse engraxada, bela e fina, coisa rara naquele mundão perdido. Cleto se espantou: “De onde você trouxe essa rede?” “Comprei para dormir com você.” Armou-a com fortes nós nas escápulas, despiu-se, deitou-se, apagou a luz e suspirou:
— Vem, Bonfim.
Foi aquela a primeira noite em que sentiu o selvagem calor da floresta, a úmida vaselina da carne derretendo nos vapores da mata, coisa estranha, o suor grosso do corpo de Cleto Bonfim.
10
Os dias em que o céu era vento
Quando foi o dia em que nasceu meu desvario, essa minha paixão que me tomou os ossos, quebrou as pernas de minha cabeça e me fez charco? Deve ter sido quando apaguei o candeeiro. Eu, Cleto Bonfim, enfeitiçado com os engonços dessa créole. “Seu Bonfim, me beije”, e não me deixava dormir. As chuvas no garimpo, as tempestades e os trovões. “Seu Cleto, tenho medo de raio. Venha deitar mais eu, aqui na cama. Cubra o espelho.” E suas mãos postas em reza enquanto pipocavam no céu os rojões da morte, faíscas cruzando a mata e os ribombos dos elementos.
Era nas tardes que sempre chovia. Tudo começava quando eles vinham, aqueles carneiros pretos crescendo, enchendo de lã escura o horizonte do céu. Fugia o sol, começava uma luz triste, depois um cinzento de nuvens, logo depois aqueles rebanhos de montanhas pretas gigantes passando para lá e para cá e o vento acompanhando forte, de rajada, de lapada, espanando as árvores, os galhos balançando como se fossem quebrar e as folhas correndo loucamente, carregadas pelo vento, atrás dos coriscos. A mataria era só agitação, os pássaros fugiam, voavam na frente das nuvens pretas, ao sabor dos redemoinhos. E lá vinha a chuva, a gente via a bicha chegando, aqueles riscos que ligavam o céu e a terra, caindo em pingos e não pareciam água, eram uma cortina de véus cinzentos, um leito de gotas em fumaça, como saias, vestidos feitos de água. E então o chuvaréu descia, em pencas, borbotões grossos, zoando nas folhas, um chiado firme, como se fosse carícia mas de mãos violentas, e alisava, invadia a floresta, escondia as árvores, tapava tudo, não se enxergava mais nada, tudo escuro, tudo triste, e surgia o pé de trovão, os estalos dos raios fedendo a enxofre. “Seu Bonfim, me guarde, eu tenho medo de trovão, me cubra com meu vestido de seda, que espanta raios.” E eu a cobria enrolando os pés, protegendo-lhe o corpo, com o carinho todo, e pedia que não tremesse, segurava suas mãos, eu, Bonfim, besta que nem tamanduá, preso pelas amarras daquela fêmea que tinha o cheiro da chuva. E era tudo cinzento, e chovia chuva de tarde inteira entrando na noite, e a caravana de nuvens troteando no alto do nosso barraco.
“Seu Bonfim, me proteja.” E depois, as manhãs abertas de sol, eu sentado ao seu lado, sem vontade de sair para o trabalho, querendo ficar ali a manhã toda, o dia todo, o tempo todo, besta que nem jumento em beira de rio.
“Me conta, filhinha, história de tua vida, de quando você era criança.” E ela debruçava a cabeça no meu colo, e eu mirava os olhos verdes de onça preta me olhando, me olhando, e sua boca abrindo, derramando palavras que eu juntava nos meus ouvidos e brincava com elas, querendo que não fugissem de minha cabeça, guardadas a sete chaves em cofres de chumbo.
“Eu não tive mãe de carinho. Quem me deu afeto e ternura foi minha avó Balbina.” A voz era de anjo. “Bonfim, me leva para a cama.” Era de manhã, o garimpo me esperava, e eu na cama, porque ela tinha seus dias em que só me recebia de manhã, outros à tarde, e os demais à noite. E quando ela mandava portador me chamar no barracão: “Diz a Cleto Bonfim para vir urgente aqui.” E eu ia e ela me dizia: “Cleto, eu estou desejando você. Larga tudo, deita comigo.” E eu deitava e assim queimava a sarrapilha da minha lontana. Os tempos de suas crenças nos astros foram outros difíceis. Tinha lua nova e lua cheia, não podia me receber no quarto minguante, e eu ficava doido, mas não tinha jeito. Queria seguir as educações da benzedeira em que ela acreditava. Foi a primeira vez em que me falou em ter um filho e nunca encheu a barriga de menino. Não era por mim, pois emprenhei oito mulheres, desde o garimpo do Chiqueirão, passando pelo Lourenço, Vila Nova e Aporema. Depois que Saraminda se entregou para mim, outra mulher não tinha mais gosto. Não sei se foi feitiço ou bobeira de homem enrabichado.
“Seu Bonfim, eu não quero o senhor de bigode”, e o besta foi raspar. Depois: “Seu Bonfim, deixe crescer o bigode”, e eu deixei.
“Vou lhe contar a minha infância. Descobri meu corpo quando tinha oito anos. Fui me banhar no poço e me olhei nua. Só então vi meus peitinhos que nasciam, já despontando o amarelo dos bicos e, embaixo, Seu Cleto, eu via que não era igual às outras mulheres. Sempre fui despojada.” Ela se mostrava e contava essas histórias para me prender.
Meu ódio por ela eu não sei quando foi, porque nunca nasceu. Minha raiva era amor, raiva de ter ciúme. Foi quando comecei a me perguntar: “Será que Kemper alguma vez tocou o corpo dela?” Só essa idéia me levava à loucura de cachorro perdido. Eu precisava matá-la, antes que ele a tocasse, mas eu não podia viver sem tocá-la, sem suas noites, sem suas rezas. Eu, Bonfim, mais besta do que boi morto, galinha velha, jacaré no choco, vaca atolada.
Eu, Bonfim, atrás de rezadeira, tomando banhos de erva, que aquela miserável bruxa me receitou. Eu, Bonfim, que preferia morrer de morféia a perder Saraminda.
Foi no dia em que me falou do seu corpo de menina que ela me pediu o vestido.
11
Um vestido de noiva
“Nos primeiros dias, a mata cheirava, um cheiro bom que invadia o barracão, e tudo foi ganhando um perfume delicado e longo. Primeiro, as mãos começavam a colocar os objetos, as flores do mato, os paus serrados que eram os bancos, os enfeites de galhos de árvores e o encanto do espelho pequeno que ela pregara na parede de tábua, onde passava o dia todo mirando-se, virando o pescoço, deslocando a cabeça. Eu achava que aquilo era bonito e simples, coisa que não tinha fim, e perguntava: ‘Você está feliz?’ ‘Estou, Seu Bonfim.’ E ficava cismando, o olhar no espelho, vendo que vendo a si mesma. E comecei a pensar como seria guardar aquela mulher naqueles silêncios da selva perdida.
“E o que aconteceu um dia depois da sua chegada? Ela chorava, indefesa: ‘Bonfim, pelo amor de Deus, Seu Bonfim!’ E quando eu vi, ela estava tomada de um pavor estranho ante uma aranha-caranguejeira preta, com as pernas alongadas, que em passos intermitentes caminhava perto de seus pés. ‘Saraminda, não tenha medo, vou matá-la!’ Eu, Cleto Bonfim, sujeito a esses modos delicados que jamais pensei ter. Eu, que sempre fui duro e firme, nunca mulher nenhuma me fez cócegas.”
Clément interrompeu:
— Compadre Bonfim, essas histórias já estão perdidas no passado. Pare. Você não se lembra, quando voltei do Calçoene, trouxe cinco quilos de ouro, ninguém acreditava que tinha mais ouro na Guiana, e eu chamei o povo todo, e foi preciso eu colocar em cima da mesa para que vissem que havia ouro no Contestado do Brasil. Caiena tinha onze mil almas. Era pequena demais. O incêndio de 1888 tinha acabado com a zona do comércio, o mercado, a polícia e a Prefeitura da Place Gambetta. O negócio que mais rendia era a babugem de vender para a França nozes de perfume, água-de-rosa, cacau pilado, urucu em pasta e rapapa, pássaros como aigrettee grande-branco, grande-cinzento e grand-grosierempalhados. Eu tinha chegado de Calçoene no barco chamado Fé, do mestre Francelino, e em Caiena estava atracado o Meteor, aquele navio que fazia a linha da França e tinha como comandante o Capitão Edouard.
Lucy pegou a toalha velha e caminhou para a bacia de cristal azul, bordada a fogo com flores de rosa, e pediu:
— Clément, pára de falar só, estas coisas me causam tristeza e abalam minha velhice. Não gosto de ouvir o passado. O tempo antigo é sempre cruel. Você está caducando e repetindo sempre essa história que todo mundo sabe de sua volta a Caiena com notícia do ouro.
— Estou conversando com Bonfim.
*
Ao lado de Bonfim, uma figura de mulher. Seu rosto estava coberto e ela escondeu-se nas sombras. Rejeitava a luz. “Quem é você?” “Sou Artônia, a feiticeira.” “Por que você veio me visitar?” “Porque eu estou atrás de Bonfim. Quero saber quem mandou me degolar, se foi ele ou Saraminda, que tinha medo do meu poder de adivinhar. Por que ele mandou me matar? Se eram ciúmes de Kemper por parte de Saraminda ou de Bonfim com medo de eu matá-la? O mistério da minha morte me persegue.”
— Vai em paz, alma penada — disse Clément.
*
“E os dias seguintes à chegada? Saraminda pediu uma casa, uma casa, Clément, queria construir uma casa, moradia de Caiena no Limão, conforto que não fazia parte das coisas do garimpo, que tinha somente barracos e barracões, tendas e malocas. ‘Quero uma casa créole’, pediu. ‘No estilo das tábuas cruzadas, pintadas, de teto de madeira em losango, de varanda alta e corredores amplos.’ E eu pensei logo em fazer a casa. Mas quem sabia construir uma casa dessas ali? Mandei buscar um mestre em Caiena, gente especialista e oficial reconhecido. Ela queria que fosse toda de pau-rosa e pau-roxo, que fosse de andiroba pelo cheiro da tábua, que tivesse um só pavimento, que seu quarto desse para a mata, que fosse construída no alto, pelo lado da queda do riacho, e que tivesse uma vista para baixo, aberta, para ver o formigueiro do garimpo. Contratei carpinas de longe e trouxe todo o material. E mandei fazer. E ela explicou como queria a residência: o corredor circulando a casa, com aberturas de portas para dentro, onde pudesse botar esteiras ralas para o vento entrar. ‘Saraminda, aqui não é Caiena, os alísios do mar não chegam, é só vento da floresta.’ ‘Mas você constrói lá em cima e eu vejo na minha cabeça o mar de Caiena e o vento vem. Quero ela pintada de verde bem vivo, de amarelo e de vermelho, igual àquela casa que existe na Rue d’Enfer. Quero os parapeitos de grades com tábuas de pau-rosa.’ Tudo que ela pedia eu fazia. Gastei mais de ano para que ficasse pronta. Ela queria que a varanda lateral fosse toda fechada na frente, com uma só porta, do jeito da capela créolede Caiena, e depois não quis mais que a varanda fosse tapada na frente, exigiu que a porta fosse recuada, que tivesse um alambrado de ripas encruzadas, que o seu quarto ficasse no antigo lugar da varanda, duas janelas abertas embaixo, para ver as casas de palha e os barracões. E assim se fez. Várias vezes ela mudou de vontade, fazia e desfazia, modificava, e os mestres ficavam sem saber como ela queria.”
“A casa ficou escondida na mataria, lá em cima, com duas massas de mato de cada lado, meio enviesada, para que seus olhos pudessem ter a vista que queria. No final até que resultou bonita. Os caminhos para ela subiam em ‘v’ e por trás da mata grande vinha o córrego, escorrendo água fria e cristalina, passando quase debaixo de sua janela, onde os pássaros iam beber e os cachorros chegavam após algum tempo.”
“Algumas semanas da casa concluída, eu lhe comuniquei que ela ia ficar como mulher minha, do meu carinho. ‘Então, Bonfim,’ ela me pediu, ‘mande buscar em Caiena um vestido de noiva, eu quero um vestido de noiva, sempre desejei um vestido de noiva. É meu sonho desde menina. Se vou ser mulher de respeito sua, quero um vestido de noiva.’ ‘Mas eu não vou casar, que não é coisa de meu costume e aqui não tem padre.’ ‘Não estou falando em casamento, Bonfim, minha alma já está casada com você. O que eu quero é ter um vestido de noiva, bem bonito, pregado na parede para eu olhar e pensar no dia em que me casei com você, e usar quantas vezes eu tiver vontade. Quando ele chegar, vai ser de novo como no primeiro dia.’”
“E eu, Bonfim, mandei buscar o vestido. Ele subiu sete cachoeiras, em canoas, protegido por esteiras de buriti, guardado numa caixa de madeira, encomenda de capricho, carregado em cabeça de pretos saramacas, coberto com meaçabas contra chuva, eles sabendo que era coisa de estimação, que se tivesse algum dano pagariam caro. E quem não respeitava as vontades e mandados de Cleto Bonfim, que eram os de Saraminda? Lembro-me da minha felicidade ao ver esse vestido branco acariciado nas suas mãos, levado para sua rede, estendido em seus braços, recebendo beijos. Até que ela me segredou: ‘Cleto, esse vestido vale mais do que o ouro com que você me comprou.’ ‘Eu não comprei você, foi um presente meu.’ ‘Não, Cleto, eu não esqueço da emoção do leilão.’ ‘Não fala isso, não. Olha o vestido.’ E o vestido tinha uma saia longa de organdi, bordados rendados e uma grinalda de flores de laranjeira feitas de cera.”
“Ela vestiu-se, com toda a cerimônia do ato, ajudada por Maruanda e por mim, abrindo a saia, esticando o véu, desdobrando anáguas de linho, e pediu-me para não tocá-la. Rodopiava como uma criança dentro do quarto. Depois me agarrou, dançou comigo, me beijou, largava as mãos, abria os braços e tomava ar, respirando fundo, rodando por todo o quarto. Até que se deitou e pediu que a despisse. Ficamos sós. Mandamos as empregadas embora, e eu fiz o que ela pediu com todo jeito e ela foi adormecendo, tanto que não houve como acordá-la. Era um sono de felicidade. Deitei-me ao seu lado, ela respirava fundo, sorria, mas dormia. Lembro-me de que nessa noite, só agora eu sei por quê, piou uma coruja agourenta que não saía do canto da casa e que me perturbou o matutar naquele encanto. Saí para matá-la, mas não a encontrei. Ela piava e eu só temia que o pio acordasse o sonho de Saraminda. Não sabia que era agouro.”
“Aquele maldito vestido!”
— Cleto, eu não sei do que você está falando. Retire seus pensamentos da morte. Ninguém soube que você se casou — disse Clément.
“Eu não me casei. Ela somente se vestiu de noiva. Melhor seria se tivesse me casado, eu marido dela, minha esposa, é uma idéia que me faz pensar que eu teria tido mais esse presente que não tive. Mesmo que depois fosse agonia.”
Lucy lavava as mãos na bacia de cristal azul. Ela não entendia como se podia falar sozinho, sem saber que sozinho Clément Tamba não estava.
— Lucy, você também já morreu?
— Isso não faz nenhuma diferença, Clément. Nós estamos mortos. Caiena já morreu. Morreu conosco. Você se recorda da cantoria no cemitério, a festa das luzes, o povo todo rezando? É o dia mais bonito de Caiena, o dia em que nós lembramos nossos mortos. Com os cantos e as velas na noite de Toussainte as flores multicoloridas. Ninguém está mais aqui. Veja suas mãos.
Clément viu as mãos encolhidas. Estavam estriadas, a pele seca, os ossos inchados nos artelhos.
— Lucy, procure minhas apólices do Banque de laGuyane.
— Clément, não existe mais o Banque de la Guyane.
— Então, mande tirar uma passagem no Belle de Martinique. Preciso ir a Paris, saber do meu ouro — divagou na memória embaralhada.
— Nosso ouro não tem mais valia para nada, ele é areia.
—Isso nada tem a ver com nossas vidas.
“Que vidas?” — disse Cleto, entrando na conversa.
— O ouro do Contestado era mais nosso do que dos brasileiros, que nos expulsaram e nos botaram para fora – falou Clément.
“Nós descobrimos o ouro do Calçoene”, disse Cleto.
— Mas fomos nós que o exploramos, comandando de Caiena os barcos de Belém do Pará, que eram canoas grandes. Levamos para Calçoene navios, troles, vocês não sabiam o que era o lontana, só conheciam a bateia. Levamos as chanquées[12]e todo o equipamento para tirar ouro das jazidas — repetiu a mesma conversa que enchia os vazios das reuniões no garimpo.
“A França me entregou Saraminda, que nunca aprendeu a falar direito o português.”
“Como eram tristes os dias de chuva. O chape-chape nas tábuas de nossa casa. Num dia assim, ela me pediu para tomar banho na bica do nosso telhado. Mandei expulsar todos os criados, que eles descessem o vale e só voltassem depois da chuva. E ela se banhava, e a água do céu corria sobre o seu corpo em cachoeira, caindo com espumas do céu. Eu tive vergonha de mim, fugi, me escondi no quarto e quis vestir meu calção. Ela chorou. Como essa mulher mudou? Quando eu a levei e ela saiu do Tour d’Argentera toda espevitada, jeito de vigarista, com aquele rebolado de prostituta. E foi chegar na minha casa, mudou e veio com uma vozinha de reza, trejeito de dengosa, deixou cair a vestimenta da mulher depravada para entrar na minha vida. Talvez eu tenha sido ingênuo. Não era para acontecer a moleza que me deu, a mexida que aconteceu na minha cabeça. Ela foi me desmontando, e, quando dei por mim, já estava mordido. Não só o meu corpo, era minha alma. Eu me banhava em felicidade só em pegar um dedo de sua mão e passar na minha barba, eu, Bonfim.”
Cleto aumentou a voz, gritou: “Cleto Bonfim”, um grito de raiva. Foi um grito tão forte que Clément tapou os ouvidos para que não estourassem, e Lucy não ouviu nada:
— Tapa os ouvidos, Lucy, senão você vai ficar surda. O berro de Bonfim é um estrondo, um trovão, um canhão. É de demônio atormentado.
— Que Bonfim?
— É uma cobra que está mordendo.
“Aquela noite, Saraminda tinha os olhos verdes faiscando no meio da escuridão. Ela sonhava andando. Passou a falar dos palacetes de Paris, ela que nunca esteve lá. Só podia ser espírito que baixou. ‘Olhe o Sena. O Louvre. O rio deslizando. A Place de La Concorde, Place des Vosges…’ ‘Saraminda, que Sena?’ ‘O rio deslizando. Ele vai bater em Le Havre, Honfleur, no mar…’”
“De madrugada, ela acordou. ‘Cleto, me coloca na rede e vem dormir mais eu.’ O vestido estava pendurado na parede.”
“Os seios amarelos acenderam, e então cabelos balançaram em meus olhos e eu não vi mais nada.”
“Voltou a chover no garimpo e a manhã era escura como o fim da tarde.”
*
O garimpo do Limão ficava meia légua antes do Lourenço e era só ouro. As bateias rendiam mais de cinqüenta gramas. Eram encontradas pepitas por todo canto, até nos grotões tinha ouro. Todos os barrancos eram bons. Desde a Vila do Firmino, da primeira cachoeira do rio Calçoene, eram trinta léguas, incluindo a viagem no rio, enfrentando as corredeiras da Queda da Morte, Ananás, Travessão, e o caminho da mata, a subida e a descida dos ondulados, onde as árvores cresciam até o céu, na variedade de espécies, o cumaru, a castanheira, a andiroba, o guajará, macacaúba, saboeirana, palmeiras de todos os feitios, o buriti, a caxirama, o anajá, o miriti, a bacabeira, o tucum, a paxiúba, e, nos pântanos, o mururé, o aguapé, a aninga, a canarana, e a munguba grande vigiando as bordas.
Depois do brejo, do atoleiro do Cruz-Credo, do Limão e do Lourenço, surgia misteriosa a montanha do Salomoganha. Suas raízes suavam ouro. O cumaru só dá onde existe ouro, e o pé da montanha era só cumaru de fava cheirosa.
Os brasileiros do Pará e do Maranhão chegavam em bandos, assim como vinham da Guiana os franceses créoles. Caiena ficava mais perto, atraiu mais gente, pois o acesso era mais fácil, e logo se descobriu ouro também nas bacias dos rios Cunani, Caciporé, Carnot, caudais soberbos que desciam dos contrafortes do Tumucumaque correndo na direção leste, rumo do mar oceano. Os franceses já conheciam os mistérios de explorar minas, acostumados a lavrar o rio Approuague, na febre das descobertas que fizeram a ascensão e a decadência da Guiana, na explosão e na exaustão do ouro.
No Contestado do Brasil, imensa floresta entre os rios Oiapoque e Araguari, na área do Calçoene, os franceses créoles logo fundaram sua vila, a corrutela do Limão, onde Saraminda quis morar. Cleto residia na outra povoação,Saint-Laurent, depois Lourenço, trepada na crista dos morrotes, cercada de vales onde se entremeavam os barrancos, todos auríferos.
*
“Eu, Cleto Bonfim, brasileiro de Cametá, rei do ouro do Calçoene, cabeça do Lourenço, aceitei morar no Limão no meio dos créoles! Fiz casa. Meu barracão do Lourenço ficou como local de trabalho e habitei a outra casa, minha e de Saraminda, no meio deles, porque era sua gente. ‘Bonfim, eu não falo português. Melhor para mim lá, onde minha língua é geral.’”
“Quando lhe fiz a vontade, ela me disse: ‘Cleto, agradeço a felicidade de morar aqui, atrás do morro, junto das árvores, numa casa grande, que você fez com madeira cheirosa e de lei, para que todos digam sempre que é a mais bonita, que é coisa sua, que é melhor do que as de Caiena e parece com as de Paris. Cleto, me beija.’”
“E eu, Cleto Bonfim, beijava e babava de besta. ‘Obrigado, meu anjo.’ E vinha a voz de reza, aquela coisa de sussurro de água, e eu caía. Quantos quilos de ouro transformei em tábua, em talhas trabalhadas, enfeites de oficiais carpinteiros que mandei buscar? Tudo para me matar.”
— Mas eu achava minha casa mais bonita — disse Clément. — Era pequena, mas era bonita, feita com bom gosto na melhor classe da casa créole. Ali, tive os dias melhores de minha vida. Foi ali que vi o chinês Li Yung arrancar aquela pepita de dezessete quilos, que me deu para guardar. Estava suja e suas mãos tremiam com o peso. Disse-me ele: “Guarde aqui, seu Clément”. Ninguém furtava nada. Todos sabiam que ninguém saía com vida de qualquer roubo. Ninguém desrespeitava a lei dos homens. Mas, compadre Bonfim, no dia em que saí do Limão e vi minha casa em chamas, eu chorei, chorei por dentro e por fora. Foi cruel. Nasceu ódio nas pessoas contra a França. E nós fomos abandonados pela França.
*
Cleto Bonfim lembrava-se de como estava atordoado no dia em que soube como Saraminda andava.
Era uma sexta-feira. Em frente ao barracão, a galinha saiu batendo asas, cantou esganiçada, fugindo de algum bicho que quisesse mordê-la. O porco veio atrás, raça baé, de pintas esbranquiçadas em couro preto. O cabra Terêncio, que estava perto, afastava-se, com medo de ser sujo pelos grunhidos do animal. O porco esfregou o focinho no chão, arrastou-se, cheirando e tentando descobrir comida. “Como Taíta não põe comida para os bichos?” “Olhe, Bonfim, aqui não tem comida para muita gente, por que ter sempre para os bichos?” A manhã era morna. Nuvens escuras e baixas produziam uma sensação de umidade e abafamento. Terêncio voltou ao banco onde esperava as ordens. Cleto Bonfim estava pensativo e não falava. “Por que hei de falar, só quero pensar.” Taíta pediu-lhe conselho sobre como devia fazer o almoço, ele nada respondeu. Ela cuspiu no chão, limpou a garganta e resmungou: “Se você não quer falar, não fale, agora eu vou fazer o almoço que quiser. Pode ser até bosta de porco com feijão de corda.”
Cleto não dizia nada, pensativo. Ao entrar em casa, viu aquilo. Como podia ser? Espantou-se, sem nada entender. Olhou de novo e de novo não entendeu. Desviou o olhar para a janela e viu o galho da sororoca que crescia do lado de fora com as folhas verdes e esguias. Mais adiante a munguba grande, com castanhas marrons e muitos papa-capins pulando de galho em galho. Voltou o olhar. A varanda alongada, clara, os raios de sol atravessando as janelas e, no meio da habitação, Saraminda nua. Não acreditava no que via. Nua, completamente nua. “A mulher enlouqueceu!” Como, com aquela paisagem na cabeça, ele podia falar com Taíta sobre o almoço, ao espantar o porco que entrava pelo batente da casa? “Taíta, mata esse porco, faz cozido dele e serve para os homens.” “Então, falou? Você não tinha perdido a voz?” Ela tinha todas as liberdades. Acompanhava-o na dispensa e cozinha do acampamento desde que chegara ao Calçoene. Era paraense de Alenquer, acostumou-se a cozinhar em garimpo e não sabia fazer outra coisa. “Bonfim, quero conhecer essa mulher que você trouxe. Dizem que é formosa e que você está besta.” “Taíta, cuida do seu serviço.” E Saraminda nua, no meio da sala, na sua cabeça.
“Saraminda, você não pode fazer isso. O que vão falar? Todos vão saber.” “Bonfim, eu tenho muito calor, ele me sufoca e eu penso em morrer.”
*
“Aquela palavra aumentou as batidas do meu coração, que parecia ter descido para minha barriga e pulava como se eu estivesse prenho. Saraminda morta? Essa palavra era um baque. ‘Cleto, esta casa é tão afastada e eu sou tão só, que preciso ser feliz. É meu sangue índio.’ Que mulher estranha, que fêmea roliça! E a partir da casa nova, desse dia de loucura, Saraminda tornou-se índia e andava nua e ia para a janela nua, e seus cabelos ficaram mais longos, cada vez mais pretos, e os seios com as pontas mais amarelas. Seus olhos verdes pareciam mais verdes. Nunca me conformei. Os dias passavam e ela nua, na minha frente, e eu com os receios de que fosse vista e de que a notícia chegasse ao domínio das conversas do garimpo.”
— Compadre Bonfim, eu ouvi essa lenda da Saraminda nua que corria no garimpo, todo mundo sabia, mas nunca lhe perguntei. Era coisa de não acreditar. Desconfiava de que era por isso que seus jagunços guardavam as duas estradas que subiam para sua casa e a ordem de ninguém subir. Mas me conta como era Saraminda.
“Não, este segredo é meu. Nem se pode descrever. Só posso dizer que foi difícil para mim, muito difícil.”
E soluçou.
— Mas não se chora morto, compadre Bonfim. Lucy não pode vê-lo assim.
“Na memória, o porco baé grunhia e fuçava. O chão era sujo, lama, e Taíta a perguntar por Saraminda e eu a pensar nela com seu corpo, como Deus botou no mundo, cheia de cheiro bom. Melhor assim, eu trabalhava com ela na minha cabeça e fazia as contas melhor, tinha mais força, mais gosto, mais vontade.”
“O porco sumiu. Taíta saiu com os restos de comida. As galinhas correram em sua direção. Um uirapuru começou a cantar longe, coisa rara, porque ele só canta ao amanhecer, construindo o ninho. O canto chegou perto. Era de fazer nossa boca encher de música. Eu saí da casa, procurei no ar aquele solfejo e fui andando para o lado do chiqueiro. Um cheiro insuportável de bosta podre me fez recuar e eu perdi a direção do canto do uirapuru.”
12
Uma bola de safira
Enganei Cleto Bonfim. Eu não era virgem. Tive sete homens de xodó, e sete vezes voltei a ser virgem como tinha nascido. Na noite em que me entreguei a ele, eu estava como se nunca tivesse tido homem. Era quase uma criança, tinha quinze anos, mas a vida tinha me ensinado a ser mulher. Eu estava atraída por ele, coisa de passarinho e cobra. E naqueles mundos, nessa idade eu já era mulher plena. Gostei de Bonfim porque ele me deu valor, ele deu por mim dez quilos de ouro, e os homens só queriam me dar em Caiena cinco francos. Mas eu nunca soube ao certo se era amor, coisa de desejo de ter uma pessoa como coisa sua, que não pudesse perder, que tivesse ódio e ciúme dela, que não se apartasse hora nenhuma do seu lado, que gostasse de ouvir suas palavras, sentir seu cheiro, desejar seu corpo e ter prazer.
No dia em que fitei os olhos azuis de Jacques Kemper e eu vi aquela bola de safira dentro do branco dos seus olhos, meu corpo estremeceu, minha alma levantou os braços e, então, comecei a perder o sentido da luz e minha virgindade começou de novo a voltar. Peguei o vestido de Paris e olhei para ele, para o bordado que estava costurado no corpete e tinha um azul que era o mesmo dos olhos de Jacques Kemper. Mas decidi não me entregar a ele. Eu o desejei, mas sabia que se me entregasse não sairia mais dessa prisão.
“Senhora Bonfim, a Société Equatorialemandou-me aqui para trazer o coche que o Senhor Cleto encomendou e me fez portador deste presente que é dado à senhora, em nome da empresa e da moda francesa.”
Não ouvi toda a palavra. Seu sotaque era outro e eu falava mais o créole, língua do meu povo, nascida nos campos da escravidão e do trabalho do negro, com pedaços de tradições e viagens, língua do amor, em que as palavras são agrados e ternuras. Respondi sa ou té, mèrsi. Repeti mèrsi. Obrigada. Fiquei tão perturbada que a cabeça virou. Seus olhos azuis me queimaram. Bonfim não desconfiou de nada. Apenas falou: “Você está pálida.” Quando acordei estava na rede, Bonfim abanando meus pés mergulhados numa bacia de água morna. Desmaiei. “Onde está meu vestido de Paris?” “Está ali, no banco.” “Quero que ele fique comigo na rede. E o francês?” “Já se foi.”
Ele trajava uma roupa de paletó e gravata. Seus cabelos fogoió brilhavam na meia-luz da varanda. Não era como os dólmãs do garimpo. Era um esbelto homem de Caiena em noite de festa. O Limão era para mim um dia de cor de chuva que nunca acabava e se derramava pela manhã, pela tarde e pela noite. Eu vivia prisioneira da floresta e do ouro, passei a ser escrava da minha sorte e a fugir de mim mesma. Às noites surgiam fantasmas. O urro da onça batia em meus ouvidos, como se estivesse debaixo da janela, eu sentia as garras do bicho arranhando o punho da rede. Foi nesse tempo que sonhei que minha avó tinha morrido. “Saraminda, vim te dizer que fui enterrada hoje. Teu ouro está debaixo da minha rede.” Lorette roubou meu ouro. Ela o levou no dia seguinte da morte de minha avó. Mas o papel ela guardou, e depois, numa viagem que fiz a Caiena, ela me devolveu. Mas minha avó não morreu no dia que eu sonhei. “Lorette, você roubou minha defunta avó. Eu mandei que ela comprasse casas para vocês.” “Onde está seu marido Roger, que um dia foi me visitar no garimpo?” “Ele fugiu com uma saramaca e foi morar em Rémire Montjoly. Eu furtei você porque sabia que você não voltaria mais do Calçoene. Nossa avó Balbina me contou a história do leilão.” “E por que você não veio com Roger, que sabia onde eu estava, para me comunicar?” “Porque eu já o tinha despachado para me amasiar com nosso primo Koron.” Passei a ter ódio dela. Não pelo ouro, mas por Koron. Ele não me aceitou num dia em que eu quis ter ele. Eu nunca quis viver com ele, mas foi o único homem por quem eu tive desejo de me entregar por mim mesma. Nunca soube se por amor ou desejo. Mas nunca esqueci Koron. Ele para mim era a lembrança de um lençol limpo. Lorette o sujou. Ela era rameira. Nunca me esqueci de Koron. Depois eu soube que ele foi viver no Suriname e disse: “Saraminda morreu.”
Não amaciei a voz para mudar o meu jeito. Eu não queria que Bonfim pensasse que eu era mulher ordinária, e eu não era. Eu era uma criança. No dia do leilão no Tour d’Argent, procurei saber quem estava ali e me decidi por ele, Cleto. Eu não queria cair na mão de qualquer um. Por isso eu falava com ele com voz de reza. Mas não fiz para que ele ficasse besta. Eu queria que ele se enjoasse logo e me mandasse embora. Quando vi onde tinha me metido, quis fugir, abandonar aquele inferno. Quantas vezes pensei em pedir: “Bonfim, me liberta, me manda embora.” Mas ele ficou agarrado comigo, me perseguindo no amor como eu jamais soube que existia de homem por mulher. Eu falava e ele pensava que era cantoria e vinha montando em mim, quer fosse de dia quer fosse de noite, e me perseguia e só me abandonava quando suas forças acabavam. Coisa de onça no cio e guariba na chuva. Não digo que não gostava. No princípio me enfadava, mas depois caí no vício e minhas forças também sumiram e passei a dormir nas tardes e me esconder nas madrugadas. “Onde você está, Saraminda?” Eu estava enrolada nos sacos de sarrapilha e me disfarçava em sombra. Ele vinha com o candeeiro: “Onde você está, Saraminda?” Eu ficava dentro do guarda-roupa, debaixo da cama. Era para pensar que eu fugi. Ele pensava que era coisa de esconde-esconde, mas era vontade de sumir mesmo. Ele ficava de menino, no escuro do quarto. “Miau, miau, minha gatinha…” E eu: “Estou aqui, não vem bichinho, não vem…”
E às vezes ele batia no penico e no canto da cama: “Vem, minha poldra castanha”. E eu entrava no jogo e respondia: “Chega meu cavalo preto”. Às vezes eu ficava calada, ele não sabia onde eu estava, e eu dizia: “Fecha os olhos, vem pelo meu cheiro”, e ele ficava como na cabra-cega. Era coisa de vício mesmo. Até que ele me encontrava e ficávamos até o dia raiar, clarear.
Comecei depois a pedir coisas para ele não dar e eu ir embora. Fingia que enjoava da comida e pedia: “Estou com saudades da comida créole. Cleto, eu quero comer um bouillon d’aouara[13], com legumes frescos, carne de porco novo, e manda matar um boi para ter carne boa. Gosto de cheirar a fumaça que sai, com aquele gosto de fogo das sete horas cozinhando.” E ele mandava apanhar tucumã para fazer a polpa e colocar no cozido. E eu pedia: “Cleto, arruma pimenta verde e vermelha, das melhores que tiver, manda buscar na Vila do Firmino.” E depois fiz fastio: “Não agüento mais veado moqueado, nem fígado de anta, nem carne de caititu, nem paca cozida, nem paçoca. Estou enjoada de tudo.” “O que você quer, Saraminda?” “Um brochete de rabo de jacaré, frito com banha de anta e conhaque, um hoko[14]e um assado de cochonbois[15].”
E a comida do garimpo era sempre caça e peixes, que havia muito. Gurijubas secas, vindas da costa, e mantas de pirarucu. O arroz e o feijão não faltavam, e peixes de água doce eram abundantes nos lagos e rios próximos.
Ele adivinhava e me dava tudo que eu pedia. “Para que essas coisas, se o que quero é ir embora?” E eu dizia para dentro: “Não pede mais, pede só para ir embora.” Mas eu sabia que não poderia ir. Ele se matava, e me mataria antes. Mandava fazer o serviço ou me degolava.
Cleto não me deixava sair do sítio. Ele tinha ciúme até do pé de jatobá onde eu gostava de ficar abraçada no tronco largo. “Cleto, deixa eu ir para a loja, pesar ouro, como as mulheres dos créoles do Limão fazem. De um lado a balança das mercadorias, do outro o ouro.” Não tinha dinheiro, tudo se pagava em ouro, um quilo de beiju, um grama. “Deixa eu sair deste silêncio, ficar ao seu lado no trabalho, pegando no ouro, olhando a mercadoria.”
Ele deixava morrer um sorriso, e assim ficava.
13
O feitiço de uma noite
Eu, Clément Tamba, amava as terras do Mapá. Lá éramos “os negros de Caiena”. A Guiana tinha a fama de ser morada de criminosos e deportados políticos. Ainda se contava a história dos cento e sessenta padres que foram banidos por Robespierre e desembarcaram na ilha La Mèreou dos Cabritos, onde eram despejados os presos políticos, com as batinas sujas, sem outras vestes, e destinados a morrer. A Guiana era a guilhotina seca sem o espetáculo da Place de la Concorde. E Jeannet Odin, o sobrinho de Danton, foi mandado para nos governar. Trouxe tanto sofrimento ao nosso povo que dele se escreve o nome na areia e se cospe.
Quando chegou a notícia do ouro no Mapá, toda a Caiena foi transformada em aventureira. Todos foram, homens e mulheres, no desejo da fortuna.
Eu fui um dos fundadores da corrutela do Limão, onde montei minha lontana com gente de Caiena. Os brasileiros no Laurent, que eles chamavam Lourenço. Comecei então a trazer mercadoria e matalotagem para trocar pelo ouro. Ninguém dava valor a nada, o ouro era demais. Cem gramas, uma roupa de brim; duzentos, uma espingarda de caça. O feijão custava dois gramas, e o açúcar, cinco. Não existia dinheiro. Foi aí que quisemos ficar com aquela terra, tomar da França e do Brasil. E o governador de Caiena fez um plano para expulsar os brasileiros. Coisa errada. Jules Gros — um aventureiro de muita cabeça e sonhador — chamou-me para fundarmos uma república naquele mundão, fazer um novo país. A reunião foi marcada para a Vila do Cunani, na margem do rio Cunani. Jules era um tipo político que tinha conversa de coisas grandes. Ele seria Presidente da República do Cunani. E ali, no meio da floresta, com vinte casas, cinqüenta homens, nós fundamos essa república. Mandamos fazer selos e cunhar moedas, criamos uma bandeira e comunicamos às nações nosso ato. Até o Presidente dos Estados Unidos, Grover Cleveland, mandou ao Congresso americano, em 1886, a notícia de nossa República do Cunani. Até hoje eu tenho aqui, no meu cofre, um selo, uma moeda e uma bandeira do Cunani. A França acharia bom, ela se livraria do peso da Guiana e dos créoles.
Os brasileiros acharam que era uma república de brincadeira. Nós não tínhamos nada. Só a cabeça do Jules Gros. Ele foi chamado de aventureiro de fancaria. Nós lhe demos ouro e ele foi a Paris, onde criou a Embaixada do Cunani e falou nos jornais. “Onde está sua República?”, lhe perguntaram. “Está na maior riqueza de ouro do mundo.” Mas nós não queríamos nada de política, queríamos era o ouro que nos levou às terras do Mapá, dos brasileiros. Por causa do ouro, deu vontade de tomar aquelas terras sem gente — os poucos que ali moravam morriam de catarro, malária e doenças da vida, engalicados.
Na noite em que viajei para a reunião do Cunani, fui até a casa de Bonfim. Eu não sabia nada de política nem o que era república. Cursei o liceu, mas Cleto só aprendeu a contar, assinar o nome e lia soletrando. Foi nessa noite que eu vi Saraminda do jeito que ela veio ao mundo. Ela entreabriu a porta do quarto que dava para a sala e ficou à mostra, no entrefusco do candeeiro, nua, o corpo vermelho de luz. Cleto estava de costas, não viu nada. Eu via. Ela fez de propósito, de caso pensado, para me atentar, fingindo de escondida que nem alma do mato.
Fiquei me queimando. Ela era mocinha, mas mulher fêmea. Era diferente, com feitiço. Depois dessa visão, não pensei noutra coisa, de noite e de dia, senão em deitar com ela. Não era que quisesse tomar a mulher de Cleto. Era ser homem para Saraminda.
“Eu via seus olhos me comerem, não com o próprio olhar, com o desejo. Eu estava possuída pelo vício de ser a mulher que Cleto me ensinou. Ele gostava de puta e eu não era puta, mas fiquei. E os homens me fizeram ser desejada. Comecei a gostar de seduzi-los, a ser atirada, oferecida, e todos caíam, sem medo, no jogo da minha traição a Bonfim. O garimpo tinha dois ouros: eu e la couleur.”
— Fala, Saraminda, diz do seu desejo. Você me quis? — perguntou Clément, julgando-a presente. E ouviu:
“Eu quis você aos meus pés. Você era chefe e eu queria os grandes aos meus pés. Mas só encontrava prazer com os pequenos. Eu quase levei Celestino Gouveia à loucura. Mas o único que amei de amor foi Kemper: foi a desgraça da vida dele, mas amei. Eu nunca tinha conhecido o amor. Mas eu nunca pude ser eu. Eu não conseguia ser a mesma mulher. Eu tinha a voz de freira, mas possuía o desejo de ter voz capaz de dizer tudo que queria, voz de diabo, de inferno, voz de prazer. Eu falava, eu não conseguia ficar contida. Mas eu queria ser mulher e cumprir meu vício com o fogo de minha carne, coisa de mistério.”
Saraminda não me quis. Eu a quis. Ela já estava curtida dos cortejos, livre dos afetos. Era um bicho, uma anta na mata, gritando, berrando, atrás do macho. Mas eu a quis. Fiquei possuído pelo demônio. Como chegar até ela? Era impossível. Ela tinha tudo, queria tudo, e tudo lhe era dado. As coisas que se queriam no garimpo eram coisas da terra. O garimpo era uma prisão. Ninguém podia fugir dele. Não tinha grade, tinha a possessão do ouro. Eu nunca soube se Saraminda tinha a ambição do ouro. O ouro foi a armadilha que lhe cortou o destino. O ouro queima as pessoas desde que foi escondido por Deus misturado com a terra. Saraminda era ouro e era terra.
“Quero você, largue tudo, fique comigo”, eu lhe disse entre instantes de pavor quando me aventurei a ir a sua casa numa tarde em que Bonfim estava em Calçoene. Ela estava nua. Em pé. Eu, tremendo. Ela, índia, como se nada houvesse entre nós dois. Ficou calada, mas pediu:
“Clément Tamba, me beija.”
E eu beijei.
“Clément Tamba, vai passar muito tempo para você deitar comigo. Não pense que vão ser dias, podem ser anos.”
E aí mostrou-se para mim, toda, toda, como se fosse uma cachoeira do rio Calçoene. Fugi. Desci a estrada da corrutela e cheguei com a sensação de estar salvo de um incêndio, mas com o fogo queimando meu rosto e minhas partes. Como foi doloroso para mim ver o que iria acontecer. Coitado de Cleto Bonfim. Coitado de mim, que não cheguei às águas do rio Cunani.
Quando Veiga Cabral chegou dizendo que eu deveria baixar a bandeira da França, a França já não estava na minha alma. Eu só pensava em Saraminda. Matar Bonfim, baixar a bandeira da França, mas levar Saraminda.
A Rue Lalouette, que passa no centro da Place des Palmistes, estava deserta. Caiena para mim era uma cidadela abandonada. Mas eu queria ter lá uma grande casa para mim, a que eu mandei fazer era a afirmação do meu orgulho. Comprei um grande terreno do notário Ronjon, na Rue d’Estren, que tinha grandes árvores, cujas copas se fechavam em arcos, umas tocando as outras, de chão batido, meio selvagem, com um vau para drenar águas, sobre o qual fiz uma pequena ponte para a entrada do meu terreno. Era uma casa créole, mas tinha muito do Limão. A vegetação primitiva ainda estava intacta. Abri espaços para jardins e plantas. Tinha muitos quartos, quartos que eram os tempos da minha vida. Todos fui fechando, perdendo as chaves do fechamento para que não fossem abertos nunca mais. Fiquei no fim só com a sala, esperando a morte, ouvindo Louis tocar as velhas canções das travessias, da Bretanha e da Normandia. Ali estavam trancados meus derradeiros vestígios. Os anos pesam e passam. Passou o ouro, passou o Mapá, passei eu.
*
— Compadre Clément Tamba — Cleto pediu —, não me revele seus segredos, nem suas traições. Guarde com sua alma. Veiga Cabral me procurou aquela noite em que chegou ao Limão. Disse que ia ao Cunani para prender Trajano Benítez, traidor dos brasileiros, que aceitara ser o delegado do governador de Caiena e que não hasteava mais a bandeira do Brasil. Pediu-me armas, ouro para comprá-las, e eu dei. Não por mim, mas para não me meter em coisas que eu não entendia. Disse que você era o articulador da França no Calçoene e eu não apoiei, mas me afirmou:
“Clément é do ouro, é de la couleur. Mas eu o pegarei.”
— Respondi duro a ele:
“Não fará isso, Cabral. Ficarei contra, também tenho o meu exército. Aqui não tem França nem Brasil. Tem o ouro e a nossa amizade.”
— Veiga Cabral recuou:
“Se é com você, deixa com você.”
— Sujeito elétrico esse Veiga Cabral. Baixinho, olho enviesado, magnético, raivoso, acuado, com aquele bigodão de pontas derramadas, parecia ter coração de terra. Só falava em pátria, em Brasil, e não tinha limites. Era a mão no coldre e a cabeça na derrota dos franceses. Ele sempre repetiu sobre os franceses do Contestado:
“Vou expulsá-los todos!”
— “Cabralzinho, acalma”, eu ponderava. “Eles são nossos irmãos. Tem ouro para todo mundo.” Mas ele, colérico, insistia:
“Quem eu não puder matar, eu vou capar.”
— Sujeito possesso, esse Veiga Cabral — disse Clément. — Foi ele quem levantou toda a região e depois tomou a república do Jules Gros. Editou leis, disse que quem xingasse nome da mãe tinha três anos de cadeia e quem violentasse uma mulher donzela iria para a morte. Escreveu manifestos, fez suas ordenanças e nomeou patentes.
— Ele também perguntou por Saraminda, disse-me Celestino Gouveia — falou Cleto:
“E a mulher do Bonfim? Diz que é índia e anda nua com um bando de cachorros?”
“É senhora de respeito. Tem suas coisas e vontades de mulher”, foi o que Celestino respondeu — encerrou Cleto.
*
Eu voltei para Caiena depois de tudo acabado. Acabado para mim. A região do Calçoene que ajudei a desbravar, a ver nascer e a começar já não existia mais. Todos já não eram as mesmas pessoas. A aventura, o gosto de ser aventureiro, desapareceu, os homens ficaram iguais a homens cheios de ambições e de medos. O caminho de ferro que eu vi construir estava parando. Ele podia continuar funcionando, mas a Société Equatorialejá não era a Companhia. Eu queria me ver livre do sofrimento que surgia, o temor e a luta. Já estava sem o desejo do ouro. Minha vontade era de abrir um garimpo novo, que devia existir naquelas florestas sem fim. Talvez debaixo da serra do Tumucumaque, que na minha imaginação estava sentada em ouro, era de lá que os rios nasciam com as areias amarelas.
Ficamos ameaçados de abandonar nossas casas e voltar a Caiena. Charvein, o governador, bem que quis que não nos expulsassem. Ele mandou soldados para ocupar terras, proteger os franceses e parar com a briga dos brasileiros. Mas ele não gostava dos créoles. Gostava dos franceses brancos. Tudo deu errado. Os brasileiros reagiram e botaram nossos soldados a correr. Quantos voltaram mortos? Ninguém sabe. As viúvas gritavam puxando os cabelos, insultando Charvein. Nessa invasão, mataram muitos brasileiros. Nós que ficávamos no garimpo não sabíamos o que estava acontecendo longe, na Vila do Amapá, que foi saqueada. Todos se tornaram nossos inimigos. Nossa vida mudou. Outrora era só ouro, agora era a maldita da política. Eram dois lados, e nós tínhamos sido sempre um só. Como a gente se transforma. Eu passei a ver os brasileiros como um bando de malvados. Eles eram meus amigos e me viam como inimigo. O rosto deles foi se transformando na minha cabeça, até o dia em que eu disse para mim mesmo: ‘Vou embora, vou voltar para Caiena.’ Não sei como tive coragem. Na verdade, eu não voltei. Fui expulso. Quem sempre aceitava o meu peso na compra de ouro, meus preços e minha mercadoria, começou a resmungar, desconfiar, brigar, e minha vida foi virando um inferno. Bonfim sabia. Eu lhe disse que ia embora, que não ficava mais. Comecei a guardar meus garrafões de ouro, colocar dentro das barricas e esconder, armazenados dentro do quarto da minha casa. Ela era bela, tinha varandas abertas, jarros de samambaias por todos os lados, pássaros que vinham comer nas varandas e beber no tanque. O coxo de comida, que eu fiz para eles, jamais deixou de ter milho, alpiste, frutas. E vinham os guriantãs, as pombas-do-ar, os bem-te-vis, os sabiás, as marias-lecres, as mães-da-taoca, os vivis, os guaxes, os japiins e, quando acordava sem o sol nascer, tomava minha xícara de café quente, sentava na varanda e esperava a primeira luz do dia. Não era para ver a luz, era para ouvir os pássaros, primeiro um, dois, depois dez, e depois toda a passarada, no meio da mata inteira, os cantos se perdendo nas folhas e no seu próprio mistério.
Foi aí que eu vi que a coisa não tinha jeito:
“Clément Tamba, a mulher de Doriques, a cabocla Raída, aquela fogoió, mulata cambraia, que era do Maranhão, fugiu. Desapareceu, parece que foi furtada pelo Joaquino, aquele do barranco da Taquaira”, me disse meu empregado.
“E o que fez Doriques?”
“Disse que não ia atrás.”
“Tinha que dar nisso”, respondi.
Tudo estava acabando. Conheci a Raída quando ela chegou no garimpo. Vinha para aluguel. Passou comigo um mês na minha cama. Depois Raída arrumou um xodó. Teve banzo do Joaquino, fugiu, como fugia com qualquer um. O garimpo do Calçoene estava morrendo. Foi nesse dia que eu senti. Em garimpo novo, mulher não foge, não tem desejo nem coragem. O ouro gruda.
14
Uma lenda de sangue
O garimpo acordava às três horas da manhã para a faina de bater água, drenar os buracos de lavra para que estivessem secos quando o dia clareasse. Era a lamparina do lado, as latas, o encher e o derramar para que, com o sol, as areias pudessem ser bateadas no poço esvaziado.
Os primeiros sinais do reboliço do formigueiro de homens eram, na escuridão, o vermelho das brasas, o fogo das trempes para ferver água para o café, que era passado no bule de ferro amassado e servia para o dia inteiro. Cada um tinha o seu, nos barracões grandes e nos barracos de pouca gente. A lamparina de morrão era a primeira luz. Viam-se, aparecendo aqui e ali, uma, mais outra, outra além, e depois era aquela quantidade de tochas, primeiro nas dormidas, depois no caminho dos barrancos.
Todos obedeciam ao mesmo ritmo. Ao levantar, o café com farinha de puba ou cuscuz de arroz e, de bucho forrado, era pegar a lata, os apetrechos do trabalho, a bateia, a criminela, a pá, a pinche, a pealha e o inseparável terçado para começar o dia.
Muitos trabalhavam no sistema de meia-praça, dividindo o ouro e o rancho. Para eles era a tarefa de grupo para abastecer as lontanas, lontaninhas e chanquées, que os créoles trouxeram da mineração do Approuague com suas caixas reco, ora de ziguezague, ora de dala, com elas em série, sempre recebendo o cascalho e segurando o ouro nas taristas, no ralo de flandre, na sarrapilheira que aos sábados é queimada para apuro e receber outra nova.
Na saída, o cuidado com a lenha que devia aquecer a panela que ficava no fogo para cozinhar o almoço e o jantar, que era feijão com charque, farinha e, algumas vezes, peixe seco.
Não eram poucos os que levavam sua garrafa de cachaça para beber e jogar nos barrancos, modo do ouro embebedar-se e aparecer. Outra coisa de que ele gostava era sangue. A crença geral, quando as bateias estavam secas, era de que a encantação do ouro estava querendo alguma desgraça.
Celestino Gouveia era o capataz de Cleto Bonfim. Quando abriu sua lavra e comprou o garimpo, Cleto o trouxe como braço forte, comandando quarenta e três homens recrutados entre trabalhadores, em meio a eles fugitivos e desordeiros da Ilha de Marajó, do Balique e de Santana. Outros de Santarém, Viseu, Carutapera e Gurupi. A função era vigiar e policiar os que trabalhavam na garimpagem, operando a lavra, escravos da ambição. “Sem homem macho e capataz duro não se faz extração de ouro. O ouro gosta de violência”, dizia Alexandre, que era pioneiro nos garimpos de Roraima.
Celestino Gouveia nunca sentira qualquer sombra de medo. Era quase um bicho. Tinha seus homens de confiança e juntos vigiavam as equipes. Fiscalizavam os veios de culote e botas, chicote na mão, arma na cintura, dia e noite. Para cada ladrão que encontrassem, recebiam a metade do furto em seu poder. Era a lei da casa. Os costumes do garimpo são feitos na hora, pelo medo e pelo sangue. As leis são criadas pela aventura.
Quando o garimpo baixava de produção, era ele quem ficava excitado, nervoso, violento, e logo dava explicação para o gosto do ouro pelo sangue:
— A terra que tem ouro só se abre com a cor vermelha. Quando eu trabalhava no garimpo do Maracaçumé, no Maranhão, botaram um feitiço tão grande que o ouro sumiu e tivemos de degolar três homens em dois dias para voltar a produção. Eu nunca tinha visto garimpo secar daquele jeito — dizia Celestino a Cleto Bonfim.
Os garimpos do Calçoene não reclamavam de sangue. Este sempre corria nos choques entre grupos e nas tramas, nos homicídios quase diários, costume nessas fronteiras da cobiça.
Mas Celestino tinha a obsessão desta lenda que se ajustava ao seu temperamento violento. Por isso era temido e sua presença despertava pavor. Cleto, ao contrário, era macio, tratava da pesagem, das chaves dos baús de ferro, de fiscalizar a escrituração e a contabilidade diária. Celestino era o batalhão da guarda. Ninguém como ele para essa tarefa, que invade o cotidiano desse mundo de vinganças, misérias e magias. Cleto era comedido, discreto, escondido nas instruções e comandos. Celestino ajudava-o com silêncio e fidelidade.
— Celestino, quando o garimpo fechar e formos embora, você vai ter que alugar uma tropa de burro para carregar seu ouro que está nas minhas mãos. Nosso negócio não é de meia, mas é bom, é de um para dez — dizia Bonfim.
Os olhos de Celestino brilhavam. Ele se sentia o sócio privilegiado e, mais que isso, depositário da amizade e da confiança do chefe. E assim, num emaranhado estranho de ambição, misturava o sangue à riqueza e à tarefa do sucesso. Nessa busca, tinha gosto em descobrir barrancos onde a produção descia e seu primeiro pensamento se voltava para o desejo do ouro por sangue. Sempre forçava a descoberta de barrancos atacados pela escassez do ouro.
— O veio da Ponta Negra está secando, o aluvião do Chuvisco acabou.
Inventava, com a cabeça nas mãos, esfregando-as de ansiedade. Era um ritual que o excitava.
— Celestino, você é quem sabe como a produção aumenta, minha confiança está na sua entrega — respondia Bonfim.
Então Celestino iniciava um rito de demência. Acariciava a navalha que trazia no bolso. A noite descia, lançando uma escuridão profunda sobre os barracões compridos, as redes de batalhões de garimpeiros sujos armadas em paralelo, suarentos, com o corpo amassado pela faina diária e trágica de procurar riqueza. Celestino farejava a vítima. A loucura de buscar um pescoço anônimo tomava-lhe a alma. Nem o rosto devia ser visto. Celestino esperava o despontar das madrugadas. Saía sorrateiro entre as redes de um barracão, onde todos dormiam. Um cheiro de corpo sujo exalava, misturado com o calor sufocante que nem a noite melhorava. Ele, de espreita, procurava uma presa. Parava, visava a sombra de pés esticados, postos em cruz. Da última vez, procurou distinguir um corpo todo. Estava de calção. Ressonava com a cabeça levemente jogada para fora. Celestino passou como uma sombra. O cansaço não permitia àqueles homens fatigados qualquer insônia. Tirou a navalha, abriu a lâmina. Alguém tossiu. Uns sons de galhos quebrados vinham do mato grande. Ouviu-se um ronco grosso, como um guincho de porco. A mão rápida voou no escuro. Um primeiro e um segundo golpes rápidos cortavam o pescoço e os punhos da rede, que, perdendo um dos lados, atirava o corpo no chão. Ele conhecia a tarefa de esconder-se. Não havia luz, as lamparinas estavam longe e eram poucas. Já saindo de rastro, esquivando-se, monstruoso, protegido pela escuridão, ganhava a floresta, que dominava com seus esconderijos. No dia seguinte, o ouro apareceria.
De manhã, a notícia corria os barrancos. Todos conheciam o ritual da tragédia.
— Foi o fantasma do ouro que veio buscar a sua parte. Vai se recuperar a produção — falava Celestino a Cleto.
Todos se alimentavam de sua própria crendice. No outro dia foi achada uma pepita de meio quilo.
— Tem a cor de um amarelo-avermelhado, como o sangue que o ouro pedia. Ontem à noite, ele veio buscar a sua parte — disse Juventino, garimpeiro do Pará.
Cleto limpou a pepita.
— Qual é o nome da guia? — perguntou.
— Não sei.
15
Uma viagem no Gazelle
Jacques Kemper era de Cancale, recebeu o apelido de Barba-de-Fogo no garimpo do Calçoene. Seu sotaque afetado, a mistura das palavras de créole, francês e português, os olhos azuis e o cabelo louro fizeram-no um bicho estranho naquelas bandas. Nunca entendeu por que a vida o trouxera ao inferno de Caiena como peça daquela ambição do Contestado, fronteiras sangrentas do Amapá, onde os homens corriam com as bandeiras da França e do Brasil, na busca do ouro. Tudo começara em Paris, quando foi contratado pela Société Française de l’Amérique Equatoriale.
Paris era como se fosse uma casa onde morava o vazio e da qual não conhecia os cômodos, os quartos. Ao chegar da Bretanha, seus dias eram de luta e miséria. Primeiro, a casa da tia, Lucile, empregada na limpeza urbana, com seus três filhos, dois gatos e um marido que fumava charuto o dia todo. Ao recebê-lo, não teve nenhum gesto de carinho ou proteção.
Jacques Kemper não era mais menino, tinha quatorze anos, e não conseguira permanecer em Cancale. Era um estorvo para a família. Depois da morte do pai, revoltou-se com o novo casamento da mãe, trazendo a consciência da sua orfandade. Transformou-se em presa de tristeza, que não se apagava nem nos dias de verão. Não conseguia superar a desgraça que para ele era saber que um estranho dormia no quarto que era do seu pai com sua mãe e tudo mais que de sua cabeça nascia com aqueles tormentos. A única fonte de afeto era a irmã, Annie, que não lhe permitiu fugir, andar, sair, vagar sem rumo, no desejo de abandonar aquela tortura.
— Deixe de remexer nosso quarto, menino besta — disse-lhe o padrasto quando ele, naquele hábito enfermo, ia ao quarto da mãe para descobrir intimidades e realimentar o ciúme.
— Não lhe devo obediência, você não e meu pai — respondeu.
Recebeu uns tabefes e isso o fez consolidar a decisão de ir embora. A surra mudou-lhe a vida. Jamais a esqueceu. Doía na alma.
— Não fico mais aqui. Vou fugir, você não presta — disse à mãe.
— Você tem de obedecer a André, ele ficou no lugar de seu pai, trata bem sua mãe, sua irmã, sua avó.
— Não, ele não é meu pai, tenho ódio dele, vou matá-lo.
Charlotte viu a profundeza do abismo que separava Jacques do padrasto. Seus olhos eram só raiva, suas mãos tremiam, e, então, tomou a decisão de mandá-lo para a casa da irmã em Paris. Talvez lá ele estudasse e começasse a trabalhar, esquecendo André.
Em Paris, aos dezoito anos apaixonou-se pela prima e acabou expulso da casa da tia. Viveu muitos outros romances de gente nova e era tido pelas moças como conquistador insinuante e dado a mulheres. Sua fama era de sair sempre acompanhado de colegas e desfrutar de belas companhias nos cafés e passeios pelo Bois de Boulogne.
Agora, dez anos passados, trabalhava na Société Française de l’Amérique Equatoriale, da Guiana Francesa, com sede em Paris. Seu trabalho era nos despachos, de auxiliar nos serviços internos. Na firma, onde começara como contínuo, já estava no setor administrativo. Tinha um excelente relacionamento com o chefe, desfrutava de prestígio. Levava as correspondências aos correios e às casas bancárias e cumpria os mandados que apareciam. Foi num dia de janeiro, quando em Paris nevava e todos reclamavam do aquecimento, que o chefe o chamou:
— Temos um trabalho para você, pela confiança que nos inspira e o desejo de que cresça na Companhia. A nossa Casa em Caiena pede que lhe remetamos, para o nosso maior fornecedor de ouro, um tal Senhor Bonfim, um coche, com adereços dourados e enfeites de ouro, trabalho de artista. É um homem que se apaixonou por uma mulher. E como todas as mulheres têm vontades… Você sabe como são as mulheres, sempre cheias de excentricidades. Quer um coche francês naquelas paragens…
— Mas eu nunca andei de coche — disse Kemper.
— Sim, mas estamos providenciando tudo. Você não precisa andar nem conhecer coche. Ele será colocado numa armação, viajará bem protegido e será seu companheiro de viagem. É coisa de nosso maior interesse. Frivolidades e paixão de brasileiro. Precisamos muito desse homem e com ele já ganhamos muito dinheiro, é velho freguês com uma ficha muito boa. Basta dizer que é quem mais nos vende ouro. Vamos fazer uma cena grande para agradá-lo, e não podemos despachar o coche como mercadoria qualquer. Pensamos, assim, remetê-lo com todas as pompas, acompanhado de um representante, mostrando o quanto prezamos o freguês, para que o coche seja entregue solenemente ao Senhor Bonfim e ele fique satisfeito e agradecido. Dentro de alguns dias estará pronto, e você pegará o navio no Havre, rumo a Caiena. Coisa que em apenas dois meses está resolvida. Você voltará e terá uma gratificação especial pela viagem e um serviço a mais na empresa, com direito a progredir.
— Mas eu precisava pensar um pouco. Como vou me deslocar para Caiena, eu que nunca viajei? — ponderou Kemper.
— Kemper, você é rapaz jeitoso e de confiança da firma. Sua missão será mostrar ao Senhor Bonfim nossa consideração por ele, para deixá-lo cheio de vaidade, e a melhor maneira de vinculá-lo mais a nós é agradar sua mulher, que todos dizem ter grande influência em sua vida e é motivo de tudo que ele faz naquele garimpo — disse o chefe.
— Mas minha função será só acompanhar o carro? — perguntou Kemper.
— Não, terá de entregá-lo, apresentar ao Senhor Bonfim nossas homenagens e também… — aí o Senhor Foucaud teve um sorriso de ironia — entregar à sua senhora nosso presente especial, de consideração, um vestido que mandamos confeccionar na Maison d’Amour, que será um elegante brinde de nossa empresa. Encomendamos uma peça de efeito, com lantejoulas, bordados e babados… coisas de vaidade para senhoras… de mau gosto.
Foi nesse dia que Jacques Kemper foi mudado pelo destino, para, de surpresa em surpresa, ao chegar a Caiena, ter notícias de que sua viagem não terminaria ali, mas de que iria embrenhar-se nos caminhos desconhecidos dos garimpos do rio Calçoene.
O coche foi despachado numa embalagem forte, em que não faltaram reforços de cantoneiras de ferro para evitar qualquer choque, com recomendações muitas, não só no embarque como no desembarque. Kemper viajou para o porto do Havre, onde, depois de guiado pela cidade, já se adaptando aos costumes de viajar, chegou ao cais, subiu a escada e foi encaminhado pelos rapazes de bordo a seu aposento.
Embarcou no Gazelle, com o vestido que lhe entregaram numa caixa forrada de veludo, embrulhada em vários papelões, e que devia manter no camarote como coisa de arte e beleza que não podia peregrinar em bagagens de despacho nem ser descuidada de sua vigilância permanente.
O navio desatracou à noite, as luzes do porto afastando-se e Jacques pensando na viagem como um prêmio de férias, para conhecer novas terras e voltar a Paris enriquecido no seu prestígio. Certamente, ao regressar, seu conceito seria outro e mais alto.
Feliz, ficou debruçado no balaústre, achando que a vida lhe estava sendo dadivosa, que os ventos da sorte iam chegando. Guiana e Caiena eram palavras distantes que não diziam nada, mas inspiravam e sugeriam tudo. Procurou saber como era a região. Só obteve informações do seu exotismo e do degredo, lugar de punição e sofrimento. De tudo isso esqueceu. Ia passar pouco tempo por lá, mas incorporando à sua vida uma experiência colonial.
— Vai para Caiena? — perguntou-lhe uma senhora idosa que passava ao seu lado no tombadilho, com vestido de gola fechada e cabelos esticados.
— Sim. Me parece que este navio vai para Caiena não?
— Sim, mas passa na Martinica, onde eu vou ficar.
— Nunca viajei de navio — confessou Kemper.
— Tenho duas sobrinhas, uma que mora em Caiena e se chama Laurence, e a outra viaja comigo.
— Sim — disse Kemper, sem querer esticar conversa. Depois chegou uma moça de cabelos compridos e crespos, alourada, nariz fino, lábios bem definidos, sem cara de frivolidades.
— Este é… — disse a senhora. Então perguntou: — Como se chama?…
— Jacques Kemper…
— Geneviève— apresentou-se.
— Muito prazer em conhecê-la.
— Vou à Martinica, é minha terra.
As luzes do Havre não se viam mais, e o navio iniciou um balanço mais forte. Tudo ficou longe e o apito da saída era acompanhado pelas ondas que cresciam.
16
Os calores de Caiena
Kemper chegou a Caiena num sábado. O navio parou na Ile Le Pèreou dos Calangos. Depois, rumou para o porto de Caiena, onde estava sendo esperado pelo Senhor Lefèvre, diretor local da Société Française de l’Amérique Equatoriale. Os passageiros foram embora para seus destinos. Ele ficou no cais com a mala de madeira, reforçada por ferros e braços de flandres pintados de preto, cantoneiras e dobradiças laterais longas, guarnecidas com ferragens de mola, e outra do centro em arco, a maior de todas, recortada com o buraco da chave, que para fechar dava duas voltas. Ele a guardava presa na cintura, num pequeno chaveiro, que abria para dentro. Em cima da mala colocou o pacote da caixa embrulhada com reforço de proteção contendo o vestido da Senhora Bonfim. Dele não se afastara durante a viagem, colocado embaixo da cama, no camarote. Sentou-se na mala e olhou a paisagem de Caiena. A cidade era pequena, a gente, pobre. Em sua cabeça, imaginou Madame Bonfim como uma daquelas damas parisienses, de chapéu de aba, bem pintada, vestido longo e saia estreita, cabelos levemente pendentes para o lado e caídos no ombro. Ensaiou gestos de cumprimentá-la. Beijar a mão ele não sabia. Era um simples empregado da Société. As recomendações do Senhor Foucaud não lhe saiam da cabeça: “Cuidado com o coche e o vestido. Não tire os olhos dele, é um presente de homenagem. O Senhor Bonfim é nosso grande fornecedor e tem muita força com os brasileiros, e nós queremos tê-lo sempre bem tratado. Nosso negócio é ouro e não política. Ele dá dinheiro aos agitadores do Amapá e os controla. Sua mulher é francesa e tem grande ascendência sobre ele”. Kemper sabia o valor dessas recomendações e informações que não lhe saíam da cabeça. No cais, ele não sairia sem o caixote do coche descido no pau-de-carga. Teria de assistir à sua descarga e acompanhá-lo até o depósito da empresa. O primeiro transtorno foi que não viu ninguém à sua espera. Apareceu um trabalhador do porto e perguntou-lhe se não queria que levasse a bagagem. Disse que não, pois não vira o desembarque da outra carga. Ao comandante, que descera em sua companhia, perguntou pelo resto da bagagem. “Não vamos descarregar nada. Hoje é sábado. Amanhã é domingo, ninguém trabalha. Só segunda-feira. Estamos na Guiana, Senhor Kemper! Que diabo o senhor tem nessa caixa que não larga?” “É um vestido!” “Presente de namorada! É assim…” falou o comandante, bonachão.
Kemper tinha se preparado para desembarcar. Seus patrões mandaram fazer para ele um paletó de linho branco, apropriado para o clima equatorial, sapatos de verniz, camisa de gola alta e uma gravata de cores claras. Ele se sentia o próprio dono da empresa, metido naquele fardamento que não era dos seus costumes, habituado ao paletó de lã, que não trocava, no frio de Paris, invariavelmente nele vestido todos os dias, quando ia para o escritório muito cedo. Agora, mesmo de roupa branca e leve, sentia um calor insuportável. Transpirava, exposto ao sol, com sua mala e o vestido. Foi quando surgiu o Senhor Lefèvre, acompanhado da mulher, Laurence.
— É o Senhor Kemper?
— Sim, muito prazer. Encantado…
— Atrasei-me, mas vim buscá-lo. Os funcionários da Sociétéficam na hospedaria, perto do nosso escritório, na Rue de la Liberté. É para lá que o senhor vai — e imediatamente chamou um homem escuro: — Jean, pegue a mala dele e leve para a pousada da empresa.
Kemper segurou a caixa do vestido. O Senhor Lefèvre avisou: — Pode deixar que ele leva, é pessoa de confiança.
— Não, Senhor Lefèvre, as recomendações do Senhor Foucaud são de não me afastar deste pacote.
— Aqui, nem ouro a gente carrega. Pode deixar. Kemper vacilou.
— Senhor Lefèvre, as recomendações que tenho são de não deixar esta caixa.
— O que tem essa caixa? — Um vestido.
Laurence sorriu e fez uma expressão de curiosidade. Então perguntou:
— Um vestido? Com esse cuidado todo?
— É um presente para a Senhora Cleto Bonfim.
— Senhora Bonfim? Aquela piranha? Não é possível, esta Société Equatorialeestá perdendo a vergonha — disse ela.
O Senhor Lefèvre ficou vermelho e retrucou:
— Não diga bobagem. O Senhor Kemper é um enviado da empresa, e a empresa sabe o que está fazendo.
— Isto é ridículo — disse a Senhora Laurence. — Um homem atravessar o oceano para trazer um vestido para a Senhora Bonfim.
— Trago também um coche — disse Kemper, querendo ressaltar que sua missão era maior.
Laurence concluiu, rindo:
— Agora a coisa ficou pior. Um coche? Também para a Senhora Bonfim? — afetou a fala, prolongando as palavras: — Que coisa ridícula, ridícula!!!
Jean cortou a conversa:
— Tem gente lá para receber a bagagem?
— Nós mesmos estaremos lá — adiantou Lefèvre.
Kemper rumou para a hospedaria. Embora nunca tivesse viajado de navio, pouco sofrera. Apenas nos primeiros dias, uma leve tontura. O navio não balançara tanto. Na Martinica ficara a maioria dos passageiros do Gazelle.
Kemper olhou Laurence. Ela tinha uns olhos azuis, da cor dos seus. O vestido era bem parisiense, saia comprida, cintura apertada e uma gola engomada bastante alta, que encobria os cabelos caídos. O Senhor Lefèvre tratava-a com uma certa arrogância que era um misto de raiva, como se tivesse alguma mágoa. O jeito dela era de mulher difícil, olhar sorrateiro, mas, nos gestos e no falar, glamourosa.
— O senhor, de onde é?
— Sou de Cancale, mas há mais de dez anos vivo em Paris.
— Eu sou da Riviera, de uma cidade muito pequena e muito bela, Saint-Paul-de-Vence. É lá que os pintores gostam de passar férias e de gastar suas experiências.
Uma brisa firme, leve, quente e abafada passou pelo rosto de Kemper. Ele ajeitou os cabelos. Laurence disse-lhe:
— O senhor vai se acostumar com esta brisa que é constante em Caiena. Aqui o calor e a umidade não nos abandonam nunca.
Jean levava a mala na cabeça e ele a caixa do vestido debaixo do braço. Caminharam pela Rue du Port, seguindo a Louis Blanc, tomando a Christophe Colomb, dobrando a Rue Malovete chegando à Rue de la Liberté, Boulevard de Cayenne, passando ao lado da Place des Palmistes, com a fileira de árvores altas onde, ao fim, despontavam as casas irregulares, numa construção simples de quem imprimia nos beirais e nos telhados saudades da metrópole. Laurence não deixava de opinar:
— É um erro pensar que a Guiana é a França. O clima, as febres, os miasmas, a floresta, o não se saber ao certo o que se faz, tudo isso é uma coisa que a gente esquece. Aqui só pensamos na França e essa gente não é francesa. Veja os tipos. São negros, índios, todos ordinários.
— Laurence, pára de falar, não diga essas coisas ao Senhor Kemper — cortou Lefèvre.
— Digo, e é verdade. Se você, em algum momento, tivesse me dito que eu viria parar aqui, jamais me casaria com você.
O Senhor Lefèvre viu o desconforto em que Kemper se encontrava. Desviou a conversa:
— Veja aquela casa! É de Clément Tamba, um dos homens do ouro e também nosso cliente. O senhor vai vê-lo no Calçoene.
— Onde é Calçoene?
— É o lugar das minas de ouro — respondeu Lefèvre.
Chegaram à hospedaria. Kemper foi para o seu pequeno quarto. Tirou a roupa e resolveu descansar. “O senhor vai almoçar conosco”, dissera-lhe na despedida o Senhor Lefèvre. Agora, sem a brisa que corria lá fora, sentia um calor insuportável. “Com que roupa iria sair?” Não havia outra solução senão usar a que acabara de tirar do corpo. Para ele um martírio, preso dentro daquele traje que agora o assustava, naquele sol e naquele calor infernal.
— Senhor Kemper, nós nos habituamos a tomar vinho e não transpirar. O Saint-Julientem essa virtude.
Laurence começou a rir de novo. O Senhor Lefèvre fechou a cara.
— Olhe, Senhor Kemper, o senhor vai me mostrar esse vestido que o senhor trouxe. Sabe, mulher é curiosa, e ele deve ser de um enorme mau gosto. Quero ver aquela vagabunda vestida de roupa de Paris no cafundó do Laurent. Eu nunca tive coragem de ir lá. Dizem que é nojento. É fedor por todo lado.
— Não repita mais isso, Laurence — disse Lefèvre, com energia.
Kemper manteve-se em silêncio. Ele jamais abriria a caixa com o vestido que lhe tinha sido confiado.
— Senhor Kemper, vamos providenciar sua viagem. Segunda-feira descarregaremos o coche e veremos qual a melhor maneira de levá-lo. Deve sair esta semana um navio para o Calçoene. Se não me engano, é o Meteor, que está no porto. Mandarei em sua companhia um empregado nosso da maior responsabilidade e confiança.
A primeira noite de Jacques Kemper foi terrível. Entre suor e sonhos, não conseguia dormir. Tinha a sensação de que ainda estava no mar e as vozes que ouvia eram de Laurence, dizendo: “Abra a caixa, quero ver o vestido”.
Ele devia passar mais alguns dias em Caiena, à espera do navio. Ali não conhecia ninguém. Na hospedaria havia apenas um empregado da Sociétéque, acometido de malária, viera tratar-se. Já estava em convalescença e tinha os olhos amarelos do horror de quinina que tomara depois de alguns dias entre a vida e a morte. Foi com espanto que Kemper ouviu o seu relato. “A febre chega, dói tudo, os ossos, os ouvidos e os olhos. Aí passa e dá uma suadeira dos infernos. Depois volta, no outro dia, na mesma hora, com um calafrio que faz tremer todo o corpo e não há lençol que baste. E aí vai caminhando todo dia, toda noite, até a gente ir sentindo a carne saindo do corpo, ficando só pele e ossos, e então a gente não tem mais forças.”
Kemper não escondia o medo.
— Será que eu posso, indo ao Calçoene, pegar uma febre dessas? E o meu organismo, sem resistência para essas moléstias, vai acabar logo e morrer? — perguntou para o companheiro. — Como se sente que a doença vem chegando?
— Não se sente, quando você dá por si, a febre já está instalada. Tem duas. O diabo é saber qual delas você pegou. Uma, que mata logo; da outra a gente pode escapar. A febre de macaco é a que acaba logo. Mas é mais rara.
Kemper passou a interessar-se mais, tomado pelo perigo da próxima viagem. Jamais pensou que ela pudesse envolver sua saúde. “Por que diabo eu aceitei trazer estas drogas do Senhor Bonfim?”
— E em Caiena também tem?
— Tem, sim senhor, mas menos que no garimpo. Aqui também não é lugar de muita saúde. Até hoje se conta que no século XVII morreram doze mil colonos, numa tal missãoChoiseul. Febres, tifo e outras doenças desconhecidas. E os presos? Estes morrem logo. As doenças tropicais são terríveis, principalmente para quem vem da metrópole, com o corpo despreparado.
Estas palavras soaram como uma sentença aos ouvidos de Kemper, que começou a sentir dores no corpo.
— E os remédios que existem fazem efeito?
— Fazem, é o que tem salvo a gente, graças às descobertas da Fonsidar, que muito tem pesquisado sobre a doença. O melhor remédio é a Flavoquina, mas estraga o fígado. Depois a gente tem de tomar, durante dois meses, fortificante e Cholagogue Índio.
Kemper não estava gostando nada da conversa, mas Bizene, o companheiro doente, com um sadismo involuntário, continuava:
— O pior é o tifo, que tem matado muito. É febre, disenteria, cai o cabelo, e o sofrimento é danado. Remédio para ele, só a graça de Deus.
Kemper quase desmaiou. Deu-lhe vontade de voltar, mesmo sabendo que estava a sete mil quilômetros da França, vinte e dois dias de viagem em alto-mar e sem garantia de não estar infectado. Como poderia acontecer uma coisa dessas com ele, que nada tinha a ver com a Guiana, nem conhecia nada sobre ela, e desejava apenas envelhecer em Paris?
Laurence convidou-o para conhecer Caiena e eles saíram. Essa era uma maneira de fugir dos receios quanto à saúde.
— Madame Lefèvre, a senhora já adoeceu aqui?
— Coisa pouca, nada demais. Para mim, dou-me bem com o lugar, isto é, de saúde. Mas muita gente já se deu mal.
Suas palavras o tranqüilizaram um pouco, mas a parte final abriu a porta para o medo voltar.
Andaram pela cidade velha, olharam a Ponta de São José e ficaram um bom pedaço na praça do Governo. O prédio central era o antigo Convento dos Jesuítas, um edifício de dois andares com uma mansarda, o teto bastante inclinado. Na entrada, o brasão da Guiana. Laurence, toda gentil, nem parecendo mais a mulher agressiva do almoço, começou a explicar:
— Veja aqui o brasão da Guiana. Primeiro, a data de 1645 e três flores-de-lis sobre um céu azul, numa maneira de juntar a Guiana à França, para dizer que é francesa. Embaixo, uma canoa cheia de ouro, essa perdição dos homens e das mulheres que enche o chão da Guiana, sua principal riqueza, deslizando num fundo vermelho, para mostrar os minerais todos que a colônia tem. Embaixo estão três vitórias-régias, bonita planta que vive nos pântanos e rios, para sugerir a beleza das florestas e campos deste imenso território.
Kemper ouvia aquilo com a cabeça longe, pensando nas febres.
— Senhor Kemper — Laurence falou mais alto, e o despertou da apatia. — Veja agora o atraso: olhe o que eles colocaram segurando o brasão, com as unhas grandes agarrando tudo? Esse bicho preguiçoso, que só come formiga, dois tamanduás-bandeira. — E acrescentou, voltando a ser a mulher da véspera: — Símbolo bem da terra: preguiça e formiga.
Anos depois, Kemper relembraria essa conversa que expressava o sentimento dos funcionários coloniais sobre a Guiana. Todos sentiam-se desterrados. E a Guiana tinha um fascínio e um mistério que eles não entendiam.
Laurence levou-o já no fim da tarde para a hospedaria. Mas não ficou na porta. Quis entrar, e ele não teve como evitar. O quarto estava desarrumado e as roupas meio desalinhadas, jogadas na cama e em cima de uma cadeira velha. O sofá, única mobília, ficava encostado na parede, ao lado de uma mesa de pau-ferro.
— Senhor Kemper, estou muito curiosa. Mulher é sempre assim, ainda mais se tratando de moda. O senhor é um moço bonito, tem um porte macho e uns olhos que a gente vê e não esquece.
Kemper ficou perturbado, sentiu calafrio, avaliando aonde ela queria chegar. “Essa mulher é um perigo. Varia do sério para o grosseiro, e agora com essa investida. Nunca me aconteceu coisa dessa. Nunca nenhuma mulher me seduziu.”
Olhou para ela e só pôde dizer: “Obrigado.” “E se o Senhor Lefèvre chegar aqui? Com essa mulher sentada, sozinha comigo? O que vai acontecer? ‘Esse vagabundo mal chegou e já se tornou amante da minha mulher. Vou matá-lo.’”
A Guiana para ele passou a ser uma terra de absurdo.
— Senhor Kemper, mostre o vestido que o senhor trouxe de Paris. Passei a noite toda pensando nele. Quero vê-lo, Jacques.
A voz de intimidade assustou-o.
— Madame Lefèvre, as recomendações que eu trouxe são muito severas. Eu não posso faltar à confiança dos meus patrões. É meu emprego. Como eu poderia abrir esta caixa, que não sei o que tem? Eu nunca vi esse vestido. Como abri-la?
— Kemper, você não pode negar uma alegria à curiosidade de uma mulher como eu… Não saio de seu quarto sem ver o vestido!
— Madame Lefèvre… Laurence, por favor.
— Pois bem, eu vou para o quarto e vou vesti-lo. Se você quiser, me agrida, me rasgue, me impeça.
Kemper ficou sem saber o que fazer. Laurence caminhou para o quarto. Ele a seguiu. Ela viu o pacote sobre a cadeira e começou a abri-lo, sem vacilações.
— Madame Lefèvre, não faça isso. Não me obrigue a ir atrás do seu marido, pedindo que ele venha aqui buscá-la.
— Pode ir, ele me encontrará nua, na sua cama…
Kemper não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Depois, com o correr da vida, ele foi se convencendo pela idéia da magia daquele vestido.
— Pois irei.
— Vá — e começou a despir-se.
Kemper retirou-se do quarto, sentou-se no sofá e não sabia o que fazer. Ouvia pela porta escancarada os ruídos da caixa sendo aberta e imaginava que Laurence já estava sem roupa e, pelo que sentia, pensou: ela não queria só ver, mas vestir o vestido da Senhora Bonfim. Foi uma espera angustiada na sua vida, que até então tinha caminhado sem coisas assim.
O vestido tinha a saia comprida, de pregas que caíam da cintura e eram acompanhadas pelas dobras até a barra da saia, circundada por uma cinta de rendas e franjas bordadas. Um casaco de elegante corte de sino, repartido em duas abas também rendadas, que desciam como estolas e passavam alongadas além da cintura, ladeadas por duas fileiras de botões cobertos de cetim e pequenos bordados. A blusa de renda, por baixo, subia, branca, em contraste com as cores fortes, e fechava no pescoço, numa gola de sedas e babados que combinavam com os punhos das mangas longas. Era um vestido sem saias apoiadas por armações, destacando as formas finas. Enfeitando o tecido, pérolas e lantejoulas. Era uma bonita obra da moderna costura francesa.
Laurence voltou à sala, deslumbrante. Era outra mulher. O traje que Kemper levava para a Senhora Bonfim dava-lhe uma aura de encanto, parecia um céu estrelado. As lantejoulas e pérolas que salpicavam o corpete e a saia enchiam de luz a sala. Kemper esqueceu seu drama e ficou fascinado.
— Kemper, dê a mão.
Ela rodava vagarosamente em torno dele, levitando, possuída pelo gosto da vaidade e encantada pelo seu próprio corpo.
— Eu nunca me imaginei vestida numa roupa destas, coisa de vitrine para mim — disse Laurence, sussurrando no ouvido dele: — Kemper, veja como é belo uma mulher feliz. Meu marido é um porco. Venha me ajudar a despir este vestido que vai ser ultrajado pela Senhora Bonfim. Leve uma roupa minha para ela, deixe este comigo. Ela não saberá de nada. A créolevagabunda!…
Kemper ficou parado na sala. Ela começou a tirar o vestido, afrouxou a cintura, desabotoou, suspendeu-o, puxou os ombros para a frente, esquivou-se para um lado e depois para o outro e foi puxando os braços de leve, lentamente, para libertá-los das mangas compridas. Abaixou-o até o chão e delicadamente retirou as pernas. Kemper ajudava. Apareceu o corpo de mulher madura bem delineado e ajustado pelas meias altas, uma pequena gordura no ventre, quase imperceptível. Os seios ainda firmes, os cabelos longos e os sapatos altos compunham uma silhueta esbelta, sensual e provocante.
Laurence pegou na mão de Kemper, atraindo-o lentamente. Ele fazia que resistia. Sentia bem perto o perfume dela e seu olhar corria as curvas do corpo.
— Kemper, veja-me sem vestido e como ainda sou bonita. Você logo me verá mais bonita ainda.
E pouco a pouco conduziu-o para o quarto. Levava ao ombro o vestido de Saraminda. Em cima da estreita cama de solteiro de Kemper estava jogado o seu próprio vestido. Ela colocou o que trazia na cadeira perto da parede, em cima do assento, deixando-o cair atravessado de um lado para outro. Fechou a porta.
Kemper estava imóvel, lívido. Laurence tomou a iniciativa de colocá-lo à vontade: “Deixe-me abrir sua roupa” e as mãos deslizaram sobre o seu peito, enrolando os pequenos cabelos. Depois, retirou-lhe a camisa com cuidado e afagos e pediu:
— Desabotoe meu sutiã, é fácil… os pequenos botões… assim…
Kemper jamais ficava à vontade. Era tudo estranho. Laurence desinibiu-se e realizou todos os avanços.
— Onde vai ficar o vestido que está em cima da cama? — perguntou Kemper.
— No chão — respondeu ela —, com as minhas meias e a minha calça íntima.
Viu-a deitada, madura, rija, carente de todos os afetos.
— Kemper, só temos uma vida. Não pense em nada, pense neste instante. Não há coisa melhor do que uma mulher entregue a um amor impossível e inesperado. — Seu corpo branco refletia no escuro claro do quarto. Estava irrequieta e carente. Partiu como uma pantera faminta.
Uma sineta tocou na rua. Bateram na porta, Kemper tremeu. Laurence suspirava e, quase sem falar, disse: “Não é nada, é um pregão de garrafas vazias… Deite-se… seu suor me enlouquece. Não pare. Este cheiro de suor pegajoso me excita e faz enlouquecer.” Ela esquecia o tempo e a tarde passarem.
Kemper viu a noite baixar de leve sobre Caiena. Exaustos, já escurecia e Laurence tinha que sair. Mas ela ia e voltava. Ele não vestiu a camisa. Laurance pediu que o fizesse. Esse teu cheiro de corpo não me permite sair. Finalmente levou-a à porta.
— Você estava linda. O vestido da Senhora Bonfim ficou belíssimo no seu corpo. Nunca pensei que existisse uma mulher tão encantadora nos calores de Caiena. Não esquecerei jamais estes seios.
— Kemper, amanhã eu volto para que você os veja de novo e irmos visitar os tamanduás do escudo de Caiena… — E sorriu.
Ele ainda era desejo.
17
Os presentes chegaram
Compadre Clément, só depois comecei a montar as coisas e conhecer o caminho do sofrimento. Eu, Cleto Bonfim, fiquei prisioneiro dessa paixão, uma cadeia sem limites. O francês trouxe o vestido, mas ela não queria vestir. Ficou fascinada de ver e tocar. Tirava da caixa, olhava, cheirava e suspirava, como se encontrasse um perfume mágico, e tornava a cheirar e me obrigava a cheirá-lo. Depois se deitava e fazia como fez com o vestido de noiva, botava na rede, ao lado dela, e o vestido era de uma cor rosa que contrastava com sua cor escura, e achei que tinha um jeito de usado, mas era bonito. Depois vi o tamanho e me pareceu ser maior que Saraminda. Mas ela não via nada, não estava atenta aos defeitos. Para ela era o fascínio de um vestido de Paris, presente que ela julgava de Kemper e não da Equatoriale, pois ela não atinava o que era a Société. Tudo isso eu senti quando ela me disse: “Esse moço de olhos azuis veio da França para me trazer esse vestido, sem me conhecer. Quem disse para ele que eu estava aqui?”
— Saraminda, esse homem é o portador da empresa que compra e vende meu ouro e viaja por ordem dela. Eles querem me agradar e, para me agradar, têm que começar por você. Ele trouxe, também, uma caleça que mandei buscar para você.
— Meu Deus, Cleto Bonfim, você me deu um carro para andar?
— Sim, Saraminda, está desembarcado no porto do Firmino, esperando transporte para cá. E aqui não tem caminhos para ele, é preciso abri-los.
— Como é caleça, Bonfim?
— É um coche de duas rodas, com uma coberta de lona, bancos de couro, para ser puxado por dois cavalos…
— Eu vou ter um carro com dois cavalos?
— Vai, Saraminda, com portas bordadas de ouro, com as rodas douradas.
— E como vai passar nestes caminhos?
— Vou mandar abrir uma estrada só para você, ninguém nela vai andar, sai de nossa casa até meu barracão. Você vai e volta, de sombrinha e vestida com essa roupa de Paris.
*
— É mentira, Cleto, não chegou caleça. Chegou um cabriolé, coisa já fora de uso que eles remeteram para enganar você. Eles sabiam que aqui no Laurent não tinha caminho para carros puxados por cavalos. Mais do que coche, landau, eu mandei buscar para Caiena, e todo mundo até hoje ouve seu trote nas ruas, puxado por uma parelha de cavalos brancos, e o povo de Caiena ia para a porta vê-lo, batia palmas e dizia: “Viva Clément e o progresso de Caiena.”
“Mas eu mandei também trazer uma cadeira de trono para ela. Veio com o carro, e o francês não sabia. Mandei vir tudo que uma dama de sociedade tinha em Paris. Eu queria que ela fosse deusa. Eu gostava muito da chamada liteira de Saraminda. Uma casinha com duas janelas, uma de cada lado, com cortinas, e dentro almofadas de veludo vermelho e franjas amarelas. Estava montada em dois caibros dourados com alcochoados nas pontas, para dar conforto aos dois homens, um na frente e outro atrás, carregando o palanquim. E eu, Cleto Bonfim, mandei buscar um ourives e mandei gravar em ouro, do lado de fora, o nome Saraminda dos dois lados. Eu fiz isso e ela não ficou satisfeita e me pediu para mandar gravar embaixo Amor de Ouro. E eu perguntei: ‘Por que amor de ouro?’ e ela simplesmente, com aquela voz, me respondeu: ‘Sou eu.’ E me pediu: ‘Me beija, Bonfim.’ E eu beijei.”
“Depois que ela recebeu as coisas, o vestido, a cadeira e o coche…”
— Não é coche, Bonfim — interrompeu Clément.
“Era, na carta tinha escrito o nome coche.”
— Aquilo era um cabriolé, eles enganaram você e cobraram muito mais ouro do que valia — tornou a falar Clément.
“Compadre, se for isso, eu vou matar esse homem na França e começo pelo Lefèvre, aqui.”
— Você está morto, Cleto, você não pode matar o Lefèvre, ele também está morto.
“Então, eu mato a morte. Vou continuar. Depois que ela recebeu meus presentes, se trancou em casa e botou o trono na varanda e depois no quarto, junto com o vestido. Passou um dia e uma noite e não me recebeu. Chorava, que o seu soluço eu ouvia, com meus ouvidos abertos na direção das portas, e eu implorava: ‘Me recebe, Saraminda’, e a resposta era o silêncio dos seus soluços. Ela devia me agradecer por tudo e me amar muito mais. Fez o contrário. De manhã ela abriu a porta e apareceu. Seu corpo nu estava mais belo que nunca e então me perguntou: ‘Onde está o francês que me trouxe o vestido?’ ‘Viajou esta manhã.’ ‘Mande buscá-lo de qualquer jeito. O vestido que ele me trouxe está rasgado nas costas, coisa que não me agradou. Logo um vestido que atravessou os mares.’ ‘Me mostra.’ E ela foi buscar. Tinha um corte, que não parecia rasgado mas cortado como se fosse de tesoura, reto, sem bordas esgarçadas. E ela repetiu: ‘Manda buscar esse francês’. E eu mandei no meu cavalo de sela Celestino Gouveia botar trote e trazê-lo de volta de qualquer maneira. Eu não sabia que aquilo já era uma artimanha e conhecido machavelismo dela. Mulher bandida.”
“‘Não diz isso de Saraminda, nojento. Saraminda é tudo para você’, eu disse para mim mesmo.”
“Mais ou menos ao meio-dia, o Kemper chegou de volta, sob ordem. Saraminda estava no quarto. Eu mandei que se trancasse de todo, porque não podia ser vista do jeito que andava e só eu tinha o direito de ver, e via, mandando fechar todas as portas, e com ela só tratavam as duas crias da casa, que ela mesma escolheu, as saramacas Gedina e Maruanda.”
“Ele chegou, olhei com muita raiva e disse: ‘Dona Saraminda quer devolver o vestido, ele está rasgado!’ Eu desde o princípio não topei com a cara dele. Era muito almofadinha para meu gosto. Vi que o francês começou a tremer. Ficou mais branco do que cal virgem e mal gaguejava, dificultando a tradução de Maruanda, que falava francês. ‘Eu apenas trouxe a encomenda, nunca tinha visto o vestido…’ Nesse momento, a voz de Saraminda foi ouvida: ‘Bonfim, abre a porta, quero falar com ele.’ ‘Não, você está louca?’ E aí fui entrar no quarto e ela já vinha saindo, vestida no vestido com a saia arrastando, grande para seu tamanho, meio folgado na cintura, e foi logo dizendo: ‘Seu francês, veja aqui no meu cangote o rasgão.’ Eu, Bonfim, besta como besta, não maldei nada. Ela queria era ver o francês, e ele foi tremendo. E quando ela apareceu, ele abriu a boca e fez como se quisesse fazer espanto e apenas balbuciou, com a boca de babão: ‘ÓÓÓ.’ ‘Fale, seu francês, veja o que Dona Saraminda está pedindo.’ Eu já estava com raiva, queria lhe dar uns bofetes, homem sem modos nem educação, mandado numa missão tão importante e de responsabilidade, de Paris ao garimpo do Calçoene, e bobo daquele jeito. Empurrei-o. Não sei se ele viu o rasgão ou se fechou os olhos, mas respondeu: ‘Eu vou levar de volta e a Société Equatorialevai mandar outro.’ ‘Não, seu francês, não é preciso, o senhor vai fazer um cerzido no rasgão’, aparteou Saraminda. ‘Eu, minha senhora?’ — disse Kemper, vacilante. ‘Não sei fazer, levo o vestido para vir sem defeito de Caiena.’ ‘Não, seu francês, é aqui, e aqui de casa o vestido não sai.’ Eu, sem saber que ela queria era que o francês não viajasse, e o rasgão do vestido era o motivo de retê-lo, desculpa esfarrapada que eu, Bonfim, engoli como se come mosca.”
— Mas, compadre, o Kemper teve de costurar o vestido?
“Não, depois ela foi enrolando, e ele era chamado para ir todo dia, de manhã e de tarde, acompanhar uma mulher do Limão contratada para fazer o serviço, obrigado a fiscalizar e ajudar. O bicho era uma lesma, não sabia nem enfiar agulha. E Saraminda fazia o diabo e nunca estava contente, em tudo botava defeito, fazia e desfazia, com o francês assistindo, que é o que ela queria. Ah, compadre Clément, como me queima não saber se ele se agarrou com ela naqueles dias e se a viu nua e se foram para a cama. Francês nojento, sujo, canalha, costureira…”
— Não diga isso, compadre, ele já deve ter morrido…
“Morreu para você, para mim é uma raiva eterna. Ele a viu nua, compadre. Tenho certeza. Ninguém tinha coragem de me dizer, mas do jeito que ela estava no cio e que eu não via, ela se entregou para ele. Logo para aquele bobo, moleirão, branco que nem osga, abestalhado, com um ar de espanto e uns olhos esbugalhados de medo. Compadre Clément, lembro que um dia choveu uma chuva triste, que batia na nossa casa como se alguém estivesse chegando, e os cachorros ao longe latiam e latiam de dia, chovendo, e guardei na cabeça aqueles uivos que eu nunca ouvira em manhã de chuva e de dia. Foi então que ela me pediu pela primeira vez que mandasse buscar mais cinco cachorros para vigiar nossa casa. E mandei encomendar na Vila do Firmino. E ela pediu: ‘Cleto, não deixa esse francês viajar. Ele é espião que veio para ver o ouro e deve estar a serviço da tal Sociétépara roubar você. É uma trama, procure saber. Deixe ele preso, tive um pressentimento. Deixe-o sempre perto de você.’ Acreditei, eu que via nesse francês uma baboseira de gente, nunca com capacidade de espião. Assim, ele não viajou, por determinação minha, com ordem de não sair. O tal espião que ela descobrira era o amor que teve por ele. E eu não vi. Passou debaixo de minha janela, voou na minha cara, cobra que se enrolou na minha perna, e eu não senti.”
18
A prisão dos sonhos
Eu nunca soubera o mistério que se esconde dentro de um homem desejado por uma mulher. Os homens são fáceis. A caça mais certa de apanhar. Eu brincava com eles, sabia a arte de seduzi-los, levá-los ao desejo insaciável, mas não me entregava. Não me dava vontade de me entregar. Eu queria sempre que eles tentassem de novo. Eram sujos, tinham cheiro de trabalho e pingavam ouro. Minha fidelidade a Cleto era não querer deitar com outros homens, mas eu fazia mais. Eu brincava com eles como com as bonecas. Eu tinha o prazer de me mostrar, o segredo deles me verem nua e fecharem os olhos com medo. Com Clément Tamba fui mais longe. Deixei que ele me beijasse, que segurasse minha carne, sentisse o calor dela, que amaciasse meus seios, e estive à beira de sucumbir. Mas resisti e não resisti. Deu-me a sedução de saber o que eu sentiria depois de tê-lo. Fiquei com medo de me enojar dele, de quem eu gostava e que era amigo de Cleto, coisa de irmão. Mas Tamba era homem de bons modos, educado, de agradar, de ter gestos de delicadeza, de amaciar as mulheres. Fiquei feliz quando ele, sabendo de meu gosto por bichos, me enviou um veado-catingueiro, desmamado, pequeno, com as pintas brancas começando a aparecer no pêlo castanho. Dei leite de árvore-da-vaca para ele, que mandei tirar na floresta, o bicho cresceu, e eu com carinho fazia-o comer na minha mão, e quando eu ia ao quintal, para onde eu fosse, ele me acompanhava. Tamba voltava sempre com a desculpa de ver o animal, e eu sabia que aquilo era despiste. Bonfim tinha medo de ter ciúme de mim. O ciúme é uma coisa que cresce nas pessoas como mandioca. Cresce pelas raízes, forma batatas, vai aumentando, tira o verde das folhas e seca. Quando se arranca o ciúme, a planta está morta. Eu nunca soube o que era ter ciúme. No bordel, todos os homens eram de todas e todas eram de todos os homens. Algumas gostavam de xodó. Eu logo fui de poucos fregueses, não por hábito meu de não gostar, era de plano. Eu pensava em um dia largar aquilo e ter um homem meu. Nada por amor, mas para ser de um homem, porque todas as mulheres tinham de ser de um homem. Eu nunca tinha sabido o que era amor. Por isso, quando vi o amor, me assustei. Por que estou mentindo para mim mesma, dizendo que nunca fui de Tamba? Eu fui, no quintal, dentro do galinheiro, da maneira que pode ser, de pouco, sem demora, não deixei que ele me possuísse toda e fiquei feliz, fugi, só deixei ele provar, saí correndo, e Clément ficou mais desvairado de vontade e pedindo: “Saraminda, vem.” Me recordo de sua cara apalermada, babando. Mas não foi de caso pensado meu fazer coisas de outro jeito. Ele queria mais, eu também queria, mas eu queria respeitar Bonfim. Com Clément eu tinha esse cuidado. Com outros homens eu fazia e desfazia, só pelo gosto de danar. Com Tamba tinha Cleto no meio. As pessoas estavam por perto e eu queria deixar que todos pensassem em mim, como pensavam na minha fama, sem nunca me ver ou provar.
Eu disse a Bonfim que me deixasse ser eu, que me deixasse ser cobiçada pelos homens, mas que eu era dele e só dele. Acho que as mulheres todas dizem para os homens que eles são os melhores amores de sua vida, juram fidelidade, mas nunca podem cumprir. Ele me aceitou assim, com medo de me perder e enganado, até o dia em que o chamei e disse: “Cleto, Jacques Kemper não pode abandonar mais o garimpo, não é questão de ser espião nem nada, é que estou querendo ele.” Eu pensei que ele, dominado pelo meu feitiço, ia sofrer e me matar. Eu queria morrer. Mas ele não compreendeu e ficou desesperado, botou cinco homens vigiando Kemper, mandou fazer um barraco reforçado, todo de paus de angelim, e o prendeu. Acho que ele pensou em matá-lo e voltou atrás depois que eu disse: “Se Kemper morrer, eu vou me matar.” Então ele ficou com medo e começou a chorar, e eu tive pena dele. “Eu não o matarei, mas vou mandá-lo de volta para a França. Escoltado daqui à Vila do Calçoene, no embarcadouro do Firmino, onde atracam os navios, e lá colocá-lo num navio para ele voltar para a terra dele.” “Eu me mato também.” Então ele resolveu prendê-lo e eu concordei, mas com uma obrigação: a prisão tinha de ser no quintal de casa, e eu iria ver todo dia se ele estava vivo. Queria uma guarda de capangas para protegê-lo e meus cachorros, que, então, eram mais de cinco. Eu disse a Cleto que Kemper não sabia nada de mim, que eu nunca conversara com ele sobre coisas de homem e de mulher, mas, na verdade, só vivia a pensar nele. “Você sonha com ele?” perguntou. Menti: “Não, não sonho, ele para mim é um bicho de estimação que eu quero preso, assim como se fosse um cachorro.” Cleto ficou feliz quando falei cachorro. Ele respondeu: “É cachorro, cachorro, cachorro.” Mas não menti quando falei que não sonhava. Eu vivia acordada com ele, vendo os olhos azuis entrarem pelo meu corpo e me invadirem toda, me tornando azul, me fazendo ser luz, me saciando sem saciar, no desejo de desejar. Eu sofria. Minhas noites eram de insônia. Mas nunca deixei de receber Bonfim. Era meu dono, me pagou dez quilos de ouro. Não digo que era só por isso, era também pelo costume que ele me ensinou. Nunca pensei nessas horas que ele era Kemper. Mas comecei a pedir a Cleto que se banhasse antes de ter comigo e que botasse alvaiade no sovaco e essência no cabelo, para que o cheiro fosse dele, Cleto, e não me fizesse pensar em cheiro de Kemper.
Só saí uma vez de cadeirinha, logo depois que meu trono chegou, pelos caminhos do garimpo. Quis ver a pepita de dezessete quilos que o chinês Li Yung achou. Então me preparei, pus o vestido de Paris, me embelezei toda, entrei no palanquim, baixei as cortinas e os dois saramacas que trabalhavam comigo me levantaram e desci a colina da casa, passei nos caminhos entre as pedreiras, com os barrancos lá embaixo, e fui. Os homens todos largaram a garimpagem e vieram para a beira da passagem e eu os via, afastando um pouco a cortina. Bonfim ia na frente e depois um capanga atrás. Pensavam que eu estava nua e quase fechei o garimpo. Quando cheguei perto da lontana de ziguezague de Clément Tamba, eu quis parar. “Foi perto dali que foi achada a pepita.” Vi quando os homens perceberam que eu não estava nua. Fomos para o barracão. Havia um quarto escuro cheio de barricas com garrafões de ouro, com a porta forte de pau-santo, fechada de cadeado reforçado e tranca. Clément Tamba me recebeu. “Bonfim, agradeço que tenha trazido Saraminda para ver a pepita do chinês”, e pegou na minha mão, como se eu fosse rainha, e me levou ao quarto escuro. Não me faltou o respeito. Tinha uma mesa comprida e estreita. Duas balanças. Ao abrir a porta, entrou um pouco de luz e dava para distinguir as coisas. Mas Clément Tamba acendeu um candeeiro e suspendeu no mais alto de seu braço, e vi a pedra suja, de cor avermelhada, meio porosa, cheia de buraquinhos. “É esta a pepita?” “Sim, Saraminda.” “Não parece, como é feia, tem cara de ouro morto.” “Mas é a maior que já apareceu em todos os garimpos destes rios, Saraminda.” Não achei que fosse ouro, de tão feia, e pude então compreender que a beleza do ouro está nos homens. Foi então que me veio à cabeça dizer a Tamba:
— Você e Cleto passaram a vida atrás de ouro, e é esse chinês que acha a pepita maior, que vai ter o nome dele? Vocês devem tirar dele.
— Tirar como, Saraminda?
— Não sei, isso é coisa de vocês.
Lá fora o vozerio dos garimpeiros era forte. Todos queriam esperar a hora de ver-me sair. Clément sentiu por um instante a ambição de ficar com a pepita de Li Yung, mas resistiu. Ele não era disso, era coisa para Celestino Gouveia.
Olhei mais uma vez a pepita. Passei a mão, belisquei Tamba e, com malícia, arrematei:
— Deixa, Clément, é feia, coisa para chinês.
Mas não foi essa a única vez que andei de trono. Eu andava todo dia. Me preparava de tarde, entrava nele no meu quintal, os saramacos me levavam para ver Kemper, verificar se estava vivo. Meu trato com Bonfim. Ficava de longe, rondava a prisão. Meu coração batia forte todas as tardes, vendo as árvores que conheciam meu caminho, aquele espaço que me separava dele. Chegava, olhava de longe pelas grades da portinhola e via seu vulto. Não lhe deixava faltar nada. Um dia eu soube que ele perguntou: “A quantos anos estou condenado?” “Cleto é quem sabe”, respondeu Gedina. “Talvez uns vinte.” “ Só pelo rasgão do vestido de Dona Saraminda? Eu não fui culpado.” Depois Kemper tomou por hábito cantar na madrugada canções da Bretanha. Elas vinham misteriosamente, de longe, no silêncio da noite, batiam em meus ouvidos e soavam como súplicas de amor. Quando comecei a ouvi-las, tomei enjôo por Bonfim e comecei a matutar. Entrou maldade em meu coração. Eu não era mais eu, e quis me libertar, libertar Kemper e me livrar de Bonfim, matando-o.
Por que eu devia matar Bonfim? Eu era dele, ele me deu valor, ele me fez a mulher mais afamada do vale do Calçoene. Eu sabia das histórias que corriam e das lendas que falavam de mim. Eu não teria coragem para matá-lo.
— Gedina, o que falam?
— Na beleza do seu corpo, nos seus olhos, e que os cachorros são possuídos pelo demônio.
— Minha pele, eles sabem como é?
— Não, não sabem.
— O meu sangue índio, minhas partes despojadas, nunca comentaram?
— Não, Dona Saraminda.
— Então, Gedina, espalha, diz como é, fala de meus peitos. Deixa essa gente ficar imaginando. Isso me agrada.
— Mas eu não falo da senhora.
— Pois conta. Fica vendo, Gedina, olha para mim para você contar para eles.
— Deus me livre. Eu não falo nada do que vejo.
— Pois descreva a quem perguntar como eu sou.
E ela passava a mão no cachorro Tupã, coçava sua barriga, e ele, deitado, se virava. Eu falava:
— Diz, Gedina, diz como eu sou. Olha para mim.
— Não olho, Dona Saraminda, é muita beleza para minha cabeça.
Bonfim me deu tudo. Eu pedia, ele me dava. Mas ele também cobrava. Eu pensava que a felicidade era sair do bordel. E não era. Bonfim não me deu o que eu sabia que as mulheres precisavam: um homem pelo qual tivessem paixão. Agora eu via que ele era feio. Sua barbicha não me agradava. Então eu via que não gostava dele. Ele me prendeu na mata, cercada de gente podre, de pernas inchadas pelo batimento da água, amarelos de febres, caindo de doenças.
O garimpo era quase todo no pé da montanha. Debaixo dela se escondia o mistério das águas e do ouro.
Quando ali cheguei, vi o vale, milhares de homens, como formiga, catando ouro. Cleto tinha no seu mando mais de quinhentos. Todos trabalhavam de comissão. Do ouro que achavam, trinta por cento era deles, cinco por cento de Celestino e dos seus homens que vigiavam o trabalho, e o resto era de Bonfim. Mas todos trabalhavam com as ferramentas que eram de Cleto, só ele podia ser dono, forma de escravizar todos, dono das criminelas, pás, enxadas, terçados e das lontanas. O acerto do apuro era feito no fim da semana, mas o ouro era todo dia pesado no barracão do dono.
No sábado, às quatro da tarde, o garimpo fechava. Todos iam lavar suas roupas, que não eram passadas a ferro porque não tinha ferro no garimpo. E de roupa lavada eles iam para as corrutelas e para os cabarés. Aí corria cachaça e dança e arrasta-corpo e tudo o mais. Mas eles não tinham posse de mulher nos barracões porque era tudo aberto. Era no mato, como bicho. Tudo gente que não tinha boa cara. Bonfim sempre dizia: “Garimpeiro é gente que tem conta a pagar. Onde corre bebida e mulher corre muita coisa. A cabeça destempera e o desejo, a cobiça e o ciúme se encarregam de fazer desgraça. Se mata, foge para o garimpo; se rouba, foge para o garimpo”. Mas no garimpo não tem lei nem autoridade. Se alguém faz um mal, é castigado ali mesmo, e o castigo é de morte. E os homens viviam sujos, com doenças, engalicados, fedendo a gonorréia, cheios de piolhos e chatos, que se entranhavam nos seus fundos. Quando ficavam magros demais, amarelos, encajibados, Bonfim dizia com ciência: “Está cheio de doença da vida.” E os mandava para a Vila do Calçoene tomar injeção. As mulheres usavam chá de cabacinha para abortar e não encher barriga. Algumas ficavam com restos e tomavam Água Inglesa para limpar, mesmo assim muitas morriam. Mesmo doentes, os homens iam para cima delas, esse desejo danado que ataca no garimpo por falta de mulher. Na tristeza deles qualquer uma serve. Podia ser velha, feia, bonita, moça ou rapariga, ou então era só ficar-pensando-em-ti.
Eu já não tinha mais vida como nos dias da minha chegada. Crescia dentro de mim uma tristeza que me matava. Eu estava presa. A selva impenetrável, misteriosa, sem fim, com todos os seus perigos, me pesava. Os cipós que se entrelaçam, de todo tamanho e grossura, descem do alto das árvores e ficam pendurados, balançando, parecem coisa viva. As cobras de terra e dos charcos, com os jacarés negros e as sucuris que ficam no caminho dos veios e, quando alguém cai na travessia, elas enrolam, quebram os ossos e engolem, misturando o corpo numa gosma que lambem, abrem a boca, deslocam queixos e suportam qualquer vivente. E como tenho medo das cobras, da cascavel que pica, e as pessoas passam a mijar vermelho, da cor do vinho! Até o mel pode matar, das tiúbas que embriagam, os espinhos de iuruparipina que têm veneno que nem dente de cobra. As plantas de veneno, o andá, o tingui, o cunambi, o açacu. Tudo é perigo.
O garimpo é de uma solidão imensa. Quando a gente olha, parece que não é no mundo. O ouro não tem cheiro. Se tivesse, o homem ia farejar e saberia onde ele está. O cheiro era da terra, e a terra estava suja pelo ouro. Eu tinha nojo do ouro. Eu daria tudo na vida para voltar para o bordel, receber os cinco francos e nada mais. Mas Bonfim, com sua doidice, me botou o vício de ser mulher, e isso me tornava escrava. Eu já ficava esperando, eu já vinha me doendo, toda a vontade se entranhava em meu corpo como reumatismo, e não podia resistir. Mas eu era como um pântano de tristeza, água parada, cercada, sem saída, destinada a apodrecer, cheia de ará bicolor e parecendo as flores roxas, de raízes enterradas da mugueta, que cheira a podridão. Eu precisava botar lenço de cânfora no nariz. Foi nesse tempo, no meio dessa escuridão, que vi os olhos azuis de Kemper. E isso me abriu uma janela de voltar a viver.
Eu queria ir embora, por que matar Bonfim? Ir embora e levar Kemper. Mas como ir embora? Eu tinha tudo e não tinha nada. Eu não iria nem ao fim do caminho que leva ao atoleiro do Cruz-Credo para tomar o caminho do embarcadouro da Vila do Calçoene. Como se pode escapar de uma prisão se em volta não tem nada, é vazio? E Kemper? Ele seria o primeiro a morrer. Bonfim nem precisava matá-lo, nem Celestino Gouveia. Bastava um caboclo daqueles do seu mando para degolá-lo. Só em pensar nisso, comecei a gritar, chorar, puxar os cabelos, e Gedina me encontrou assim: “Dona Saraminda, o que baixou no seu corpo? Virgem Maria!” E eu caí no assoalho de minha casa e só então senti que não era mais Saraminda, eu era uma pobre novilha amarrada no caminho do matadouro. Foi nesse momento que pensei no vestido de Paris e desconfiei de que tinha sido coisa feita que me mandaram. E falei para Gedina: “Vai, traz uma lata de querosene que eu preciso fazer uma fogueira.” Mas antes me enfiei no vestido, passei a mão nele, beijei, vi os olhos de Kemper e passei trajada horas e horas, sentada no meu banco de maçaranduba. Depois me despi, fui para o quintal, coloquei-o estirado, como se fosse uma mulher deitada. Vi com meus olhos eu mesma ali, no chão, envolvida na minha morte. Fui buscar um lençol, cobri tudo e fiquei velando a mim mesma. Na minha cabeça, as labaredas do desgosto subiram, e senti um alívio na alma, como se estivesse dormindo com um feitiço.
“Saraminda, que vestido bonito, ele é de maravilhas, mais esplêndido do que as quaresmas na semana santa.”
“Veja como ele brilha, tem as cores todas da noite.”
“Não, Saraminda, por que queimá-lo? Guarde-o. Ele não tem nada com o seu destino. Olhe as mãos de Kemper costurando o rasgado, os olhos enviesados, buscando seu busto, pensando em seu corpo. Saraminda, não queime Kemper.”
“Não, não vou mais queimá-lo. Ele é meu. Pode até ter desgraça, mas eu quero me vestir da desgraça pelas mãos de Kemper. Este vestido é ele. Atravessou os mares, veio de Paris.”
Eu conversava comigo mesma. O pica-pau cutucou no pé de anajá, repetiu, andou rápido, parou e bicou, tornou a catarear.
— Saraminda, que diabo está acontecendo?
Foi a voz de Bonfim.
Acordei do meu delírio. O meu vestido, o meu feitiço. Já queria morrer vestida com ele, no caixão, segurando com as mãos cruzadas meu peito, o peito do vestido que não era o vestido, era o presente que Kemper me trouxe de Paris.
— Não, Bonfim, estou vendo como vai ser quando eu morrer. Quero ser enterrada com meu vestido de Paris.
Mas eu estava dizendo que queria ser enterrada com Kemper. Ele não ouvia. O sabiá cantou no galho da faveira repleta de pequenas favas. No chão, o maracujá-brabo com aquela flor vermelha. O galo Zeca cantou. Um vento quebrou um ramo seco que saiu rodando no terreiro. Bonfim me indagou de novo:
— Que é isso, mulher?
Acordei e dormi de olhos abertos, mergulhada no meu delírio. De repente, tive medo. Olhei para Bonfim, ele parecia estar lendo tudo que eu pensava, e eu ia pedir perdão. Sua mão levantava um tacape grosso, com toda a força para rachar minha cabeça, e iam aparecer no chão os pedaços da minha traição, as castanhas da minha perdição.
— Que é isso, mulher?
Peguei tudo, vestido, lençol, e saí correndo para o meu quarto. Bonfim parado:
— Que diabo mordeu você, Saraminda?
19
Um bretão na gaiola
Por que o meu destino se acabou? Saí de Cancale, abandonei minha mãe para fugir do meu padrasto. Larguei o berço. O castigo seria esse? Eu amava minha mãe, mas tinha ciúme dela. Meu pai estava morto, e eu achava que minha mãe, ao ter outro homem, traía meu pai. Eu a abandonei por amor demais, não por ódio. Eu não podia permanecer naquela casa. Fiquei com medo de matar meu padrasto. Minha mãe viu isso. Nós dois não caberíamos ali. Paris foi um lugar de descanso e felicidade, até o dia em que Foucaud me mandou para Caiena. Desde a viagem, senti que as mulheres destas bandas têm mistério. O calor equatorial já mexia com minha alma. Depois, Caiena, Laurence a me dizer: “Veja aqui o brasão da Guiana… dois tamanduás-bandeira… com as unhas grandes agarrando tudo” e “Não saio de seu quarto sem ver o vestido”. A tarde na hospedaria, o cheiro daquela mulher, a força dos seus desejos, a loucura desordenada de seus hábitos, e eu sem saber o que estava surgindo, com medo de febre, mas o que iria me matar era o feitiço dessas fêmeas. A minha chegada ao garimpo, impacto da nobreza do rio Calçoene, com margens alternadas entre florestas e savanas, corredeiras e cachoeiras, os animais selvagens, a anta, a onça, o gambá, o tatu, a lontra, a cutia. As noites na selva, a cantoria dos pássaros no fim da tarde, todos juntos, aquelas vozes aumentando, descendo das árvores e subindo, conjugadas com o fim do sol e com o manto negro chegando, e, num lampejo, todos parados a um só tempo, num contraste de sons, da algazarra para o silêncio, silêncio tão forte de não se ouvir nada, nem o vento, nem as águas, nem as plantas. A solidão dessas noites, no meio do mundo perdido de folhas mortas, dói nos ossos. Depois, o choque do garimpo, a miséria, o exército de homens pegando terra, quebrando pedras, jogando cascalho nas peneiras, e tudo sujo, e um cheiro de suor de axilas abafadas, e o zunzunzum ensurdecedor da ambição de la couleur.
A difícil viagem conduzindo o coche e o vestido, a subida no rio, o arrastar as canoas para atravessar as corredeiras, o andar em terra, carregando fardos, logo embarcados, adiante desembarcados, depois reembarcados, alternando rio e caminho, para vencer a distância até as montanhas que surgiram depois do Grand Dégrad. A apresentação de Cleto Bonfim.
— Senhor Cleto, eu sou Jacques Kemper. Vim em nome da Société Française de l’Amérique Equatorialetrazer a encomenda do carro para sua senhora e sou portador de um presente que o presidente manda, pelo respeito que tem pelo senhor, nosso freguês, um vestido da Maison d’Amourpara Madame Bonfim.
Quantas vezes decorei essas palavras, escritas pelo Senhor Lefèvre, já com o nome da Senhora Bonfim, e o meu medo de errar.
Minha surpresa quando vi o Senhor Bonfim, magro, esguio, baixo, de barbicha, e no pescoço aquele cordão de pepitas compridas, com olhar de congre, ignorante e rude que não me deu nem bom-dia e foi logo dizendo grosserias em créoleque eu entendia pela metade:
— Deixe essas coisas aqui. Minha curiosidade é ver o tal cabriolé. O vestido você leva para a senhora quando formos para a casa. Tire o paletó e fique de camisa, isso não é vestimenta de homem aqui no garimpo. Aqui é lugar de macho e não de almofadinha.
Eu me preparara para cumprir a missão, ser pessoa de categoria, representante da Société Equatoriale, e tinha feito um esforço para naquele calor suportar aquela roupa, que guardei na viagem com cuidado, subindo rios e caminhos que nunca pensei existir.
— O senhor se senta e me espera.
E passei das onze da manhã até as quatro da tarde sentado ali, vendo entrar e sair gente, pesando ouro, recebendo vales, e ele não me deu nem um copo d’água nem me mandou dar comida.
— De noite você vai dormir no barracão do Celestino Gouveia, meu encarregado. Lá tem bóia.
Que homem mal-educado. Mas ele não sabia o que eram modos. Só conhecia a dureza.
Quando cheguei na casa e me deparei com Dona Saraminda, vi que era mulher de sedução. Tipo diferente e estranho. Seus olhos eram provocativos, e eu não tive coragem de fitá-los. Eram verdes, o rosto negro, os cabelos lisos. Fêmea de encanto. Mas eu, que estava já com medo do Bonfim, fiquei com mais medo da mulher.
— Como é seu nome, senhor francês? — perguntou com aquela voz macia que nem óleo perfumado passando no meu corpo.
— Jacques, Jacques Kemper. Trouxe este presente do presidente Foucaud da nossa empresa para a Senhora.
— Senhor Kemper, sente-se.
— Obrigado. Está aqui a encomenda. Senhor Bonfim — dirigi-me ao marido —, está cumprida minha missão.
E entreguei o vestido. Ela, então, ordenou:
— Senhor Kemper, abra a caixa.
Cleto Bonfim já era outro homem. Na presença dela, ele tinha o tamanho do assoalho. Sorria, olhava para os olhos dela, acompanhando sua reação enquanto eu abria a caixa. Ela fitava rente meus gestos. E surgiu o momento mais inusitado para meu destino. Desfiz o laço de fita cor-de-rosa largo e comecei a tirar o papel esverdeado todo enfeitado com flores amarelas e vermelhas. E apareceu a caixa, acolchoada de tafetá branco, e dentro dela, em papel de seda, estava enrolado o vestido.
— Abra o papel, Senhor Kemper.
Tomei-me de espanto e medo quando os meus olhos viram um outro vestido, não o que eu trouxera. Laurence o trocara! Ela voltara aos meus aposentos e fizera a tramóia. Coisa de diaba.
— Oh! — foi o que consegui exclamar e senti o sangue todo subir para meu rosto, os olhos embaciados, as mãos tremendo e eu tomado de um pânico que me esquentava o corpo e a alma.
— ‘Oh!’ de que, seu francês? —perguntou Bonfim, me despertando do estupor.
— Que beleza! — disse Saraminda. — Tire da caixa, suspenda em suas mãos, deixe que eu veja.
Não sei como pude fazer. Era um vestido vermelho, de decote rendado, meias-mangas largas e arredondadas, com as pontas de babados azul-claros, uma peça só, saia de roda sobreposta às duas anáguas engomadas, para garantir o balanço, e um corpete enfeitado de lantejoulas baratas. Na cintura, um amplo enfeite de laçarotes, final de uma lista larga que nascia do decote e acabava ali. Saraminda, que nunca trajara roupa de efeito, encantou-se. Logo se percebeu que era maior que ela, e me lembrei da maluca Senhora Lefèvre, que tinha feito essa desgraça. Meu medo era de que Saraminda se desse conta de que não tinha cheiro de vestido novo nem vindo de longe, nem fosse coisa de arte. Mas ela não entendia de vestidos e ficou muito feliz. Mirava, passava as mãos, e deixou, num desses momentos, escorrer seus dedos nos meus, como se me desse um sinal de mulher. E seus olhos verdes invadiram os meus, com uma expressão que eu não sei o que era, mas que queimava como fogo.
— Posso ir, Senhor Bonfim?
— Não, Senhor Kemper, tome um café com biscoitos Pilar, feitos no Brasil — disse Saraminda.
Não sei como engoli o café. Bonfim não me assustava mais. Meu medo era Saraminda. Na madrugada seguinte, comecei o caminho de volta. Ia incorporado a mais uma expedição, das tantas que diariamente saíam e voltavam levando ouro e trazendo mercadorias. Quando estava no pântano do Cruz-Credo, tentando avançar no lamaceiro, ouviu-se o tropel de cavalos. Num deles, um caboclo forte, de bigodes vastos, chapéu de abas longas, revólver na cintura e um vozeirão de gente má:
— Cadê o francês?
— Estou aqui, de que se trata? — e pensei: “Estou perdido.”
— Seu Cleto, meu patrão, manda que o senhor volte comigo.
— Alguma coisa contra mim?
— Não sei, é questão de uma encomenda que o senhor trouxe.
Pensei de imediato no vestido. “Descobriram que o vestido que eu trouxe não é novo. Dona Saraminda não deve ter gostado e vai devolver.” Logo antevi as complicações que eu estava arranjando para minha vida. “No mínimo, vou terminar no Presídio do Maroni”, me consolei para não pensar na surra e na morte que ia ganhar de Bonfim. “Será que ele ficou com ciúmes de mim e não gostou dos trejeitos de sua mulher para o meu lado?” O certo é que voltei.
Bonfim, ao receber-me, gritou:
— Você trouxe um vestido rasgado para minha mulher. Quem mandou esse desaforo?
— Eu não vi o vestido. Sou empregado da empresa, apenas encarregado de trazer a encomenda. O meu patrão queria que o carro viesse acompanhado e me encarregou de trazer o vestido. Nunca vi o que tinha na caixa — disse, mentindo. — Acho que deve ter sido defeito da casa que vendeu.
— Pois o senhor vai falar com Saraminda e explicar.
O meu medo era que, na hora da devolução do vestido, quando o Senhor Foucaud visse a peça, verificasse que era outra, e eu não teria como justificar a mudança.
Saraminda saiu do seu quarto, olhou-me, abriu um sorriso de felicidade e repetiu o jeito com que me encarara da primeira vez.
— Senhor Kemper, o vestido está rasgado nas costas.
Chamou-me e mostrou o lugar, bem perto da abertura fechada por botões cobertos de pano e casas de alças. Eu não conhecia nada de vestido, e ela me falava como se eu fosse o costureiro. “Veja aqui, bem aqui.” E sua cabeça quase roçava a minha.
— Se a senhora não gostou, posso levar de volta, e a Sociétémandará outro, é coisa de pouco tempo. Nosso desejo é que a senhora fique satisfeita. Não sei como explicar esse defeito. A casa de moda que fez o vestido é a melhor de Paris.
— Não, Senhor Kemper, quero que costure o rasgão aqui em casa. Daqui o vestido não sai.
Mas como eu ia conseguir fazer aquilo? Então, com um certo sentimento de homem, tive certeza de que era desculpa arranjada. Ela mesma tinha cortado o vestido e me mandado chamar para que eu não fosse embora. Que diabo de mulher ardilosa. Não bastara Laurence, e agora essa outra a querer me enlaçar, no meio daquela gente violenta, em plena selva, cercado pelo inferno do garimpo.
Cleto Bonfim sentenciou:
— Esse negócio de consertar é coisa de mulher. Combine com ela. Vou ao barracão.
E advertiu-me:
— Seu francês, acerte bem as coisas, tudo que Saraminda quiser, senão…
E saiu.
— Senhor Kemper, veja aqui, bem aqui…
Era Saraminda que começava, quando Bonfim descia a escada, a mostrar o corte. E curvou-se, tentando revelar os seios soltos, sem nada a segurar, no colo liso e brilhante.
— Já vi, Dona Saraminda, é coisa simples que não vai deixar defeito.
— Maruanda, vá a cozinha buscar café e biscoito Pilar para o moço.
Maruanda afastou-se. Ela então me disse numa cantoria de sereia afogada:
— Me olhe, Senhor Kemper, com seus olhos azuis.
A outra coisa eu nunca disse a ninguém. Saraminda foi ao quarto e voltou com uma peça de roupa:
— Veja, Senhor Kemper, como fiquei feliz com seu presente, sei que foi seu — e mostrou uma calça íntima, de lingerie creme, bordada com flores de cores esmaecidas, rosa e lilás. — Muito obrigada. O senhor veio para me fazer feliz — e levantou a peça e a cheirou como se fosse uma flor.
Caí em grande perplexidade. Não soube avaliar o que estava acontecendo. “Laurence”, pensei, “não somente trocou o vestido, ela colocou essa peça íntima para complicar minha missão e gozar o presente da Société.” E mais trêmulo fiquei.
Saraminda aproximou-se. O vento leste soprava pela janela, trazendo um cheiro de canela. Depois de um breve suspiro, falou:
— Me beije, Senhor Kemper. Me beije, que estou caída por você.
Quase desmaiei. Não falei nada, não tinha fôlego para nada. “Me beije, Senhor Kemper…”
— Dona Saraminda, coloque o vestido na caixa, que eu levo de volta.
E se a saramaca, sua criada, voltasse? Se tivesse visto os modos de Saraminda? Se tivesse ouvido o que ela disse? Se Bonfim passasse a desconfiar dessa história de vestido rasgado, o que iria acontecer?
— Não, Senhor Kemper. Esse vestido é de ouro para mim. É presente seu.
— Não, minha senhora, é da Société.
— Société, quem é Société? Me beije, Senhor Kemper… Me beije…
Maruanda entrou. Saraminda foi ríspida.
— Fique na cozinha. Só volte quando eu chamar.
Do lado de fora, na varanda da sala, estava o ajudante, Zerido, que Cleto deixara para me acompanhar.
— Dona Saraminda, não fale alto, tem gente na varanda, o rapaz que Seu Cleto mandou me acompanhar.
— Eu sei, mas estou falando baixo.
E abriu de vez a blusa e mostrou os seios. Meu Deus, essa visão me acompanhará na morte. Eles tinham os bicos amarelos, refulgindo fosforescentes, como ouro. Não dava vontade de tocá-los, nem de beijá-los, mas de ajoelhar diante deles.
— Me beije, Senhor Kemper…
Eu quis correr, sumir, a garganta seca, a voz desaparecera. Saindo para a varanda, disse ao rapaz: “Me leve de volta.” Quando cheguei, Bonfim me inquiriu:
— Que disse Dona Saraminda?
— Que o vestido está rasgado e eu vou costurar.
— Ela o entregou?
— Não.
— Que imbecil o senhor é. Se vai costurar, cadê o vestido?
— Está com ela.
— Eu vou saber dessa história. Zerido, leva o francês para dormir na casa de Celestino. Amanhã falo com ele.
Já era o entardecer. Caminhei para a casa de Celestino como se fosse para a última noite da minha vida. Não sei o que aconteceu. Não vi mais Cleto Bonfim. Na mesma noite, eu estava preso num quarto de paredes de tábuas retas, de onde se via tudo o que se passava ao redor e que era guardado por dois guardas, que me acompanhavam quando eu ia, no buraco do mato, para a fossa, fazer as necessidades. Depois vim a saber que os guardas não eram para evitar minha fuga, mas para garantir que eu não fosse morto por ninguém, conforme o trato de Bonfim com Saraminda.
Os dias se passaram, eu sem saber o que estava acontecendo nem os motivos da minha prisão. Não posso dizer que Celestino Gouveia tenha sido cruel comigo. Ao contrário, foi a única pessoa que, naquele momento, teve pena de mim. Me visitava e tentava descobrir o que ocorrera. Fiquei com receio de contar sobre o rasgão do vestido, para que Cleto não soubesse que eu estava comentando intimidades dele. Naquele tempo ele ainda não sentia ciúmes dela.
— Seu Kemper, Bonfim é homem de trato duro. Pessoa difícil.
— Seu Celestino, o senhor sabe por que estou preso?
— Não sei. Disseram que o senhor veio trazer umas encomendas que Cleto fez para Saraminda em Paris e que o senhor roubou a metade.
— Eu, Seu Celestino? Eu vim trazer o carro que ele encomendou e um presente que a empresa mandou para a mulher dele. Entreguei tudo.
— Então é outra coisa. Talvez acerto de contas com a empresa da França, coisas de negócio, e ele está retendo o senhor como garantia. Eu acredito no senhor. Não acho que tenha cara de ladrão.
As histórias que correram sobre minha prisão encheram o garimpo. Disseram que eu respondera mal a Cleto e ele não gostou, que o carro era feio e ele resolveu me prender, até que chegasse outro, e — o que foi mais preocupante — que eu faltara o respeito com Dona Saraminda, replicando que ela não entendia de moda.
O certo é que passei duas semanas ali. Uma noite, vieram me buscar. Achei que seria para ser morto. Levaram-me para outra prisão, por atalhos dentro da mata. Era melhor, ao lado de uma cacimba, apesar de uma privada que fazia tudo cheirar mal; mas as paredes eram de tábuas cruzadas e permitiam ver de fora para dentro e de dentro para fora. Amarrada nos esteios, uma rede; ao lado, um chinelo e um urinol. Quando amanheceu, vi a luz do sol entrar amortecida. Cedo chegou a criada trazendo café e biscoitos Pilar.
— Onde estou?
Só então soube que minha prisão ficava na mataria para onde davam os fundos da casa de Bonfim e Saraminda.
20
Um bilhete de letra redonda
Foi numa noite logo após minha chegada à nova prisão que a criada Maruanda me chamou. A escuridão descera completa e a luz era apenas a de uma lamparina de querosene que eu mantinha acesa num canto.
— Seu Kemper, Seu Kemper…
— Quem me chama?
— Sou eu, Maruanda. Minha patroa, Dona Saraminda, manda dizer que é ela que quer o senhor preso aqui, perto dela, que nada de mau vai lhe acontecer e que ela espera apenas que Seu Cleto viaje para a Vila do Firmino, no embarcadouro de Calçoene, para ela vir lhe visitar. Ela manda dizer que nunca desejou ninguém como o senhor.
— Que cilada a senhora está me preparando?
— É isso, Seu Kemper. E Dona Saraminda sabe o que quer. Ela tem planos para o senhor. Vou abrir o cadeado para lhe entregar um bilhete que ela mandou. Ela me disse que o senhor lesse, me devolvesse, e eu o queimasse na lamparina.
Maruanda entrou. Há tanto tempo sem sentir cheiro de mulher, no lusco-fusco achei-a capaz de interromper minha solidão. Olhei seus olhos. Ela ia pelos trinta anos e conservava o rosto bonito e fino que os negros marrons têm.
Foi nesse momento que pela primeira vez pensei em fugir. Evadir-me, sair daquele emaranhado sem sentido e penetrar na floresta, sem rumo, solto, morrer nos seus perigos, mas liberto daquela angústia. A criada me pareceu boa cúmplice.
Eu precisava seduzi-la, pedir seu auxílio, fazê-la participante do meu drama. Mas como confiar nela? Isso seria obra do tempo e de minha capacidade.
— Maruanda, senta aqui. Estou muito só — disse-lhe, dando um sinal de cortejo.
— Seu Kemper, aqui está o bilhete.
Abri. Esperei que fosse uma pista para minha saída, as condições de minha libertação, os motivos de minha prisão. Nada disso. Ali estava uma mensagem, letra infantil, redonda, em uma linha: “Me beije, Kemper, me beije, Kemper, me beije, Kemper”, e acrescentado: “Três vezes”. Dobrei o papel, mais confuso do que antes, e o entreguei à criada. Ela dirigiu-se à lamparina e queimou-o.
— Maruanda — pedi-lhe outra vez —, senta aqui. Ela sentou no chão.
— Me conta sua vida. Preciso de alguém para falar alguma coisa, alguma palavra.
— Não posso ficar muito tempo. Dona Saraminda sabe tudo, e vou ter que dizer tudo.
— Não faz mal. Conta tudo. Diga que me entregou o bilhete e que eu chorei. Minta. Que eu disse que só penso nela, que ela é a mulher mais atraente que eu já vi, que ela tem encantos. Que ela me solte daqui, me mande para Caiena e vá depois, que lá eu fico com ela.
— Ela sabe tudo e adivinha. Ninguém a engana.
— Tudo que eu quero, a partir de hoje, é que não me deixem sozinho, sem saber o que vai acontecer comigo. E a partir de agora terei uma motivação para o passar das horas, esperar chegar a noite para Maruanda conversar comigo. Conte sua vida.
Ela contou:
— Nasci no Maroni. Lá perto do Presídio de Saint-Jean. Ouvi as histórias de infelicidade dos presos, dos desgraçados que vinham morrer na Guiana. Meu pai era guarda da prisão. Quem era condenado na França até oito anos podia cumprir a pena, passar mais oito anos solto na Guiana e depois voltar para a França. Quem era condenado a mais de oito anos cumpria a pena aqui, mas não podia voltar mais para a França. Eram os liberados. Mas ninguém voltou. O presídio ficava cheio quando os navios dos criminosos chegavam, mas logo esvaziava, porque muitos morriam de febre, de doenças, de sujeira. Eu nunca tive coragem de ver aquela gente. Meu pai também morreu de doença que pegou lá.
— Eu não quero ouvir coisa triste. Conta como é Caiena.
— Eu vim para cá trazida por Seu Bonfim. Trabalhava com ele. Quando Dona Saraminda ficou sua mulher de casa, amasiada, ele me trouxe para serviço dela. No princípio me fez mulher dele, quando chegava embriagado. Depois não me quis mais. Saraminda gostou do meu trabalho e me tem no seu serviço. Prometeu me dar uma casa em Caiena e um quilo de ouro. Mas é mulher viciosa. Nunca vi coisa assim. É de dia e de noite. Todo homem que olha quer agarrar. Mas não deita de logo, se torna difícil, eles ficam doidos e bestas como ficou Seu Bonfim. Faz assim porque é fêmea diferente, basta olhar seus peitos. Se fosse como nós, já tinha apanhado muito.
— Quando você chegou no garimpo?
— Quando cheguei, Seu Bonfim já era o dono do garimpo todo. Ele está nesse negócio desde sempre. Vem na varação desde Roraima e já sofreu muito. Mas ser garimpeiro é mania. A pessoa enrica, fica no veio e nunca sai. Jamais está satisfeita. Tira ouro e sempre quer descobrir um garimpo novo. Garimpo morto é a coisa mais horrível do mundo. É só buraco, mato seco, restos de cascalho e os fantasmas de garimpeiros que morreram.
— E morre muita gente?
— Morre tanto quanto no Presídio do Maroni. Ouro tem dono. Todo dia tem que dar cachaça para o barranco, ele fica bêbado e deixa arrancar o ouro. De tanto beber, ele se acaba e acaba o ouro. Aí, ele morre e vira uma desgraça. Muita coisa acontece no garimpo.
— Brigas?
— Muitos ficam na miséria. A desgraça do garimpo não é somente o ouro, é a solidão. É uma sepultura viva. Apodrecemos nos buracos de onde se arranca la couleur. Todo garimpeiro tem uma vida de sofrimento e, entrando nela, dela não sai. Quando ele conta história de felicidade, está mentindo. Quem ganha dinheiro não é quem tira o ouro, é quem compra. Seu Bonfim começou a comprar e não tem mais onde colocar dinheiro. Para que serve? Ele come o que nós comemos, bebe o que nós bebemos, mora onde nós moramos e trabalha mais do que nós trabalhamos.
Parou um pouco e logo continuou:
— Ele saiu de Cametá criança, desceu o rio e subiu outro rio, até chegar a Roraima. Foi para um garimpo morto. Ficaram os buracos, cheios de uma água esverdeada, tudo com resto de barro, e o mato crescendo entre os montes de pedra e restos de barracos, e aqui e ali uma cruz quebrada, lugar da morte de alguém. Não tem nome, e se alguém grita para espantar alma penada, o grito escorre na clareira e entra no mato e vai varando, soando como vento. Seu Cleto, depois, nessa sua mania de ouro, com alguns companheiros foi abrir um garimpo lá para as bandas da fronteira com a Venezuela. O garimpo até estava dando, mas, pelo que ouvi ele contar, tinha muito índio. Todo dia índio matava garimpeiro com flecha e garimpeiro matava índio com tiro. Eles resolveram abandonar e sair. Seu Bonfim nasceu com o dom do ouro. Ouro não fede nem é rastreado por cachorro. Mas o nariz de Seu Bonfim parece saber farejar ouro. Gente desse tipo vive embrenhada na mata, sem saber rumo, atrás de ouro. Só leva o terçado, uma lança comprida para furar e ver o fundo do terreno, uma cuia de ferro, a bateia, espingarda, pólvora, farinha, sal e um pote de ungüento, comprimidos de quinina e nitrato para enfrentar febre. Foi assim que Seu Bonfim chegou no garimpo do Chiqueirão, em Maracaçumé, no Maranhão.
Maruanda interrompeu o relato:
— Olhe, Seu Kemper, o tempo está passando, e Dona Saraminda me espera. Depois eu conto o resto.
Kemper ouvia cada palavra da saramaca como se lesse um livro de aventura. Há muitas semanas não sabia o que era falar, muito menos ler. Ali, ele não vira livro em lugar nenhum. Olhou Maruanda mais uma vez, seus olhos passaram como uma sombra de luz sobre o corpo dela. A semi-escuridão completava suas formas, e ele a despiu em pensamento.
— Maruanda, volte amanhã, você me deu tanto prazer. Gostei de sua conversa. Não se esqueça de mentir para Saraminda. Ela precisa estar do meu lado.
— Do seu lado ela não está, ela está em cima do senhor — respondeu, com voz maliciosa.
Kemper não dormiu. Ouviu os primeiros pássaros cantarem com os sons da noite e só pela manhã descobriu a insônia e levantou-se, remoendo o destino. Foi quando ouviu o latido grosso, tonitruante, do Leão, o cachorro mais devoto de Saraminda.
21
Os amores pelos cachorros
O gosto pelos cachorros nasceu quando Saraminda teve a sua casa concluída. No princípio, não queria ficar só com as empregadas e os capangas.
— Cleto, quero que você me arrume um cachorro, bicho de estimação e carinho. Não é desses daqui, quero cachorro especial para mim.
E ele mandou vir da Vila do Firmino um cachorro comprado de um velho morador. Era magro, de orelhas empinadas, rabo médio, de nome Quati. Tido como bom vigia, latia muito e não suportava estranhos. As informações sobre ele eram muito boas. Quati chegou preso numa velha corda, que do seu pescoço se alongava numa vara de meio metro que, por sua vez, na outra ponta, tinha uma outra corda que ficava com o condutor. Esse sistema evitava que ele entrasse no mato e facilitava manejá-lo. Quati chegou ofegante da viagem. Saraminda não gostou dele quando o viu:
— Não aprecio a cor cinzenta.
— Dona Saraminda, quando ele envelhecer mais e engordar, vai mudar a cor. É bom cachorro, a senhora pode confiar.
Saraminda mandou lavá-lo, amarrar no quintal, dar comida e tomou a decisão:
— Esse nome de Quati é muito feio. Muda para Tupã. Quati é bicho pequeno, tem a rola de osso e, quando vai soltar ventosidade, assovia que nem gente — e concluiu a ordem: — Depois de banhar Tupã, traga-o aqui.
Aconteceu coisa nunca vista. Quando o cachorro chegou junto dela, ficou parado, deitou, sacudiu as patas dianteiras, colocou a cabeça virada no chão e ressonou.
— Deixa ele dormir. Está cansado — disse.
Quando ela fez o gesto de levantar-se, ele acordou e a acompanhou, e para todo canto a seguia. Ficou dócil. Mas quando alguém se aproximava dela, enfurecia-se e só se acalmava quando Saraminda gritava: “Pára, Tupã.”
Cleto mesmo tinha cuidado com ele:
— Cachorro chaleira, não faz outra coisa senão bajular Saraminda.
Algum tempo depois, Saraminda pediu:
— Cleto, Tupã não pode ficar só. Quero que você me compre cinco cachorros.
E Cleto começou a despachar portador atrás de cachorros. No garimpo, todos falavam da mania de Dona Saraminda, que agora queria cachorros e mais cachorros. Chegaram os cinco, e ela pediu outros cinco e depois mais cinco. A Vila do Firmino não tinha mais cachorro do jeito que Cleto queria e então foram buscar em Caiena e Belém. Cleto contratou um especialista em cachorro, que começou a correr naqueles lugares em busca de comprá-los.
Saraminda teve notícia de um velho capitão de navio, aposentado, em Caiena, dono dos mais bonitos cães da cidade, galgos, mastins e dogos e um casal de pastores belgas, um branco e um preto. Ela passou a ter essa idéia fixa, e não falava noutra coisa:
— Cleto, quero agora que você mande buscar não cachorro da terra, mas cachorro de raça, e eu soube que em Caiena tem.
Bonfim mandou saber, encarregou pessoas e finalmente fez tudo para adquirir os cães do capitão e por eles pagou meio quilo de ouro. Foi quando Clément Tamba o repreendeu:
— Compadre Cleto, pare com essa besteira de cachorro. Dê um jeito em Saraminda.
— Compadre Clément, é para fazer a felicidade dela. Toda mulher tem desejo. O dela é cachorro, pior se fossem outros.
Seus cães tinham nomes que só ela sabia colocar.
Saraminda pediu a Cleto:
— Quero o maior cachorro do mundo!
Cleto mandou um portador a Caiena levando uma carta, pedindo que da França lhe mandassem dizer qual era o maior cachorro do mundo.
— Veja, minha querida, a resposta chegou: o maior cachorro do mundo é um tal Leão da Rodésia.
— Cleto, manda buscar um Leão da Rodésia. Eu quero um Leão da Rodésia. Me beija, Cleto, me beija!
Saraminda, com seus cachorros, ficava no terreiro, debaixo das árvores. Eles todos ao redor e ela passando a mão na cabeça de uns e outros. A cachoeira onde ela tomava banho ficava a uns dois quilômetros da casa. Era o riacho Saringuê, que descia entre as encostas da mataria, dava nas pedras e pulava de uns cinco metros numa laje escura, onde se dividia em pequenas correntes que se juntavam abaixo, caminhando na direção das minas e fornecendo água para desmontar o cascalho que abastecia as lontanas.
Saraminda ia sempre para lá antes do almoço, pelas dez da manhã. Tirava a roupa, entrava debaixo da queda-d’água, os cachorros em volta e vigiando as margens, altivos, olhar de guarda. Ninguém se aproximava.
Saraminda começava o banho pelos cabelos. Passava a mão provando a temperatura da água e molhava a nuca, depois a sola dos pés, deixando o corpo enxuto. Então, levava a cabeça para baixo da cachoeira e rodeava os ombros para um lado e outro. Depois, virava de costas, arrebitava as nádegas, deixava a água cair firme nelas, escorrendo nas coxas e pernas. Era como uma dança. Só quase no fim punha-se de frente para a queda, a água caindo entre os seios, que ela protegia com as mãos espalmadas para não doer. Então, afastava as pernas para melhor equilíbrio, jogava o ventre para diante e levantava a cabeça e olhava a cachoeira massagear sua carne. Expunha-se toda, como se desejasse que a água batesse assanhada, e, quando se pensava que ia acabar, retirava as mãos dos seios e colocava embaixo de suas partes. Depois, abria os braços, as mãos espalmadas, e jogava o corpo para a frente e para trás, sorvendo o gosto do banho. Lentamente alteava a cabeça, os olhos para cima, contemplando a copa das árvores e o céu, com as pálpebras semicerradas, para defender-se da luminosidade. Os cachorros latiam e ela permanecia com os olhos fechados, descansando como se dormisse, entre os cães e o canto das arapongas. Nunca permitiu que a acompanhassem. Era um ritual solitário, dela com ela, na delícia do corpo.
Ao sair da cachoeira, Saraminda se dirigia à margem, ver o jirau onde estava uma tina, barril cortado ao meio. Nela, colocava as ervas fervidas que trazia de casa, dentro da cuia marajoara, preta, decorada nas pontas com desenho de flores e folhas pintadas em vermelho. Enchia a tina de água, misturava as ervas. Abria um pequeno cesto com manjericão, pipirioca, alfazema, erva-doce, pétalas de rosa, cascas de pau rosa, cravinho.
Tão logo as folhas exalavam seu perfume, retirava lentamente a água com mãos delicadas e gestos leves e a derramava na cabeça e por todo o corpo. O aroma a impregnava toda. Ela adorava seu banho de cheiro.
Em outras ocasiões, variava a infusão, misturando às mesmas ervas patchuli e hortelã dentro de uma garrafa de álcool durante quinze dias, o tempo de maturação. Uma vez o corpo seco, derramava a garrafa sobre a cabeça, suspirando, gozando o odor de sua carne, mais secreta do que a noite.
Depois, sentava-se no banco de toco de árvore grossa, cortada em rolete, e se deixava acariciar pelo vento, pelo calor, pela luz, pelo mistério.
Todos sabiam do seu banho, mas ninguém se arriscava a olhá-la e ser devorado pelos cães.
Só uma vez foi perturbada. Os cachorros latiram e correram até um pé de tamboril grande, de copa larga: lá em cima, trepado, Clément Tamba. Saraminda veio ver o que era. Os cachorros silenciaram, ela olhou para a árvore e deu com Clément Tamba. Ele estava envergonhado. Saraminda, iluminada pela luz dissolvida na copa do tamboril, disse:
— Clément, você, para me ver, não precisava se arriscar tanto. Me pedia e eu me mostrava.
— Saraminda, me salva. Leva os cachorros.
— Não, você desce. Eles não vão lhe fazer nada.
Na solidão do seu corpo, ela era como bicho da selva. A pele créoleera macia, engomada, sem dobras nem pregas. Não era o preto profundo e opaco dos bonis. Nela o sangue bretão, judeu, índio, banto misturou-se ao longo dos séculos, concentrou-se nos olhos, afinou os lábios, alongou-lhe o pescoço, deu-lhe sorte e sedução.
Clément desceu, trêmulo, sem poder desfrutar da visão da nudez de Saraminda:
— Me beija, Tamba, e vai embora. Não gostei de você me espiar aqui.
Os cachorros afastaram-se, latindo, com os olhos voltados para o sol. O chiado da cachoeira se misturava aos suspiros de Saraminda.
Clément saiu pelo caminho sujo de plantas rasteiras, e Saraminda voltou pela estrada larga, puxando a corda de Tupã. Os outros cachorros troteavam na frente, entre galinhas que voavam e jabutis que lentamente cruzavam o terreiro de chão limpo, onde se destacavam cueiras e tamarindos.
*
Na casa de sombras, era o remoer da lembrança que alimentava os fantasmas.
“Compadre Clément, você viu Saraminda nua?”
Clément Tamba baixou a cabeça e começou a chorar. Lucy ouviu os soluços, enchendo o corredor de tábuas velhas, as mãos no rosto, quase em desespero. Perguntou-lhe:
— Por que está chorando, Clément?
— Estou cansado de viver. Olha aqui Cleto Bonfim, que não acaba nunca.
“Clément, você viu Saraminda?”
— Não, nunca vi — e recomeçou a chorar. — Bonfim, não vamos falar daqueles tempos. Eu sofri demais. Aquele Cabral me fez abandonar minha casa, tudo que era meu, e me fez fugitivo de um lugar que eu desbravei, pelo qual trabalhei e lutei. Eu não queria terra do Brasil. Eu queria viver ali, mas Cabral era um fanático. Nós, franceses, devíamos tê-lo matado. Mas nós não amávamos a França e a França não se lembrava de nós.
“Clément, me responda de novo. Você viu Saraminda?”
— Vi, Cleto, se você quer saber, eu vi. Era linda como a deusa da lua, encoberta por nuvens negras!
“Compadre, você me traiu.”
— Não. Eu até pensei tirá-la de você. Maldito é o amor proibido, compadre. Mas ele não existiu. Era desejo, coisa de bicho, foi no vento.
“Maldito é meu compadre Clément! Só morto eu podia ouvir estas coisas.”
— Não, Bonfim, eu nunca possuí Saraminda. Ela não deixava, ela tinha desgosto dos homens. Ela só amou Kemper e só teve afeto por Nicomedes, Xaxá e seus cachorros. Agora, não adianta nada. Só resta nossa maldita solidão.
“Compadre Clément, veja a que ponto cheguei, eu, Cleto Bonfim! Mandei trazer cachorro da Europa, o Leão da Rodésia, eles me comunicaram que tiveram de mandar buscar na África. O bicho deu mais trabalho do que tudo, os homens da Société cobraram a dificuldade de contratar navio para trazer o animal.”
— Eu me recordo quando ele chegou. Parecia que era uma autoridade.
“Clément, nós chegamos à Vila do Firmino, onde fica o porto, dois dias antes da atracação do navio holandês Catupania, que trazia o cachorro.”
“‘Cleto, como é o Leão da Rodésia? É como qualquer cachorro? Será que se parece com o pastor alemão, o Ferote?’”
“‘Não sei, Saraminda, acho que não.’”
“O cachorro tinha uma coleira larga, de couro alaranjado, quase da sua mesma cor, com umas incrustações em prata de um escudo que ninguém sabia o que era, mas logo leram que era da Associação dos Criadores de Leão da Rodésia, com sede em Bruxelas.”
“Foi nesse tempo que eu contratei no Cunani um soleiro, oficial de primeira competência, só para fazer a coleira de todos os cachorros, largas, como a que veio no Leão da Rodésia, rédea comprida de sola entrançada. Saraminda, triunfal, saía com orgulho, puxando sua matilha de mais de vinte cachorros.”
“Quando ela entrou no garimpo com o cachorro de raça, a corrutela parou. Todos saíram de casa, e não se sabia, e era coisa de admirar como aquela mulher podia conduzir um cachorro tão grande, que ela só conhecera agora, e estava dócil, e que parava quando ela mandava, deitava quando ela pedia e ficava ao seu lado, carinhoso, recebendo suas ordens, manso, com o couro luzidio de um castanho-escuro alaranjado, cara larga, mandíbulas fortes, servidas por carnes arriadas que caíam de cada lado, dando um aspecto de medo e ferocidade que ele só mostrou uma vez e foi o bastante para inspirar pavor. Saraminda e o Leão pareciam velhos conhecidos. Ele tinha com ela o mesmo comportamento dos outros cachorros. Ela fez uma festa para sua chegada.”
“Compadre Clément, eu, Cleto Bonfim, convidei o garimpo inteiro para a apresentação do cachorro. Levantamos um tablado, você se lembra? E ele subiu com ela, toda cheia de orgulho, e eu, feliz, mandei servir cachaça para a rapaziada, os outros cachorros latiram a noite inteira, mas não brigaram, era dia de confraternização, parecia jantar de São Lázaro, quando os cachorros não se estranham.”
“Foi nesse dia que ele disse a que veio. Quando Saraminda ia descendo do tablado, Fiapo, garimpeiro do meu serviço, fez um gesto de ajudá-la e segurou seus braços. Leão da Rodésia não gostou e levantou-se nas patas traseiras, mostrando o gigante que era, rosnou tão forte que todos pararam de falar e um silêncio bateu no ar com o recado de intimidação: ninguém podia tocar em Saraminda.”
“Ela sentiu a devoção e a fidelidade do cachorro, comoveu-se, chorou e disse: ‘Me beija, Cleto. E eu beijei.’”
22
Uma visita de amiga
Maruanda aproximou-se lentamente, tateando as trevas, e chegou à prisão de Kemper. A noite estava pesada. Ela sussurrou entre as tábuas:
— Sou eu, Maruanda.
— Estava ansioso. Por que você não veio ontem?
— Porque Dona Saraminda não deixou. Me proibiu de ver você e me disse que só podia vir com permissão dela. Mas eu vim. Meu medo são os cachorros. Quando ela se deita, os cachorros não saem da ronda do quarto.
— Maruanda, você disse o que mandei dizer?
— Disse, com a mentira toda. Ela não fala conosco coisas dela e de seus amores. Nunca vi homem tão besta como Cleto Bonfim. Ela faz com ele tudo que quer. Tem todos os desejos, e ele cumpre. Seus pensamentos e vontades. Ninguém sabe até hoje se ela se entregou para o garimpo inteiro. Mas o falatório é grande.
— Como? Ela é assim?
— É a mulher mais caprichosa que Deus colocou no mundo. Mas é um perigo ser dela. Corre a lenda que depois ela manda degolar. As histórias são muitas, mas nunca é possível saber toda a verdade. Ela não deixa rastro.
— E Cleto?
— É enfeitiçado.
— Mas você ia me contando a história dele e….
— Eu disse que ele ficou no Maranhão, no Garimpo do Maracaçumé. Lá, o ouro era pouco, e ele veio para o Amapá, varando até encontrar o rio Calçoene, onde Firmino descobriu ouro. Ele tinha uma grande sorte e aliança com o ouro. Foi subindo rios até que se estabeleceu aqui, na encosta da montanha Salomoganha, que é a mãe do ouro.
Maruanda sentia uma vontade curiosa de contar a história de Cleto, que ela admirava. Falava como se participasse de sua aventura.
— Veio gente e ele pôs no serviço. Todos ganhavam porque o ouro era demais. Em todo córrego dava ouro. Ele explorava o seu e comprava o dos outros. Até que chegou Clément Tamba e depois voltou a Caiena e trouxe os franceses créoles e todo o povo de lá. Tornou-se amigo de Bonfim e com ele aprendeu muita coisa. É homem de instrução. Eles organizaram o garimpo, comandando e dirigindo. O ouro, aqui, sempre apareceu em todo lado.
Jacques Kemper pensou que, livre, entraria no negócio do ouro, mas agora nada podia fazer.
— É assim, Maruanda, quem quiser pode entrar para garimpar?
— Todo mundo. O que falta é gente. Chega todo dia, entra de meia e aprende a tirar o ouro que não acaba. O senhor não vê as barricas que levam para Calçoene? Dentro vai o garrafão cheio de ouro.
— Não, eu não vi nada. Não me deixaram ver, não quero ver, eu quero é que você me tire daqui — disse Kemper, coçando a perna picada por um carapanã.
— Seu Kemper, vai ser difícil. Só tem um jeito, engajar-se numa varação, escondido no meio dos garimpeiros que estão saindo daqui, porque se meteram em alguma dificuldade de mulher ou de briga, e vão tentar descobrir um novo garimpo. Eles sempre descobrem.
— De que eles fogem?
— Coisas de brigas. Ficam cismados, têm medo da degola e sempre estão andando atrás de aventuras. Aqui, se tem discussão — disse a saramaca —, o sujeito fica jurado, some, senão é morto. É como lhe disse: briga de barranco, de mulher, de trabalho ou de bebida.
Um tiro foi ouvido. Coisa longe, nada de causar receio, pontaria de algum caçador. Ali todo tempo se ouviam tiros. O estampido dissolveu-se na escuridão. Se não era de caça, talvez fosse de gente bêbada. Um bicho fez barulho fora, um arranhar de unhas em casca de pau. Era um mucura, que come galinhas nos quintais. Maruanda ficou calada. Pensou que pudesse ser outra coisa. Mas era mucura mesmo. A galinha cacarejou abafado. “Já pegou.” “Pegou o quê?” “A galinha.”
Maruanda ficou perturbada. Levantou-se. Foi examinar a escuridão. Viu um vulto que cresceu esquivo.
— Foi mesmo mucura — disse a Kemper.
O vulto diluiu-se. O silêncio voltou. Ela, contudo, ficou nervosa.
— Não sai, fica mais um pedaço — pediu Kemper.
Maruanda estava calada. Pensava. Kemper segurou-lhe o braço, quis puxá-la. Ela se encolheu. Estava trêmula.
— Quem será?
— Ninguém, foi mucura mesmo.
Kemper recomeçou sua súplica.
— Veja se você ajeita que eu entre numa fuga dessas.
— Não é fuga, é coisa de vontade de dois ou três que se juntam para sair. Eles saem de desejo próprio, sem fugir, é porque não querem ficar. Estão jurados.
Maruanda não conseguia esquecer o barulho do mucura. Mas adiantou:
— Eu vou saber se é possível libertá-lo. Não direi nada dos meus arranjos. Marco a viagem e o senhor vai junto. É um caso diferente, porque o senhor está preso por Saraminda e Cleto. Tem que ser fuga de verdade. Mas vou me arriscar. Me corta o coração ver o senhor nessa situação sem culpa nenhuma. Meto o senhor numa varação.
— Se você está com medo, eu também estou. Deite aqui, fique comigo aqui do lado.
Maruanda deitou na rede. Estava banhada e o corpo exalava cheiro de mata e água. Kemper passou a mão nos braços dela, uma pele com a marca de carne amadurecendo. Os seios tinham caimento delicado, deslocados dos músculos que os seguravam. Kemper lembrou-se de suas aventuras de Paris, muitas com mulheres maduras que procuravam jovens. Maruanda apagava-se pelo medo. Das reações de Saraminda ou Cleto ao descobrir suas tramas com Kemper. Mas superou os receios. O desejo era maior. A atração pelo francês de olhos azuis mexia nas suas entranhas. As créoles do garimpo não se faziam de rogadas para o amor, elas também sofriam com a solidão. Kemper sabia quando as mulheres estavam vencidas. Ele também estava com medo e desejo. Não confessou e a ela se juntou como um bicho, e ela o aceitou. Apagou a luz para que ninguém pudesse vê-los pelas treliças, e a escuridão os acompanhou a noite toda. Na rede, Maruanda consumiu sua vontade, e dali só saiu de madrugada. O corpo estava exausto, seu olhar era triste pela alegria de não ter dormido.
Naqueles dias, Cleto viajou para Calçoene. Era tempo de lua. Maruanda chegou e contou-lhe dos planos de Saraminda:
— Aguarde que Dona Saraminda só está esperando essa viagem para vir aqui. Ela está excitada, armando tudo.
*
Duas noites depois, um movimento diferente, uma zoada surda e o latir dos cachorros. Saraminda tinha dado ordens para que todos os cães a acompanhassem. Os homens que Cleto deixou para me guardar durante sua viagem, quando viram a matilha desenfreada e ululante, comandada por Leão, correram mato adentro. Os cães rodearam em parelhas minha prisão. Maruanda vinha com ela, portadora da chave da tranca. Ela a abriu e Saraminda entrou. Eu fiquei imóvel, em silêncio. A luz da lua clareava o chão. A treliça das paredes deixava entrever o terreiro e a sombra das árvores. Ela entrou nua e, numa volúpia de dominação, foi me agarrando e me enlaçando como uma cobra, esguia, escorregando pelo meu pescoço e dizendo, com voz de sussurro: “Me beija, Kemper, me beija, Kemper”. E eu beijei. Beijei como nunca antes tinha beijado, um beijo sem tempo de acabar, tomando respiração sem querer e com sofreguidão. A mulher tinha feitiço. Eu me modifiquei todo, não queria mais fugir, queria ficar preso ali, sem deixar esse instante passar pela vida inteira, ali, com ela, à sua espera. E se isso é o que se chama de desespero de amor, eu amei Saraminda com desespero. Era como se a luz da lua cobrisse minha alma e essa mulher fosse a própria lua que se envolvesse em nuvens e sofresse seus encantos e seus mistérios, “Me beija, Kemper”, “Kemper, me beija”, e era tudo calor, suor, tormento, dor, prazer, ódio, fogo, “Me beija, Kemper.”
Ela me enlaçou, passou até a madrugada me fazendo carícias e eu junto com ela. “Me aceita, Saraminda, eu não suporto mais”, “Seu francês, não é assim, Bonfim para me fazer mulher dele me deu dez quilos de ouro.” “Me aceita…” E Maruanda do lado de fora ouvindo aquele sussurrar. E eu já não conseguia pensar, cada vez mais zonzo. “Não pode ser assim, já fui longe demais, meu desejo tem que ser de mistério. Aguarde, seu francês.” “Não, Saraminda.” E apertei-a para que não fugisse do meu laço. “Não force, comigo não é assim. Deixe que eu saia.” Eu me descontraí. Ela relaxou os braços, amoleceu o corpo, e eu comecei a acariciá-la, beijei-a e arriei com todo o meu peso e minha loucura sobre ela. Vi, então, a vitória daquela luta da noite inteira. Mas, na verdade, não vi. Como uma cobra ela esquivou-se e levantou-se, um coelho fugindo. Depois, voltou e foi uma tempestade que não passava, sem nunca terminar.
A madrugada chegava, os cachorros começaram a latir baixo, gemendo, como se avisassem que a luz do dia aparecia.
Pobre Maruanda, que me perdeu e queria me libertar. Mas eu não queria mais nada, senão a escravidão de Saraminda e sentir a navalha no meu pescoço, morto nessa possessão. Eu fiquei desde essa noite dominado pela angústia de querer Saraminda, que não tinha tido. No dia seguinte, repetiu-se a mesma coisa.
Sempre eu esperando chegar ao fim da cachoeira e ela fugindo na margem. Ninguém nunca sofreu tortura maior, e assim consumiram-se sete noites.
Cleto chegou. Voltou o silêncio à minha prisão e desapareceu de mim o gosto de viver, na vontade mórbida de amar com o desejo da morte, já que a minha paixão não tinha como ser. Além da prisão, o desespero. Foi neste emaranhado de infelicidade que Maruanda voltou:
— Seu Kemper, a fuga está pronta. Amanhã, pela madrugada, Severino vem buscar o senhor, que vai com mais três na varação do Cunani.
— Como posso ir? Não quero mais fugir. Desejo apodrecer aqui.
— Eles descobriram um garimpo novo e vão para lá.
— Cleto vai me buscar onde eu estiver. Não vou.
— O senhor foge, eles vão para perto do porto dos navios que aportam no Calçoene.
Aquelas palavras não significavam mais nada para mim. Eu não queria abandonar minha prisão, à espera do milagre da volta de Saraminda.
Maruanda então me entregou um bilhete de Saraminda, a letra redonda e infantil:
“Kemper, esqueça tudo. Amanhã Severino vem buscar você. Meu desejo passou.”
Desmontei-me. O que me restava então?
—Maruanda, você contou a Saraminda o seu plano?
— Não, ela adivinhou. Ela sabe tudo, não lê mão, lê cabeça.
— Ela sabe que você deitou comigo?
— Foi ela quem mandou. Mas fique tranqüilo. Ela é assim. Amanhã Severino vem esperar no poço grande e eu levo o senhor até lá.
No dia seguinte, sem nenhum sinal, destroçado, vagando sem vontade, sem saber o que se passava, esperei Maruanda. Não tinha ansiedade.
Amanheceu, ela não chegou. Cedo, trouxeram minha comida. Não entendi nada. Nenhum aviso me veio. À noite, ouvi passos, devia ser Maruanda. Olhei pela treliça. Só ouvi a voz da outra saramaca que com ela trabalhava, Gedina, que se encostou nas tábuas cruzadas e soprou entre soluços e lágrimas:
— Maruanda amanheceu degolada.
23
O caminho aberto
Dois dias passei sem dormir e comer. Até onde teria eu provocado a morte de Maruanda? Seria Saraminda por ciúmes, seria Cleto por vingança? Seria a descoberta do plano e sua conivência? Mas Saraminda de tudo sabia e articulava a minha fuga. Eu já não tinha nenhum significado para ela, que queria me ver partir. E Cleto? Por que teria sido ele? Estas coisas remoíam em minha cabeça e eu não sabia como tinha me envolvido nessa teia de paixão e desgraças.
No terceiro dia, por volta de uma hora da madrugada, ouvi passos dentro do meu quarto. Como podia ouvi-los se a porta estava fechada e ninguém me chamara? Meu coração acelerou. Era a minha degola? Seria a mão invisível que alimenta o ouro com sangue que me preparava o fim. Eu me libertaria dessa morte que atormentava meus dias. Meu pensamento último era para Saraminda, sua memória não me saía da cabeça, seu corpo e seu calor não me abandonavam. Eu não via, mas sabia que ao meu lado estava alguém. Sentia sua respiração, sua presença. Não tinha coragem de indagar. Era como se estivesse pronto para ser imolado. Foi quando surgiu a voz de Maruanda:
— Seu Kemper, não se preocupe. Vim cumprir nosso trato.
Tomei um susto. Os pêlos arrepiaram.
— Você não está morta?
— Aqui todos morrem e vivem. É o purgatório. Tenho a missão de ajudar o senhor na fuga.
— Maruanda, é você?
— Sim, sou eu. Às cinco da manhã Severino estará aqui, não posso levar o senhor no caminho do poço, porque os cachorros estão me farejando.
Senti sua mão na minha cabeça. Era fria como a água da cacimba e pegava e não pegava, escorria como se fosse gelatina, dissolvendo-se no gesto de amaciar com carinho.
Não sei mais nada. Aconteceu um vazio e fiquei tomado pela sensação de que sonhara sem ter sonhado. Peguei no meu próprio braço e senti que estava com febre, uma quentura que me entrava pelos olhos, que se instalou de repente, e comecei a suar. Os besouros zuniam e caíam na bacia de água colocada perto da lamparina. Parecia que se agitavam dentro de minha cabeça muriçocas, gafanhotos, varejeiras, içás, tanajuras, taturanas, aranhas e grilos. Meu corpo todo se liquefazia, escorrendo pelos sovacos e pelas pernas. Só despertei desse torpor quando começou a clarear e na minha frente estava um homem forte, de chapéu de palha, ombros largos, os olhos pequenos escondidos num rosto fundo:
— Sou Severino Boião. Prometi a Maruanda que você ia conosco para o garimpo novo na beira do Cunani.
Não sei como saí do delírio, só lembro de mim dentro da selva, não sei quantos dias viajando, tremendo de um calor frio no meu corpo, pés inchados. Passei a mão no rosto e senti a barba crescida, molhada. Não eram lágrimas. Era o suor que escorria dos meus olhos. Ainda pude ouvir a voz de Severino:
— O francês de barba de fogo está com febre de macaco.
Ouvia o rumor de que faziam fogo e comiam broto de samambaia fervido, junto com farinha de nó de tronco de palmeira sagüeiro, que sempre se leva para grandes viagens na mata. Eu escutava as histórias das coisas que se devia saber quando se andava perdido na floresta misteriosa e traiçoeira:
— Só comer fruta que macaco come. Capim e plantas cozidas. Talos e batatas de raízes de açucena-branca, bicho-do-coco, taquara, jacaracatiá, mamoeiro selvagem e cobra, que se come cortando a cabeça e o rabo. O centro não faz mal, e a carne é gostosa e branca.
Mas eu não comia nada. Meus pensamentos fugiam. Eu ia atrás deles, puxava de volta e eles fugiam de novo. Saraminda estava ali ao meu lado e era uma cobra com a língua titilando, as presas à vista, tentando morder meu pescoço. E eu pedindo para ela morder.
Consegui olhar, como última luz, um pé de andiroba. Ele levantava os braços em busca de sol, querendo respirar.
24
Um francês da Bretanha
Caía uma chuva fina das árvores altas da densa floresta, que chegava ao chão filtrada por muitos galhos e folhas. Era água constante, que pingava como um ruído de vento quando foge escondido nas clarabóias que se abrem nos verdes da mata.
A trilha em que Kemper se arrastava era uma puída escamoteada entre plantas baixas, imprecisa e suja, que só podia ser vista por olhos que tinham o mistério de descobrir ouro no fundo dos riachos. As folhas podres da cor de barro tornavam o chão pegajoso, um tapete de lodo amolecido pela chuva, que descia lentamente, de gota em gota, das imbaúbas para as ucuubas e destas para as palmeiras, que suavam em seus troncos roliços e cansados, escorrendo, também, pela mataria de todas as espécies, e deslizava pelas samambaias e trepadeiras que pendiam por cipós e raízes aéreas, estriadas, que se enrolavam nos caules, finas e sinuosas, baixando até o pé das árvores. As flores eram as amarelas e mínimas pétalas da copaíba esparramadas no chão.
Kemper era um fantasma dentro do próprio corpo, de onde exalava sujeira e podridão, um suor viscoso e acre de cavalo. Suas narinas se abriam como ventas de poldros desembestados no campo, arfando em busca de ar. O tempo fazia que a luz embaixo das árvores fosse escura, mais triste e sombria do que a própria selva. Sua febre comungava com as plantas, seus ossos se contorciam, doloridos e tiritantes de frio. Os olhos e a boca aberta e seca exprimiam desespero:
— Saraminda? Chega, Saraminda.
A voz delirante já não podia ser ouvida nem pelos próprios ouvidos. Eram sons estrangulados. Nada de portas para sair.
— Saraminda?
O silêncio fugia intermitente pela chuva e pelos sons das arapongas, tocando as invisíveis marteladas que caminhavam léguas até os ouvidos espantados dos bichos e dos pássaros. Soavam como dobrados de defuntos.
— Saraminda?
Barba-de-Fogo recusava-se a morrer. Jogado ao chão, não tinha mais forças para levantar e mover o corpo.
Por que chegara a Caiena? Sua cabeça era só interrogações. Tudo fora consumido pela desgraça. O resto de sua consciência estava morta, não servia para pensar mais nada.
“Você acha que nós amamos a França?”
No delírio ressuscitavam os navios saídos de Cancale, piratas e aventureiros, com o tempo sempre sombrio. Annie, a única irmã, apertava as pequeninas mãos de criança nas dele. Era o mesmo aperto que os dois trocaram quando o homem de bigodes longos e ruivos disse na Igreja que queria casar-se com sua mãe. O cadáver do pai ainda estava quente no caixão aberto, os dentes aparecendo levemente. E ninguém lhe dizia por quê.
A velha bruxa, sua avó, guardava os traços longínquos da descendência da índia caribenha, laçada e jogada na caravela por causa da beleza de seu cabelo e trazida para Saint-Malo. Rabugenta, falava como matraca, sempre de homens, de dinheiro, de banha de porcos, óleos e ostras. Em dois séculos seu sangue fora diluído entre homens e mulheres, mas permanecia o olhar selvagem na sua postura bretã: “Charlotte ainda é muito nova para gostar de viuvez, xale preto e corpo sem carinho.” Velha cretina essa avó, fazendo congre quessant, crepe e galettesalgado com trigo sarraceno.
Seis meses desde a morte do pai era pouco tempo. Nasceu e cresceu dentro de si o ódio, e naquele dia pousou na chama vermelha das velas que ardiam no campanário da aldeia. Jurou jamais aceitar intruso em sua casa. Pensar em vê-lo deitado com sua mãe, pegando-lhe nos seios e amaciando o corpo. Nunca perdoou tudo o que passou a acontecer e foi imaginado. Era necessário fugir, e o mar na frente da casa, na praia suja, era o destino. Mas não justificava a ida para Caiena, a trama misteriosa que o fez chegar à miserável condição de fugitivo e garimpeiro. “São as mais baixas condições do homem. É desgraça, miséria e doença.” A viagem, o combate, a bandeira francesa arrancada, o ouro, lacouleurdos créoles, e Saraminda. Tudo acabara. Restavam suas interrogações.
“Levanta, Barba-de-Fogo, velho francês nojento! Anda, miserável!”
E ele tinha somente vinte e cinco anos.
As pernas trôpegas agüentaram apenas uma semana em companhia do bando. No raiar da manhã, depois da parada da noite, Crescêncio veio ver se respirava. Pôs as mãos nas suas narinas. Os primeiros sinais de luz apareciam na copa da floresta em vacilantes raios de sol. Ele não sentia mais nada. Chegara à exaustão e ao delírio. A ânsia e a quentura da febre. Ninguém sabia quantos dias ainda caminhariam. As sacolas de sal estavam vazias, esgotara-se a farinha e eram poucos os cartuchos de pólvora e chumbo. Nas andanças da varação ninguém sabe o fim. Nem quantos dias há por andar nem se iam descobrir ouro. Quem não agüentasse ficava no caminho. Seria comido pelos pebas e pelas formigas.
O dia em que atravessara o Oiapoque? A descoberta do ouro acima das Sete Cachoeiras? O instante em que Saraminda, o corpo escuro e olhos verdes, fitou-o pela primeira vez e leu sua mão: “Seu destino é de espinhos cravados. Não vejo flores, vejo sangue.”
— Você não pode mais nos acompanhar e nós não podemos carregar você nas costas. A selva é assim. Só chegam ao garimpo novo os que são escolhidos pelo Diabo.
“Qual é o gosto da sua boca, francês nojento?”
Kemper, chamado como Barba-de-Fogo, ainda teve um alento para passar levemente a mão trêmula na barba. Deram-lhe água. O gosto era amargo como fígado de jabota. Seu cuspe estava podre e fedia. Sua língua era mais áspera do que a de pirarucu. O dia vinha nascendo. A caminhada tinha de prosseguir. O grupo tomou a decisão:
— Ele vai morrer! Não tem jeito. Vai ficar aqui.
Então, Gabriel recolheu o facão e a velha espingarda. Os olhos de Kemper ficaram mais abertos. Estava condenado. O frio e a febre possuíam-lhe o sangue e a cabeça. A malária de macaco era dona do seu corpo. O cheiro de sua pele espantava os besouros e os carapanãs. Mas as moscas pousavam.
— Saraminda, enxuga meus olhos!
— Está tresvariando — disse Crescêncio.
Os companheiros concordaram. Era o fim.
— E vai morrer logo. A vida é desse jeito. Sua hora chegou.
— Me levanta, Saraminda. As histórias que me contaram.
Delirava. O rio Amapá estava de maré vazante? Onde estavam as canoas do resgate? Aquele aleijado, com as pernas quebradas, de fuzil na mão, na tocaia, atirava no corneteiro: “Entrega o teu corpo de índia para mim. Dois quilos de ouro por uma noite.” E o tiro na madrugada. A navalha. Por que o destino? As corredeiras com as cobras que engoliam jacarés? A sucuri do rio Carnot? Tudo enrolado nas indagações do fogo eterno, as labaredas da febre acendiam fachos em seus olhos.
Kemper tentou soerguer-se. Severino o empurrou e puxou seu corpo para uma folhagem mais alta. Achava que seria mais a gosto da morte.
— Não será melhor a gente dar um tiro de misericórdia para ele não sofrer mais? — disse Crescêncio.
— Temos poucos cartuchos e não vamos desperdiçar um dos últimos, que pode matar um caititu para o almoço — respondeu Severino, arrematando: — Deixa esse Barba-de-Fogo acabar em paz.
Todos se benzeram. O dia ia começando. Botaram os apetrechos nas costas e começaram abrindo a facão o aceiro por onde deviam andar.
Ninguém olhou para trás. Mas aconteceu.
25
Uma paixão que voltou
Aconteceu comigo o que nunca tinha acontecido. Voltei a desejar Kemper. Depois, como sempre, o desejo passou, e fiquei com enjôo dele. Ele fugiu com minha ajuda. Com a morte de Maruanda, dei o caso por fechado. Mas, quando pensei assim, começou a crescer dentro de mim o amor que tive logo que vi seus olhos azuis e me desesperei. Pedi a Bonfim para trazê-lo de volta. Minha regra, que nunca falhou um dia, não chegou. Fiquei desconfiada. Nunca pensei na vida que ia emprenhar. No dia seguinte, não chegou. Mais outro, nada. Então, meu pensamento voltou para o francês e o enjôo passou, e comecei a ficar doida e de novo sonhava com os olhos dele e chamei Cleto: “Manda alguém atrás do francês.” E fiz aquela cena toda, que eu sabia como fazer, mas agora repetia e me lembrava do Kemper e ficava feliz porque a preta Maruanda tinha morrido e porque tinha deitado com ele, e eu, que nunca tinha tido ciúme, estava com ciúme de uma defunta. “Saraminda, você emprenhou? Você emprenhou do francês, Saraminda?” Como emprenhei? Só se fosse coisa de moça, fazer carícias e depois acontecer sem acontecer. Me contaram uma vez em Caiena que uma virgem tinha emprenhado com brincadeiras de namorado, e a semente tinha subido pelo cio. Eu, que nunca tinha emprenhado e quis, e Cleto quis, agora, por desgraça, sem querer e sem motivo, estava prenha. Eu ficava me perguntando, até que ouvi o latido dos cachorros e Celestino Gouveia gritando:
— O homem está de volta. Mas está morto.
Que faca transpassou meu coração, que pedra arrebentou minha cabeça?
— Onde ele está, Celestino?
— Está no jacá onde levei a matalotagem para a viagem. Fede que nem carniça!
Quanta angústia. Eu chorava e pensava que a paixão de Kemper voltou e que dentro de mim estava um pedaço dele, que acontecera. Desgraça minha que não queria. Queria que ele fosse embora, mas, sabendo de sua morte, eu morria também. Coisa de mulher como eu.
Quando Celestino Gouveia arriou o jacá no chão da prisão e estirou o corpo de Kemper, ele estava mais branco do que cal. Se respirava, ninguém sabia, mas de vez em quando soluçava nos estertores da morte.
Eu não sabia o que era o amor. Comecei na vida, privada do amor. No bordel, tinha que amar o serviço, era meu modo de viver. Eu desejava ter um homem, mas tinha enjôo de todos os homens. Eles me queriam por uma noite, mas nunca me tiveram. Uma mulher, para sentir um homem e entregar-se a ele, tem que sentir que ele tem vontade por ela, essa vontade do corpo, de sentir o corpo. Ninguém sente a alma sem sentir o corpo, o amor está na alma e no corpo. Não se pode amar antes, nem depois, tem de amar logo. Eu não tenho juízo para falar sobre essas coisas. Me arrependi de não ter me entregado mais a Kemper. Meu jeito de deixar sempre um pedaço para depois, para levá-lo à loucura, não deu certo. A gente pensa que pode esperar, espera, e aí não acontece mais, e o momento vai para o fundo do poço e o tempo passa. Eu me fiz mulher pela vida e só amei os olhos de Kemper, e não ele, mas depois amei Cleto. Amei como nunca tinha pensado que um dia pudesse amá-lo. Tudo isso fica confuso na minha cabeça. Eu senti quando peguei o medo de estar grávida de Kemper e eu não queria, nunca tinha me passado pela cabeça. Eu queria estar grávida de Cleto, mas foi Kemper que ficou em mim. Enojada de mim mesma, desde esse momento descobri que amava Cleto. Ele me ensinou a ser fêmea e agora me ensinava a ser mulher de alma.
Soube então que o sentimento que me fazia prisioneira de Cleto era maior do que o de recebê-lo. Não era mais vício. Ele me fez tudo, aturou tudo, tolerou todos os meus desejos, ele mereceu que eu tivesse por ele uma afeição maior. Pobre Cleto Bonfim! Sofreu, por todas as coisas que eu quis e fiz. Primeiro, senti pena, depois carinho, depois amizade, depois desapareceu o costume do vício e passei a sentir o costume de viver com ele. Esperar que ele chegasse, passar as mãos no seu cabelo, perguntar pelo dia, pedir um beijo, temer em pensar que um dia ele viesse a me deixar. Antes nunca tinha pensado desse jeito e passei a pensar. Essa transformação aconteceu depois que senti que tinha no corpo um filho de Kemper. Mulher ordinária que eu era. Podia fazer tudo com Cleto, menos um bucho que não fosse dele. Sofri, fiquei enojada de mim. Quando Celestino me disse que ele estava morto, sofri, mas senti um alívio. O destino e Deus me libertavam dele. Mas o pensamento me fez voltar para o filho que era dele. Ele morria, mas vivia dentro de mim.
Então, quis matar o filho dele. O que é o amor que tenho e penso? Comecei a remoer de novo. Pensando em Cleto, encontrei que ele era tudo para mim, que sem ele eu não existia e com ele eu já estava morta. Coisa que não entendia. A traição e o amor. A minha alma era como se fosse a floresta. Misteriosa, tentadora, bela, cheia de árvores de todas as espécies e formas, perigosa pelas maldades que me habitavam; as formigas, as cobras, as feras, os pântanos, os espinhos e a solidão que não passa.
Minha alma de mulher estava como uma onça, traiçoeira, feroz, devoradora, forte, senhora de todas as ciladas. Minha alma era como as flores: perfuma, alegra, embeleza, mas apodrece.
Minha alma era como o cumaru, que só nasce onde tem ouro. Assim eu era. Saraminda. Minha raça tem a mulher como independente, comandando homem, entregando-se a quem quer e não a quem lhe dá ordens. O que fiz com Cleto Bonfim estava na minha alma, mas não estava no meu sangue. A mulher créolegosta do corpo, mas tem alma.
26
A morte que não chega
— Corre, Gedina, apanha água na lata e joga no homem, depressa, que ele está morrendo — falou Ovídio, que cuidava da horta de vinagreira.
Foi um alvoroço, o pessoal correu para ver o francês que morria e não morria. Lariel, o hortaliço, chegou e viu estendido no chão Jacques Kemper: lívido, a boca aberta, o queixo caído de quem não tem mais o domínio do corpo. Ninguém queria sentir-lhe a respiração. Os pés estavam metidos no resto de sapato, roto em todos os lados, de onde escapavam os dedos e as partes inchadas, que do lado de fora pareciam bolotas sujas, e não dava para distinguir pele e poeira. Da camisa só pedaços soltos, seguros por antigas mangas, cujos farrapos se colavam aos sovacos; da calça não existiam mais os canos desbotados das pernas e tudo era uma sujeira pardacenta, amarrada na cintura por pedaços emendados de corda, testemunho dos meandros dos espinhos e cipós que lhe enlaçaram o caminho. Um suor amarelo escorria do rosto dele. Tudo fedia. As pessoas em volta tinham as mãos no nariz. Vez ou outra, de sua garganta brotava um soluço preto que pulava rápido em busca de ar e sumia num suspiro. Baixava de novo o silêncio, todos esperando o último estertor.
Ovídio sugeriu que se fizesse o diga-Jesus, para abreviar-lhe a passagem. O ritual, para livrar um ser do sofrimento, consistia em montar-lhe sobre o peito, tomar-lhe as mãos, abrir-lhe os braços com força, fechá-los no tórax e pedir para dizer o nome de Jesus. Repetia-se o gesto algumas vezes, até Jesus chegar e levá-lo. Junto já estava a vela acesa para iluminar o caminho do outro mundo. Mas ninguém teve coragem. O cheiro ruim, o medo de pegar a doença, a sujeira e a baba amarela afastavam todos. Gedina disse a Ovídio: “Não demora a trazer a lata de água, joga em cima dele, como se faz com pinto.”
Não parecia coisa de ser tomada opinião. Ovídio imediatamente correu em direção ao poço e trouxe a lata na cabeça. Abaixou-a, colocou-a no chão e só então percebeu que faltava a cuia e não teve coragem de jogar a água da lata direto, para que caísse como uma cachoeira rápida. Mandou apanhar uma vasilha na casa. Veio-lhe então como um raio a idéia sobre o que estaria pensando Saraminda àquela hora. Ela não mandara buscá-lo? Todos pensavam que estava de paixão pelo francês jovem que lhe trouxera um vestido de Paris.
“Será que ela não vai pensar que eu apressei sua morte?”
O medo lhe fez as mãos tremerem.
“Não tenho coragem de jogar a água no rosto dele.” Kemper soltou outro soluço. Vacilou de novo. Foi quando, para salvá-lo dessa indecisão, entrou Celestino Gouveia.
— Já morreu?
Todos responderam:
— Está nas vascas da morte.
— Se morreu, vamos enterrar logo. Pela cara, está morto, esse soluço é de morto. Vou derramar essa água na cara dele para afogar o soluço.
O primeiro bocado, de leve; em seguida, deixou cair toda a água. Os presentes afastaram-se, fugindo dos respingos que se espalharam, porque Celestino Gouveia jogou com força e de bem alto. Kemper gemeu e se retorceu todo, as pernas se levantavam, os braços jogavam e o rosto se contraía. Fez uma careta tão horrenda que Celestino Gouveia recuou amedrontado:
— Nunca vi um bicho tão feio para morrer, parece que é o Cão que está saindo dele.
A convulsão diminuiu aos poucos, o rosto de Kemper voltou ao normal, a cor branca foi substituída pela amarela, depois marrom, tornando-se rosa e avermelhada, de um vermelho tão forte que os presentes abriram a boca e bateram as mãos de surpresa:
— Meu Deus, nunca vi coisa assim! É coisa do Diabo.
E todos começaram a rezar. Gedina cantarolou uma incelência:
— Oi, mãe do Céu, oi, mãe da Terra, socorrei quem tá preciso, espantai quem tá maligno.
E o coro dos presentes respondeu:
— Fora, Satanás.
Zeduco, encarregado da horta, acendeu a vela e foi colocá-la na mão dele. O cheiro de podre desapareceu por encanto. Kemper jogou a mão, descontrolada, como afastando o braço de Zeduco. Um cachorro latiu longe. Kemper abriu os olhos, e todos, estarrecidos, ouviram sair dos seus lábios, numa voz de súplica quase desaparecendo:
— Saraminda, Saraminda, Saraminda.
Celestino Gouveia, que ouviu bem claro, se fez de surdo e perguntou a todos:
— O que esse francês está falando?
Ninguém respondeu. E, para surpresa, o chão molhado foi secando, exalando uma fumaça de evaporação, e seu corpo foi tomando vida, e a respiração, cada vez melhor, foi se normalizando. Celestino Gouveia perguntou de novo, e um bando imenso de baratas saiu dos trapos do francês e correu pelo chão.
— Cruz credo. O que esse francês está falando?
E ninguém respondeu.
— O melhor é eu dar um tiro de misericórdia nele e acabar com essa agonia.
Sacou do trinta-e-oito da cintura, apontou para o rosto de Kemper.
— Seu Celestino, pelo amor de Deus, não faça isso. Ele está chamando o nome de Dona Saraminda.
— Quem?
— De Dona Saraminda — insistiu Zeduco. Celestino abaixou o braço e disse:
— Vou falar com ela e contar o que está acontecendo. Não sei por que Cleto não me autorizou a matar esse nojento na viagem.
Saiu ainda de revólver na mão, e todos acharam que ia voltar da porta e dar fim a Jacques Kemper. Mas Celestino Gouveia não quis arriscar. Ficou com receio da reação dos outros, do testemunho de todos que ali estavam.
“Nunca matei ninguém numa roda de reza”, era o que pensava, pois os testemunhos eram muitos e ele temia a vingança que podia sofrer de Saraminda, de quem não sabia o pensamento sobre aquilo tudo. Seu sentimento era o ódio de Kemper, que tinha conquistado Saraminda. Sabia que ele não estava morto, e tiro de misericórdia é um gesto de caridade. E ele não tinha nenhuma caridade a oferecer-lhe.
Celestino Gouveia, desde que desconfiou do amor de Saraminda por Kemper, passou a ter rancor, ciúme e sabe lá o que mais. Até que, quando o viu preso, na sua chegada ao garimpo, foi generoso com ele. A prova da maior fidelidade que tinha dado a Cleto foi a de cumprir a ordem de trazê-lo vivo. E só o trouxe porque sabia que estava morto ou iria morrer na viagem. Sua intenção, quando viu o estado em que se encontrava, era o de trazer o cadáver e jogá-lo, fedendo, no terreiro de Cleto, os urubus de olho no que podia ser carniça. Mas “o miserável resistiu, agüentou a viagem e chegou até aqui, e agora ainda estrebuchava”, esse o pensamento verdadeiro de Celestino Gouveia. Foi com essa raiva que saiu para falar com Saraminda. Precisava de um acerto de contas, cobrar-lhe tudo que tinha feito, sua sedução, sua diabólica trama, na qual quase foi envolvido. Ele não perdoava Saraminda, estimulando-o a ser canalha, aceitando trair Bonfim e fazendo com ele um jogo de bandida, se oferecendo e brincando com sua fama de homem forte. Mas ela queria desmoralizar todos, encarcerá-los à sua vontade, alucinados pelo seu corpo e prontos para cometer todas as coisas. Remoia-lhe na memória o acontecido.
— Celestino, Dona Saraminda mandou que eu desse um recado para o senhor ir lá na casa dela, que ela precisa muito lhe falar — disse Ludgero, que era fiscal de grupo.
— Ela disse o que quer?
— Não falou nada.
O chamado já era coisa pensada por ela, “para me agarrar”, pensou Celestino.
— Ludgero, você tem cachaça?
— Tenho.
— Traz um trago. Preciso combater um resfriado que quer me pegar — uma desculpa de ocasião para quem não tinha na vida desculpa para nada.
Mas queria mesmo era esquentar-se, pois pressentia o que ia acontecer. Depois pensou que ela quisesse um serviço de degola. Mas não, era safadeza o que ela queria. Queria fazê-lo sofrer.
Sua decisão agora era ir a Saraminda, dizer-lhe que ia dar um tiro no francês, não de misericórdia, mas de homem de coragem, de sentimento. Matá-lo com raiva, por ele próprio e por Cleto. E assim caminhou. Bateu na porta, e os cachorros correram para ele como guarda vigilante, esperando a ordem dela.
— Saraminda, sou eu — bateu palmas —, preciso falar urgente — gritou Celestino.
— É coisa de pra já? — perguntou ela de dentro.
— É coisa de ontem, quero falar logo.
Saraminda estranhou os modos de Celestino. Jamais o vira assim.
— Vou mandar abrir a porta. Leão, Leão — gritou ela—, acompanha Celestino.
E o grande cachorro alaranjado, com as bochechas e o dorso preto, do tamanho de um bezerro, como se fosse um escravo, olhou Celestino e subiu a escada da varanda com ele. Saraminda estava no quarto. Celestino tremeu. Lembrou-se do dia em que ela entreabriu a porta para que a visse nua. Depois, a outra tarde em que ela mandou um recado por Ludgero para que ele fosse lá, e ele foi, e, quando chegou, ela mandou que entrasse em seu aposento. Tremendo, ele entrou, e ela estava nua na rede branca, a carne escura refletindo como luz em que o branco da rede era uma moldura para enfeitar um altar. Os seios, só então ele viu, eram uma lenda que corria no garimpo, mas ninguém que os vira contava, eram amarelos como ouro, não o ouro sujo do garimpo, mas o ouro que enfeitava o colo e os dedos das mulheres. Celestino Gouveia recuou o olhar, tentou baixá-lo, mas não conseguiu. Fixou-se na pele dela e percorreu o caminho de suas formas.
— Celestino, mandei chamar você para que me visse, me olhasse, porque você sempre está me olhando com vontade de me ver.
— Saraminda, não faça isso comigo, não posso trair Cleto. Por que você me escolheu para isso, menina?
Quando ele falou “menina”, sentiu que a palavra revelava um sentimento oculto de ternura que podia ser a barreira a transpor contra sua lealdade.
— Não, Saraminda, não.
E ela pediu:
— Me beija, Celestino.
E Celestino fraquejou, beijou-a. Sentiu um gosto de veneno e saiu correndo, mas não passou da varanda, contido pelo rosnar forte de Leão, que ele rapidamente entendeu. Esse dia ele não esqueceria nunca. Ficou com raiva, amor e ciúme.
— Leão, deixa ele sair e vem cá.
O cachorro afastou-se e Celestino seguiu o seu caminho. Não dormia mais, não pensava mais no trabalho, nem no ouro, só pensava no corpo de Saraminda. Arquitetou matar Cleto, proclamar-se dono do garimpo. E pensou: se Saraminda fizesse com ele o que fazia com Cleto, mandaria degolá-la e espetar sua cabeça no meio da vila, para que todos vissem a que ponto um homem pode ser levado por uma mulher. Pensou, também, em ir embora, mas isso não resolvia. Ele iria embora, mas com a cabeça da morta.
Lembrou outra vez a insistência de Saraminda, mandando recado para que a visitasse e atiçando seu espírito de modo a levá-lo à loucura, entre a sedução, o desejo e a lealdade que já não era a Cleto, era a si mesmo.
Agora estava ali, com esses pensamentos sobrepostos, sedimentados, camada a camada, verificando que ele, Celestino, era um instrumento para exercer o seu modo de seduzir e levar os homens à devassidão e loucura. Isso aconteceu com ele, Kemper, Clément, e mais Ricardo, o jovem de cabelos longos, além de Carlindo, um mágico, joalheiro e comprador de ouro que teve de fugir, e Cleto, o maior de todos, que nem sonhava que era escravo.
Celestino queria dizer a Saraminda que Kemper sobrevivera e a chamava. Era como se estivesse ressuscitando e, em delírio, repetia seu nome. Diria, também, que tivera medo de matá-lo. Todos achavam que Saraminda estava possuída de uma grande paixão por ele.
Queria dizer-lhe que ia matá-lo; queria vê-la chorando, confessando sua fraqueza, confrontada com o seu caso, para mostrar-lhe que todos sabiam como ela tratava os homens e dizer-lhe que o seu amor pelo francês estava ali numa posta de carne podre, fedorenta, acabada. Que a chamava, que ela fosse e visse como estava seu parceiro.
Entrou, Saraminda estava vestida. Em pé, junto à rede, com aquele olhar de desdém e ainda naquela postura, que ele bem conhecia, de mistério. Não aparentava emoção.
— Saraminda — disse firme —, Kemper não morreu. Está ressuscitando e chamando por você.
— Por mim? — disse, com certo temor, e repetiu: — Por mim?
— Sim, por você.
— O que ele quer?
— Não sei, apenas nos estertores da morte saiu para mostrar que você o levou à beira da cova.
— O quê, Celestino? Me respeita.
— Não, Saraminda, você fez comigo, me fez ficar doido, pior do que cachorro, e eu ressuscitei, mas não chamei Saraminda.
— Me respeita, Celestino. Não lhe dei essa liberdade. — E gritou forte: — Respeita, Celestino!
Do lado de fora, Leão latiu grosso.
— Saraminda, arranca a máscara. Aquele francês que você fez Cleto prender, soltar, mandar buscar para satisfazer seus desejos, agora está no fim. Eu ia dar nele um tiro de misericórdia, mas quando o ouvi chamar você, vim aqui para levar você lá, para ver até onde chegou sua maldade e para matá-lo na sua frente.
— Celestino, você está doido? Me respeita, Celestino.
— Não. Você vai comigo agora. O francês, seu amor, chama você.
— Celestino, me respeita!
Celestino Gouveia sacou do revólver da cintura. Saraminda engoliu todo o ar da sala, jamais pensou em ser morta por Celestino.
— Não faz isso, Celestino, baixa essa arma.
Lá fora, Leão voltou a rosnar.
— Saraminda, manda esse cachorro parar.
— Pára, Leão!
O cachorro emudeceu.
— Vamos, Saraminda, caminha. Vou matar o francês na sua frente. Vamos, Saraminda.
Ela ficou parada, muda, com uma expressão de terror tão grande, e teve uma leve noção dos sentimentos que cresceram nos homens que ela seduzira. Seu estado era de perplexidade e pânico. Pensou em Kemper. Ele abalara sua vida.
— O francês está chamando você, Saraminda. Vamos para encontrar ele vivo e ajudar a morrer.
Empurrado pelo ódio e ciúme, Celestino achava que vingava Bonfim. Seus olhos faiscavam, sua mão era forte e não tremia no cabo do revólver. Colocou-a na frente e, sabendo do seu poder sobre os cachorros, disse-lhe:
— Manda todos embora.
Saraminda foi sendo empurrada e andou. Apareceu na varanda. Celestino, atrás, com o revólver na sua costa, junto, apontando, mão segura. Foi assim que ela começou a descer a escada e pôs os pés no caminho. Os cachorros se afastaram, menos Leão, sempre ao seu lado.
— Saraminda, manda esse cachorro embora, senão eu atiro nele.
— Leão, afasta…
Mas Leão não se afastou.
Celestino queria humilhá-la, levando-a para ver Kemper. Ao cachorro não podia dizer: “Se afaste, senão eu mato Saraminda.” Foi nesse dilema que ele foi se enrolando, perturbado com a presença de Leão, que, fora do seu costume, não rosnava nem latia. Saraminda era só pavor.
— Saraminda, afasta o cachorro. Eu vou matá-lo.
Rápido desviou a arma das costas dela e apontou para Leão. Foi coisa de um relâmpago. Leão pulou no braço com revólver e tudo, derrubou-o, avançou e começou a mordê-lo e a estraçalhá-lo.
— Leão — gritou Saraminda. — Leão…
Voraz, o cachorro jogava o corpo de Celestino para lá e para cá.
Os outros cachorros entraram no ataque. Saraminda gritou:
— Parem…
E todos pararam.
Celestino terminava seus dias antes de Kemper. Saraminda subiu correndo a escada e trancou-se no quarto, soluçando.
Criou-se um alvoroço. Os cães saíram, o terreiro ficou sujo com o sangue e os pedaços do corpo de Celestino. Gedina, a primeira a chegar, quando viu a cena, não teve caridade: “Um homem como esse, que fez tanta perversidade, só podia morrer assim, na boca de cachorro. É castigo de Deus.”
Todo o garimpo desceu. Cleto, quando viu a cena, mordeu os lábios, fechou a cara de raiva e foi ao encontro de Saraminda:
— Você viu a desgraça dessa sua mania de cachorro?
— Não, Cleto. Foi ele o culpado. Veio aqui para me estuprar e deu nisso.
— Estuprar você?
— Sim, Cleto. Invadiu meu quarto, eu resisti, ele me ameaçou e me obrigou a sair com ele. Ia me levar para o mato e me forçar… aproveitando a agonia do francês.
— Celestino Gouveia?
— Sim, Cleto Bonfim. O próprio, bandido e traidor de você. Quando ele descia, fui salva pelo Leão.
— Canalha!
Ao descer a escada de volta, Cleto Bonfim gritou para todos:
— Morreu como devia, canalha, traidor!
27
Os inimigos chegaram
No velho casarão das sombras, as lembranças não paravam. Clément e Cleto conversavam na eternidade.
— O garimpo já estava diferente, compadre Bonfim. Eu sentia no ar que meu destino estava acabando. Não era o ouro. O ouro continuava saindo. Você sabe que o ouro tem dono, ele vive na terra e é viciado em sangue e cachaça. Eu nunca lhe dei sangue, mas todo dia, de manhã cedo, eu mandava derramar nos meus barrancos dez litros de cachaça — lembrou Clément.
“Não me fale mais de ouro”, disse Bonfim com irritação. “Eu vi tanto ouro que agora comecei a enjoar dele.”
— Não vejo motivo, Bonfim, tudo que conversamos veio dele. Como o xerém — respondeu Clément. E continuou: — A mãe do ouro se embriagava e os homens podiam tirá-lo, e ele sempre aparecia. Mas o veneno da política entrou nos homens. As pessoas não me olhavam mais como me olhavam sempre. Havia desconfiança e fui ficando com medo. Foi um grande erro a visita que o Governador Charvein da Guiana fez ao garimpo. Ele falou que aquele território era da França e nomeou Trajano seu representante. Escolheu um brasileiro, achando que assim dava segurança a estes, mas foi um desastre — Clément divagava. — Os brasileiros o consideraram traidor.
“E ele era”, disse Cleto.
— Nós, franceses, na verdade, fomos para ali para retirar ouro.
“Ora”, disse Cleto, “compadre Clément, fui eu que fui lá, para acalmar os ânimos e lhe pedir para fazer o que você fez.”
— Eu sempre botei na frente da minha loja a bandeira da França, o nome dela era Francede Calsoène. Mas não era por política. Eu nada tinha a ver com isso. Era um gesto pessoal, de quem desejava que os produtos da França, que eu importava, fossem mais vendidos. Eleutério era meu amigo. Foi meu companheiro de farra em Caiena. Mas naquele dia ele estava diferente. Veio à frente daqueles homens e me falou ríspido: “Clément, baixa a bandeira da França! Aqui é Brasil!”
Clément parou de falar. Ficou olhando vazio para a parede; depois de um tempo largo, prosseguiu:
— Eu ponderei que não estava querendo ser dono de terra, mas ele foi duro: “Baixa, ou nós vamos baixar.” Foi aí que eu mandei lhe chamar, compadre Bonfim. E você chegou e viu a coisa como estava difícil, me aconselhou: “Compadre Clément, se Eleutério e os brasileiros estão achando que essa bandeira é mastro de governo, baixa, compadre, e vamos trabalhar no que interessa, que é o nosso trabalho e o nosso ouro.”
— Eu baixei, recolhi a bandeira, mas fiquei chateado e, a partir daquele dia, comecei a arrecadar ouro entre os franceses para comprar armas. Mas depois vi que eu não era gente de Gendarmerie. Fiquei com o ouro e não armei ninguém. Cleto, nesse tempo eu já estava me juntando com Lucy. Era madura, mas bonita, séria.”
— Cabral chegou com seu bando e fez aquele alvoroço. Veio a notícia do Cunani de que prendeu Trajano com mulher e filhos, amarrou-o pelas mãos e levou-o para a Vila do Amapá. Eu soube que Trajano passou chorando, e Madame Coudreau, que vivia fazendo desenho dos rios, esposa do cientista, assistiu à saída.
— “Eleutério me denunciou a Cabral.” Ele disse que eu era o chefe da causa francesa. Tudo pela infeliz bandeira que eu coloquei na frente da loja. Em qualquer lugar, qualquer comerciante coloca a bandeira do seu país na frente da loja, é coisa normal. Mas lá, não. Era terra contestada, briga de governos. Então resolvi mandar todo o ouro que eu tinha para Caiena. Comprei oito barris de Zaqueta, aquele créoleque importava cachaça que eu conheci na Guiana como arrancador de dente. Eu tinha uns dez tonéis. Comecei a encher os garrafões e depois a forrar os barris com folhas secas de guarumã e araruta brava, cana-forte, e embalava tudo para não quebrar. Antes, enrolava o garrafão em lençol de morim branco; depois, num saco de pano grosso, porque, se quebrasse, o ouro não saía. E fechava os tonéis que iam em carros-de-boi, depois no batelão, descendo o rio Calçoene, atravessando as corredeiras até a Vila do Firmino. Dali, de navio até Caiena, para o depósito da Société Equatoriale. Não mandei todos de uma vez. Iam de dois e três, acompanhados dos meus homens. Mas não tinha perigo. Roubar ouro ali era perda de tempo: não tinha onde esconder nem a quem vender. Só serviria se algum doido roubasse para misturar de novo com a terra. Nós controlávamos todo o comércio. Eu, você, Pedro Nolasco e Teodoro Leal, que tinha casa no garimpo e na Vila do Firmino. Genibaldo Pereira, de Belém do Pará, vendeu quinhentos quilos de ouro para lá nos três anos que negociou nos garimpos do Calçoene, onde morreu de febre.
— A vida era tranqüila, nosso negócio era bom. Mas ficou com gosto ruim depois da briga e da conversa de que vinha guerra.
“Compadre Clément, foi no meio dessa luta que eu vivi o momento mais difícil de minha vida. O francês fugiu e Saraminda, de caso pensado, veio para cima de mim dizendo que eu o tinha matado. Eu jurei, eu, Cleto Bonfim, tive de implorar a Saraminda para não me acusar de ter morto o homem. Gritou, chorou e chamou os cachorros, que latiam em cima de mim, e eu, de revólver na mão, esse Leão da Rodésia me olhando e eu olhando para ele. Compadre Clément, você sabe quem degolou a negra Maruanda?”
— Foi você, Cleto. Como me pergunta uma coisa dessa?
“Não, Clément, não fui eu, eu não fiz aquilo, eu gostava da saramaca, que até foi mulher minha.”
— E quem a matou?
“É mistério para mim. Saraminda, do meu conhecer, fazia tudo, mas não fazia coisa de morte.”
— Compadre Cleto, não quero saber mistério acontecido em casa de ninguém, mas… onde andava Celestino podia sair qualquer crime de sangue.
“Mas, compadre, aquela mulher me chamou e disse: ‘Cleto, se o francês fugiu, manda então buscar o francês. Eu sabia que ele ia fugir, mas não fugiu. Depois, sumiu. Se sumiu, você deve saber. Mande atrás, meus cachorros vão junto, deixo só o Tupã, Leão e Fogo-Ferro.’ Mas Saraminda gostava de fazer desgraça. Não sei se ela queria o francês ou me machucar e submeter.”
— Cleto, — disse Clément — isso é coisa de não se saber, porque é de homem quando fica besta por mulher. Eu fiquei por uma sirigaita francesa que foi expulsa de um navio. Vivia com o comandante e furou o couro. Eu fiquei doido por ela. Era mulher de cama e sabia tresvariar um homem. Foi coisa que durou dois meses. Mas até hoje eu sinto o cheiro daquela mulher. De noite, encosto a cabeça na mão, dou um cochilo e lá vem o cheiro dessa francesa. Coisa de quem se embeiçou.
“Compadre, não fale em mulher quando pronunciar o nome de Saraminda. Foi minha desgraça, mas foi meu campo verde. Eu mandei Celestino atrás do francês e disse para ele: ‘Traz o homem, mas traz vivo.’ E Celestino o trouxe, só que estava podre. Homem de confiança, até então, era Celestino. Quando o jacá desceu na frente da prisão de que saíra, fedia mais do que gambá. E eu, besta, o queria salvo. Mas não se salvou.”
— Como não se salvou, Cleto?
“Dela. Ninguém se salvou dela.”
28
A dama de espada
— De onde você é?
— Sou de Belém do Pará, vivo lá, tenho trabalho de prestígio, mas nasci em Ananindeua — respondeu Artônia.
— Onde você aprendeu essas artes?
— É dom, mistério de Deus.
Cleto Bonfim não simpatizou com ela, a feiticeira que mandou buscar a peso de ouro para tratar Saraminda, que não emprenhava, e que, depois do acontecido com Celestino Gouveia, tomou-se de amores novos por Bonfim e pedia, coisa que nunca tinha feito: “Quero ter um filho seu, manda buscar remédio, que eu só penso em encher minha barriga com você.” Foi história que nunca entrou direito na cabeça de Cleto e só apareceu depois que ele desconfiou de sua ligação com o francês. Daí a necessidade de chamar Artônia. Rodrigo, um garimpeiro que veio do Pará, informara-lhe de Artônia, célebre por seus trabalhos de fazer coisas impossíveis, e Cleto dizia, escondendo o verdadeiro motivo, que precisava de uma benzedeira para espantar feitiços da casa.
Artônia tinha um rosto comprido, cara de cavalo, de um branco-amarelado, mostra de quem não dormia, e, cercando a linha das faces, uns cabelos vastos, pretos, encaracolados, crespos, que encobriam as orelhas e um pedaço da testa, parecendo juba de leão, com duas sobrancelhas longas, escuras. Os olhos baços, voltados sempre para o chão. Andava acompanhada de uma mulata forte, de grandes nádegas, que atendia pelo nome de Querida, que assistia, mas não participava de adivinhações e trabalhos.
Artônia era a mais afamada vidente feiticeira daquelas bandas, terras que têm muitos ramos de pajelança indígena. Cleto mandou buscá-la, aceitando suas condições de passar uma lua, receber um quilo de ouro e ter um tapiri próprio, cercado de tábuas sobrepostas, com ripas nas juntas, para que não entrassem nem a luz nem o olhar de espiadores, porque só assim sabia trabalhar. Pediu também que tivesse liberdade de atender outros fregueses. As despesas e ajustes da viagem, de vinda e ida, bem como os gastos do dia-a-dia, comida e bebida, ficavam por conta do contratante.
*
“‘Cleto, me beija, Cleto. Estou pura, comecei a ficar donzela de novo, eu sinto, você vê, quero ter filho’, ela me dizia. E eu, Clément, acreditei, também comecei a pensar em ter um filho com ela, que não emprenhava. Será que ela estava prenha e queria me enganar? Como já lhe disse, ela nunca emprenhou, não por minha causa, porque eu botei barriga em muitas mulheres, mas nunca me responsabilizei por filho. Saraminda me disse que passara a ter outra paixão muito grande por mim. A prima dela, a Lorette, vigarista e grande puta, ficou com os dois quilos de ouro da avó, mas trouxe e entregou-lhe o certificado de depósito dos oito quilos de ouro que eu paguei, porque ninguém podia receber, senão ela, o documento era em nome dela e estava com sua avó Balbina, que morreu.”
“Saraminda me fez chorar. Ela me chamou, trancou-se comigo no quarto e me mostrou o certificado. ‘Bonfim, este papel é tudo que eu ganhei na minha vida. É o ouro que me comprou para você. Um pedaço de papel amarelo e desbotado. Por ele vim para cá e comecei esta vida de Semana da Paixão.’”
“Eu me lembro, Clément, acreditei que Saraminda era mulher que queria ser só minha. Ela estava arrependida. Eu finalmente tinha entrado na sua alma.”
“Quando o cachorro comeu Celestino, eu me revoltei. Vi que Saraminda era minha desgraça.”
“‘Cleto’, ela chorava, gritava de dor e pedia: ‘Me mata, mas não me manda embora, Cleto. Eu não posso viver mais sem você. Não tem mais francês, não tem mais ninguém. Estou virgem de novo e menstruei, mas quero emprenhar.’ Eu já estava doido com essa novidade de emprenhar. Por que surgiu essa vontade?”
Lucy, vestida de madras, começou a cantarolar uma música de touloulous[16].
“Saraminda abriu seu baú, tirou o certificado de depósito dos meus oito quilos de ouro e disse: ‘É seu, Bonfim, vim com você agora por vontade e sem ouro…’”
“Mas eu já estava me libertando da paixão por ela, com desconfiança desse desejo de ter filho.”
“‘O ouro é seu…’”
“‘Não me serve para nada, Bonfim. Eu quero ser sua.’”
“Saraminda mostrou o corpo, as lágrimas caindo sobre os bicos amarelos dos seios molhados, brilhando, então baixei os olhos e vi a sua natureza. Perdi todas as forças e mais uma vez cedi à tentação. Comecei a beijá-la. Ela acariciou minha cabeça e pela primeira vez eu lhe disse: ‘Me beija, Saraminda, Saraminda, me beija…’”
Clément ficou excitado. Levantou-se, quis retirar-se.
— Pára, Cleto. Pára, começo a me desesperar pela lembrança da cachoeira.
“Do que você está falando, Clément?”
— Lucy, chama um pintor, manda pintar esta janela aqui, esta aqui da varanda, de preto: a moldura e as rótulas. Quero uma janela preta, aberta para sempre. Um dia ela virá.
“Ela quem, Clément?” perguntou Cleto, entrando na conversa.
— Nada, ninguém.
Cleto voltou a sua história, retomou as lembranças.
“Nesse mesmo dia, Artônia me pediu para ir a sua vivenda, desejava iniciar os trabalhos. Entrei meio desconfiado, porque nunca tinha tratado com esse tipo de mulher de desvendar mistérios. Nunca quis saber o futuro nem fui dado a rezas.”
“Artônia me olhou e perguntou:”
“‘Qual é o trabalho, Seu Bonfim?’”
“‘Saraminda quer ter um filho.’”
“‘Então vamos começar o trabalho. O senhor quer saber tudo que as cartas vão dizer?’”
“‘Pode falar.’”
“‘Olhe, Seu Bonfim, eu vejo, mas só digo se o freguês quiser. As cartas revelam coisas que muita gente não quer saber.’”
“‘Pode falar, não tenho medo.’”
“Eu não gostava da cara dela, bruxa feiticeira. Tirou um baralho já gasto do bolso da saia. Colocou um copo de água sobre a mesa, botou nele folha de pinhão-roxo. Fechou os olhos e abriu o baralho. Puxou uma carta, pegou-a com as duas mãos e levou-a até os olhos abertos: ‘O baralho sabe onde estão todas as verdades. Seu Bonfim, sua desgraça está aqui’, e atirou na mesa uma dama de espada.”
“Olhei a carta. Era Saraminda.”
“‘Seu Bonfim, o senhor nasceu em Cametá, tem o dom do ouro, mas recebeu na vida um diabo fêmea.’ E prosseguiu:”
“‘Vejo uma navalha de ouro. Ela vai salvá-lo. Tem coisa mais longe do que o senhor pensa.’”
“Tremi. Como ela podia saber que eu estava pensando na navalha? E esse mistério escondido? Ela, também, era um diabo fêmea.”
“‘O que devo fazer?’ perguntei.”
“‘Continue no plano da navalha. Só ela poderá cortar os cordões que estão no seu pescoço.’”
“‘Dona Artônia, não tire mais nenhuma carta. Não quero mais serviço nenhum. Prepare sua mala para viajar.’”
29
A noite das decisões
Foi nessa noite, invadida por um silêncio triste, que a idéia da navalha de Artônia cresceu na sua cabeça. A chuva despencava. Depois, tudo parou. Bonfim não dormia. Na escuridão do quarto, ele sentia Saraminda deitada. Ela ressonava num suspiro quase de brisa noturna. Seu cheiro de açucena se expandia na escuridão. A cabeça era um corisco. Estalava e dava riscos de tremer. Pensava na vida, no vazio em que a transformara, sem nada, sem filhos, sem família, sem mulher. O ouro o destruíra. Passou a vida atrás dele e continuava a procurá-lo. Saraminda era a felicidade que conhecera, mas era também a infelicidade. “Eu me fiz e me desfiz.” Foi então que pensou em ser livre, depois do acontecido com Carlindo, o mágico. Aquele caso foi o despenhadeiro. O primeiro passo qual seria? “Quem me enrolou nessas cordas? Eu. Então eu mesmo vou cortar essas cordas e cipós. Bonfim vai ser Bonfim, o que nasceu e cresceu Bonfim.”
Ele sempre tivera coragem de decidir. A solução passava por ali. Tomou o candeeiro, que ficava embaixo da rede com a caixa de fósforos, junto ao revólver. Levantou-se. Torceu a ruela do pavio, acendeu a luz e logo espevitou o morrão para que ficasse fogo baixo, clarão fosco, sem esparramar pelos lados. Ele queria ver a sombra da escuridão. E levantou-o bem alto, sobre a cama de Saraminda, para alumiar bem seu corpo. Com o candeeiro percorreu-o dos pés à cabeça. Parou no pescoço, jogado para um lado, esticado. Ela virou-se, como se sentisse a luminosidade. Ele pôs a mão no facho de luz, encobrindo o clarão. Esperou e alumiou de novo. A luz lhe expunha agora uma parte da nuca. O pescoço era a estrada por onde iria sair do labirinto. Veio a idéia já construída aos pedaços, cacos que pensava juntar. Uma idéia que ninguém além dele próprio poderia ter ou executar. Ele não admitia que alguém pudesse tocar em Saraminda. Só ele poderia feri-la. A idéia o aterrorizava, mas tinha de libertar-se. Seu desejo não era matá-la, mas com a morte dela encontrar o Bonfim que desaparecera. E, também, nesse dia, esse sangue bendito derramaria em todos os riachos e o Deus do ouro abriria seus mistérios e seria tanto que mil garrafões seriam pouco para guardá-lo.
Só que não poderia consumar a desgraça com uma navalha de barbeiro, dessas usadas no garimpo para serviços de costume. “Vou a Caiena para mandar fazer uma navalha de ouro, de pedras ricas, desenhos bonitos.” E imaginou uma jóia de navalha, em que o ouro jamais pensou em transformar-se. Brilhante, cheia de labirintos, límpida, incapaz de se turvar. Será como o sol.
Essa sedução tinha muitas vezes passado pelo seu pensamento. Sempre a espantava. O ouro não podia exigir-lhe esse sangue tão puro, esse orvalho vermelho que caía nas suas manhãs de amor. Foi crescendo dentro dele esse monstro que era um mistério, sobretudo depois que desconfiou dos olhares de Saraminda para ele e do seu ventre, coisas de alucinação crescente. Não se firmavam, vacilavam, mudavam de lugar, assim como se escondessem um segredo. Esses olhos verdes, que se debruçavam no seu rosto e ali cruzavam os braços, esperavam tardes e noites, da cor do mato, do mar, das folhas, dos musgos, das cachoeiras do Grand Dégrad.
Tinha que ser um segredo, que ninguém podia desconfiar, que ela jamais podia pensar, que ele nunca imaginou. Essa navalha será uma jóia de não existir, feita de ouro e de vento, de sonho e de nada, para ninguém ver, nem tocar, nem suspeitar.
Mas com ela vou me matar, matando o que mais amei. Todos os homens matam aquilo que amam, já ouvi dizer. Eu sou covarde porque vou matar quem não me ama. Vou matar o meu amor, que não morre.
Ouviu o cantar dos pássaros acordando o dia. A noite passara sem que ele notasse, conversando consigo mesmo, Bonfim e Bonfim.
Amanheceu.
30
A decisão na viagem
O Evangelina, velho vapor inglês que fazia a linha de Calçoene a Caiena, e dali no rumo das Antilhas, passava em muitos portos. Vindo da Europa, desatracava agora do cais do Firmino. Deu os apitos de saída e todos ficaram no tombadilho com sinais de despedida. Havia muitos passageiros, a maioria para Caiena, muitos dos quais pessoas envolvidas nos negócios de venda de mercadorias para as lojas que se estendiam por todos os caminhos na demanda dos garimpos, não só do Lourenço, mas de todos os rios e riachos da região onde se encontrara ouro. Outros, doentes, iam em busca de tratamento na Guiana. Bonfim, logo que o navio se movimentou, subiu para o camarote. Em sua companhia ia Ricardo, rapaz novo, que estudara em Belém do Pará e que, com um curso de enfermagem, viera ao garimpo para ganhar dinheiro. Vinculara-se a Cleto Bonfim e logo abandonara a profissão para ocupar um lugar bem próximo a ele, ajudando-o nos negócios, fazendo companhia e fiscalizando a escrituração. Era um homem típico do Marajó, feições largas, estatura baixa, cabelos lisos, de cor avermelhada. Ricardo ficou entre os passageiros de segunda classe, na parte baixa do Evangelina, onde viajavam, na rígida hierarquia da região, os subordinados. Bonfim não tratava com ele seus assuntos pessoais, embora tivessem longas conversações sobre pessoas, negócios e a vida em geral.
Entrou no camarote. A cama estreita estava arrumada. Em cima de uma diminuta cômoda, uma bandeja com um jarro de bacia redonda de ágata, embaixo de um espaldar muito simples de ferro trabalhado, com um espelho quadrado. No outro canto, uma porta abaulada nas extremidades, também de ferro, pintada de branco. Dava para o banheiro, onde um pequeno vaso sanitário branco, Williams, com a abonação de prestígio Manchester-England, ocupava a metade do espaço. Em cima, a caixa de descarga, que funcionava com uma pequena corda, tendo na ponta um puxador de madeira. Na linha do quarto, para ajustar as medidas da largura do banheiro, um pequeno depósito para malas e roupas. Tudo muito apertado, num milagre de aproveitamento, pintado com tinta naval. Como entrada de luz, uma escotilha, que dava para o estreito corredor que circundava o segundo andar do modesto navio. À frente, a casa de comando.
Deitou-se. Tirou o dólmã, ficou de calção e continuou o monólogo que não lhe saía da cabeça. Parou de pensar um pouco para lamentar que tivesse de viajar num navio inglês, sem entender nada do que se falava, embora houvesse pessoas conhecidas com quem poderia conversar em créole.
“Bonfim, você sabe o que está fazendo?” falou.
“Sei. Eu sei que já tomei a decisão”, respondeu o outro.
“Então, Bonfim, continue no seu martírio”, disse o primeiro.
“Não é nada de martírio, eu vou voltar a ser você, que fugiu de mim.”
Mar aberto, a navegação para Caiena enfrentava as ondas do cabo Orange.
31
A procissão do morto
Saí do sono da morte sem saber. Olhei em torno e vi apenas uma rolinha sangue-de-boi que arrulhava perto da parede de treliça. Eu estava no chão, sem ninguém por perto, porta escancarada, como deixada em correria, nenhum vigia, nada, parecendo que todos tinham fugido. Restava um silêncio imenso que entrava nos meus ouvidos. Levantei, bati nos joelhos para ver se sentia algo. Esfreguei as mãos para aquecê-las, saí e ninguém me deteve. Nada no terreiro. Nem sombra dos cachorros, nem dos porcos nem das galinhas. Lembrei-me de quando foi armada minha fuga, a voz de Maruanda: “Pela madrugada, Severino vem buscar o senhor.” Entendi que estivesse surdo para sempre. Nenhum som penetrava em meus ouvidos. Nem o balançar do vento e o canto dos passarinhos.
Fui acordado do medo por um murmúrio de coisa longe, um barulho que se perdia indefinido na distância, como se fosse de vozes assustadas; pouco a pouco, tive a impressão de que os sons se aproximavam e logo pensei que vinham em grupo em busca de mim, com paus, espingardas, pedras. Mas era só receio. Não apareceu nada. O sussurro permaneceu distante e só eu o ouvia. Era a cachorrada comendo Celestino. Não era um zumbido nem um sino na cabeça, era som mesmo, coisa que estava acontecendo bem longe. Murmúrio de povo espantado.
Eu não sabia fugir nem desejava. Para onde eu poderia fugir? Eu estava livre, mas estava preso dentro de mim. Depois da morte, saí andando sem saber como e, abestalhado, fui entrando na mata, contornando os caminhos sem rumo, e vi que era a direção da corrutela do Lourenço. Desvendei o alto do Jacu, vi uma procissão. Os homens caminhavam silenciosos. Na taboca, numa rede, parecia um defunto. Ninguém falava nem chorava. Fiquei no alto olhando a procissão que se estreitava e alongava para passar nas barreiras do caminho fechado. Desciam para o cemitério velho, abandonado, na passagem do atoleiro e charco do Cruz-Credo. Foi largado porque alagava e submergia nas cheias grandes quando as águas desciam, refugavam os altos e invadiam a floresta, nos baixios, estagnadas, juntando mosquitos e febres. Ali apareceram assombrações. “Por que vão enterrar no Cemitério Velho, se ele está esquecido?” me indaguei, quando vi a procissão descer e sumir. Depois, juntei as coisas e tive certeza de que era o enterro de Celestino Gouveia. Ninguém teve coragem de enterrá-lo no Limão ou no Lourenço. Bonfim, por ele, queria que os restos do corpo ficassem ali para comida dos cachorros e dos urubus. Mas Bonfim não tinha como decidir. Ficou calado e trancado em casa uma semana, ele e Saraminda. Mas não era luto, e ninguém sabe nem nunca soube o que conversaram nesse tempo. Gedina, que os via, disse que não falaram nada, trocando silêncios durante os dias e as noites. Foi Gedina quem se lembrou de procurar por mim. Saber como eu ressuscitara. Chegou e viu tudo vazio: “Kemper, Kemper”, ela gritou. Dentro da prisão estava escondida uma preguiça preta, que entrara pela porta aberta e ali ficara.
— Bicho feio, que eu não gosto de ver se arrastar.
Com a presença de Gedina, o animal se encolheu, retorceu o corpo e ficou imóvel. Gedina sentiu um calafrio. “O francês tinha o diabo no corpo. Tornou-se alma do outro mundo. Desapareceu. Do jeito que ele estava não podia andar.” E saiu rezando e se benzendo. Chegou na cozinha e falou para Zeduco: “O francês desapareceu, sumiu, não há nem sinal.” Tudo acontecera tão veloz e mágico que não parecia verdade, era sonho, com jeito de coisa encantada e espírito mau. A morte de Celestino ninguém podia pensar que fosse antes da minha. “Esse francês chegou e trouxe muita desgraça. Que vá para os infernos fazer companhia para o Capeta, que é seu pai.”
Faminto e fora do mundo, eu caminhava sem destino. Não conhecia a lei da sobrevivência no mato nem tinha coragem de aparecer. Foi aí que, ao entrar num tapiri abandonado, encontrei Domingos, o vendedor de anéis.
— Quem é você?
— Kemper. Perdi o tempo e a memória do que sou e de quando aqui cheguei.
— Eu sou Domingos. Estou fugindo, fui assassinado. Jamais voltarei. Vi o Calçoene nascer e prosperar. Começou a morrer. Está com febre. Cachorro já come gente.
— Não sei quem eu sou, só o nome. Saí da sepultura. Leve-me daqui.
Eu estava mais branco do que o leite do algodão-bravo. Meus olhos não fechavam. Eu era uma visagem.
Domingos levou-me. Só me recordo de ter embarcado no navio, no posto do Cunani, com um papel no qual estava escrito o nome da Société Equatoriale, que eu devia procurar em Caiena.
Ele me deu um anel, desses que ele vendia, e me recomendou:
— Não o tire do dedo. Ele vai levá-lo em paz.
Olhei para o anel. Era pequeno, tinha um cheiro de catinga, mas era encantado.
32
Um velho ourives
— Em quantos dias o senhor prepara a jóia que estou lhe encomendando?
— Um mês. O senhor sabe que tem que ser trabalho de artista. Tenho ainda que adquirir as pedras e os brilhantes. Aqui não é fácil. Tenho que me socorrer dos colegas de profissão. A esmeralda eu tenho, de um velho anel que comprei há muitos anos e não encontrei freguês. As outras, não.
— Não se atrase por falta de dinheiro. Pago quanto for necessário. Quero é o trabalho feito e que seja peça de beleza.
— O tempo será o mesmo, Seu Bonfim, porque jóia desse porte só eu mesmo tenho ciência para tocar. Aqui em Caiena não há ourives melhor que eu e já trabalho no ofício há mais de quarenta anos.
Cleto olhou Jean-Baptiste. Um homem de uns setenta anos, os cabelos brancos, os óculos de aros redondos, retorcidos levemente pelos anos, caídos na ponta do nariz.
— O problema é a lâmina, Seu Bonfim. Fio de ouro, por mais que se trabalhe, não é como o de aço. A não ser que o senhor queira a navalha somente para enfeite e não para o serviço que ela faz da barba. O ouro não agüenta o fio. Só o aço.
— Eu quero com o fio melhor que tiver. É para trabalho, para não irritar, cortar de uma vez só.
— Mas o senhor já sabe que o ouro não se compara com o aço.
— O senhor não pode usar uma lâmina de aço, das navalhas alemãs, que são as melhores, e dar um banho de ouro?
— Isso pode, mas deixando o fio livre, trabalho de quem sabe fazer.
— Pois faça assim, quero navalha que corte, a melhor na sua missão.
— Não é para presente, Seu Cleto?
— Não, é para uso sagrado.
— Pois daqui a um mês pode mandar buscar. O preço só lhe digo depois de saber o que vou gastar de material e mais o meu serviço.
— Pois assim é, pago quanto for.
*
A navalha me ficou na cabeça desde que saí da joalheria e não me abandonou mais a imaginação, até recebê-la. Não podia ficar um mês em Caiena. Fui à sede da Société Equatorialee lá soube do acontecido com o Lefèvre, do desgosto com a Laurence. O gerente era novo e me perguntou onde andava o rapaz Jacques Kemper, que tinha ido para levar o carro e nunca mais dera notícia.
— Não sei — respondi seco. — Ele chegou lá há quatro anos. É muito tempo para lembrar.
— Deve ter entrado na aventura do ouro. Já recebi quatro cartas do nosso presidente Foucaud e da família dele perguntando pelo seu paradeiro.
— Só o vi no dia em que recebi o carro.
— Estou mandando um emissário procurá-lo e já dei várias queixas à polícia francesa.
— Quero ver a minha conta. Trouxe aqui o Ricardo, de minha confiança, que trabalha comigo, e ele vai ficar vendo os livros.
— Seu Bonfim, o senhor sabe que nós temos a maior consideração pelo senhor. Recebi ordens da matriz de atendê-lo sempre em tudo. Disponha e use a nossa empresa, que é sua.
— Obrigado — respondi direto, com a história do Kemper na cabeça.
— Senhor Bonfim — quando ia me retirando, ouvi a solicitação —, se o senhor tiver alguma notícia do Kemper, avise-me, por favor.
Nada respondi. Meu ódio pelo francês não passava. Ele era bonito e louro, eu era feio e caboclo. Saraminda o escolheu porque eu, com todo o meu ouro, não encantava seus olhos. Francês nojento. Nada paga o ódio de um homem que foi traído. Meus anos já pesavam na falsidade de Saraminda. Ela não me dizia nada. Mas eu tinha meu sentimento, que ela não percebia.
Foi numa sexta-feira que me procuraram para dizer que um portador de Caiena estava à minha procura.
— Quem é?
— É um homem que traz uma encomenda que o senhor contratou.
— Que venha!
Meu coração batia, prevendo que era a navalha.
— Aqui está.
Recebi um pacote de papel de embrulho enrolando uma caixa. Entrei no aposento do barracão onde estavam as sarrapilhas e comecei a abri-lo. Quando vi a navalha, não quis pegá-la. Deixei-a repousando no estojo. Queimava. Tinha um brilho que não esmorecia. A esmeralda no meio parecia tanto uma visão verde de gente, que eu me lembrei do olho de Saraminda. Circundando, brilhantes e outras pedras que eu desconhecia. Uns desenhos de sereia e de curvas de mulher enfeitavam um lado e outro. Tomei coragem. Peguei a jóia, abri a lâmina. Era dourada, mas o fio continuava de aço, fino, cortante, frio. Jean fizera um trabalho de artista. Recoloquei a navalha no estojo forrado de veludo vermelho.
Embrulhei tudo, coloquei debaixo do braço e saí. O sol se escondia. Perguntei a Taíta:
— Quando vai ser a lua cheia?
Ela me respondeu:
— Na quarta-feira.
Senti que o meu caminho estava sem touceiras. A navalha era como se fosse um garimpo novo. Saraminda tinha de virar pó.
33
As luzes do Havre
Eu não chorei. Desaprendi de chorar. Nunca mais soube ter lágrimas. Elas caíram todas no abismo de meu destino nas Guianas. A minha realidade era ambígua. Eu estava ali e no meu delírio das neblinas da mataria do Calçoene. Observava o horizonte que se escondia nos últimos suspiros do dia e o que eu via era a imensa névoa dos morrotes da Vila de Saint-Laurent. As luzes baças de querosene, começaram a aparecer, como se fosse se iniciar outro dia no garimpo. Era um brilho pequeno e fácil, ocasional e efêmero, que passava falhado no horizonte.
No tombadilho do Belle de Martinique, eu repousava, os olhos revirados para o passado. Minha memória estava perdida. Não me recordava de quando saí do porto do Havre a caminho de Caiena. Quando? O tempo estava morto. Era impossível calcular, eu só tinha na cabeça gosto de eternidade e ressurreição.
Eu via agora outras luzes. Eram amarelas, faziam clarear as coisas. Fingiam apagar e acender com se fossem estrelas de papel. Aumentavam cada vez mais, e o navio se aproximava e com ele a noite, tornando as luzes mais brilhantes. Eu estava no sarcófago da minha esperança.
O navio avançava lento, e contei um por um os vinte e oito dias da travessia. Desde o momento em que larguei a rampa da Vila do Firmino e olhei pela última vez as barrancas em que um dia saltei para o desconhecido. Tantos anos, e podiam ser poucos. Minha alma era de fuga, de libertação de um inferno, onde era possível a felicidade e a sensação de plenitude, o desejo de viver de novo e renascer. Esparsas e difusas passavam lembranças de Cancale, de árvores, florestas, bichos, Paris, ouro e mulheres. Minha cabeça era um vazio deserto onde as areias às vezes tornavam-se miragens.
Acordei do sono que não dormia e perdi a noção e a memória do presente, a consciência de onde estava. Levantei-me como um fantasma, sem recompor nada. É uma sensação de uma loucura lúcida. Vem pedaços de lembranças. Maruanda me diz: “Pela madrugada, Severino vem buscá-lo”, mais nada. A prisão acabara e eu ressuscitara. Levantei-me. Tudo estava deserto. Parecia que todos tinham fugido de repente, não podendo levar nada, nem a sombra. A porta estava escancarada, o vento passando livre. Saí. Eu levitava. Mas as coisas não tinham nexo. Eram retalhos infinitamente quebrados que não se juntavam. Pensei que tivesse perdido os ouvidos. Um silêncio me invadia a cabeça sem perturbação. Tudo era ausência de sons. Saí caminhando entre as árvores. Não conhecia a floresta, não sabia como sobreviver a ela. Andei e andei como pude. Subia e descia os morros, via o horizonte aparecer e esconder-se. Atrás dos morros estavam os caminhos. Fui me aproximando deles. Foi uma sensação brutal. Romperam-se os muros do silêncio e passei a ouvir. Minhas orelhas abanavam como ventarolas, trazendo um murmúrio de longe. Não era movimento de vento ou de folhas, nem do ar ou dos bichos. Era um som triste, como um encantamento a me chamar. Subi o morro, vi ao longe uma procissão.
Depois na noite, quando acordado, Maruanda apareceu e confirmou o que eu já sabia: “Seu Kemper, era o enterro de Celestino Gouveia”. “Morreu?” “Foi comido pelos cachorros. Cleto proibiu que fosse enterrado no Limão.” “Celestino Gouveia?” “Não, não me lembro de nada. Minha cabeça está limpa de pensamentos.”
As luzes do Havre se aproximavam. Eram um clarão de pequenas tochas.Agora eram mais brilhantes, já se podia ver as fileiras que se alongavam acompanhando a terra firme. “Jacques Kemper, ali é a França.” Minha cabeça estava cheia de terrenos vazios. Apitos breves e próximos e outros distantes e fortes eram ouvidos. Onde estaria Anne, minha irmã? Todas as recordações da infância chegavam primeiro. Por que abandonei minha mãe? Ela estava ali, presente no meu lembrar, bela, de faces rosadas, cabelos longos, e me pedia para ser tolerante. Tolerante a quê? Eu não sabia. As luzes aumentavam. Meus olhos começaram a ficar sombrios e essas luzes não eram como as de Caiena, fracas, jogadas no chão frio das calçadas através das janelas e se espraiando nos calçamentos irregulares, castigados pelas chuvas.
A travessia do oceano foi agitada, uma tempestade não deixou ninguém dormir e o navio cavalgava o mar como nos atoleiros das margens do rio Carnot. Pela manhã fui ao corredor de bombordo. Veio outra lembrança desembrulhada da minha cabeça. Lembrei que já tinha feito outra viagem, e ali, naquele lugar, estava uma moça que se chamava Geneviève, com a mãe cujo nome não lembro, e que me apresentara. Lembrei-me do seu pescoço quando ela descia da escada no porto da Martinica.
Sem tumulto nem uma volta total, a memória dava sinais de que voltava, aos pedaços, difusa.
Continuei andando na mata, picado pelas caçadeiras, mutucas, bisogós e lambe-olhos. Não sabia onde pousar nem o que fazer. Vi uma tapera abandonada. Ali repousei. Quando abri os olhos, junto estava um homem baixo, forte, com uma maleta na mão e tão assustado quanto eu. “Quem é você?” “Kemper.” “Eu sou Domingos e parece que nós dois estamos saindo do Lourenço.” “Eu estou perdido, de nada me lembro.”
*
Domingos Eleutério de Barros era aventureiro, como todos os que andavam naqueles mares de árvores e rios e ouro. Comerciante em Belém do Pará, viera ao Calçoene em procura de Ricardino Merenda, financiado por ele e que fazia seis meses não aparecia, devendo-lhe meio quilo de ouro. Domingos tinha ourivesaria no Pará, com quatro oficiais, dois ajudantes e um caixeiro. Andava pelos garimpos comprando ouro e vendendo jóias. Depois voltava à sua casa e se punha a transformar o ouro em anéis, cordões, braceletes, tiaras, brincos e pingentes, e saía com eles, comercializando nos garimpos e nas vilas. Sempre ia em tropa de mascates, seus amigos, que levavam tecido, roupas, calçados, remédios e perfumes para a tarefa do escambo, como de costume naquelas bandas. Vendia remédio Óleo Elétrico, ungüento recomendado contra dores, pílulas Kemp, para estupor, e antibiliosos, como Ostrog e pílulas de nitrato.
Não sei porque surgiu Domingos. Sua história aparecia sem sentido nem rumo.
Foi ao Lourenço para tentar receber uma velha conta. Como de praxe, financiava os aviamentos, ferramentas e o custeio de um barranco, recebendo em troca um percentual do ouro apurado. Há três anos era sócio e emprestava dinheiro a Ricardino, paraense como ele, velho conhecido e envolvido nas artes de comércio do garimpo. Fazia seis meses ele não voltava para acertar as contas, e o costume era fazer o acerto de dois em dois meses. Disseram-lhe que ele saíra do Lourenço para o Cunani, onde Domingos não o encontrou. Disseram-lhe que havia voltado ao Lourenço, onde então estava à sua procura.
Domingos chegou num dia de sábado. O pessoal do garimpo largava o serviço às quatro horas e começava a folga, que se estendia até segunda-feira. Era o tempo de lavar as roupas para a troca da semana. O sábado era o dia das festas, em que os pés descalços recebiam as botinas de couro cru ou borracha compradas em Belém ou sapatos de lona, vindos da França, calçados rasos, pé-de-anjo, e, de calção lavado, com o desodorante de alvaiade debaixo dos braços, eles iam para as corrutelas gastar seus gramas de ouro nos cabarés, onde as mulheres mais pobres que os bichos eram apanhadas para juntar-se nos matos, porque os terreiros de baile eram barracões sem tapumes.
*
O navio mantinha a marcha. As caldeiras rodavam as hélices cansadas de travessias. As luzes se aproximavam, cada vez mais nítidas e mais fortes. Ninguém me esperaria no cais e ninguém sequer esperava que eu estivesse vivo. Foi Domingos quem me levou para a Vila do Firmino e que, tomado de compaixão, me embarcou para Caiena. Lá, o gerente da Société Equatoriale, quando me viu, gritou: “Você está morto, a empresa já pagou sua vida para a família.” “Não sei se estou morto. Queria voltar à França.” Maruanda me dissera: “Kemper, afaste-se da Guiana, do Contestado, vá embora, não posso atravessar o oceano porque as almas dos garimpos não se livram do ouro.”
*
Domingos conhecia bem essa vida. Reconhecido por uns, desconhecido para muitos, perguntou por Ricardino: “Passou seu barranco adiante tem uns quatro meses e se largou para o Cunani”. “No Cunani ele não está, de lá venho eu.” “Pois aqui não está mais. Qual é o negócio?” “É que somos sócios e, como ele não voltou mais, vim atrás para saber das coisas.” “Pois é, ele até era homem forte nessa região. Bamburrou umas três vezes e parece que foi embora por desavença com Cleto Bonfim e foi para as bandas do rio Carnot”, disse uma das muitas pessoas que abordou. “E onde está Bonfim?” “Teve, há três dias, um inferno danado. Morreu Celestino Gouveia, seu homem de confiança, estraçalhado pelos cachorros de sua mulher. Está trancado em casa e ninguém sabe dele.”
Domingos lembrou-se da última vez em que estivera com Cleto Bonfim, havia dois anos, e fora convidado para jantar na sua residência, uma casa créole, parecendo um palácio no esconderijo do mato. Conheceu sua mulher, lembrou-se da cachorrada que estava do lado de fora. Era uma mulher bonita, créolebem-feita, e de uma expressão desconfiada. Recordava-se bem da conversa quando ela o viu com sua mala preta, dessas que todo mundo sabe que é de vendedor de jóia, e foi logo assuntando:
— O senhor vende jóias?
— Vendo e compro ouro, Dona Saraminda, a vida inteira.
— Pois é, vi pela sua mala. Mulher é bicho curioso.
— Mas não vim aqui para esse fim, minha senhora, vim pelo prazer do convite de Bonfim.
— Mas eu gostaria de ver suas jóias.
— Não posso negar o seu desejo, se assim permitir meu amigo Bonfim.
— Mostra, Domingos. O ouro é feio, mas fica bonito quando feito anel, brinco, pulseira, relógio e cordão pelos ourives. E as mulheres gostam muito disso — respondeu.
Pegou o estojo, dividido em retângulos, forrado de veludo vermelho e cheio dessas bugigangas que se vende em toda parte. Nada que pudesse encher os olhos da mulher do maior dono de garimpo do Calçoene. Mas o dever era mostrar, meio encabulado. Ela pegou uma medalha e perguntou:
— Que santa é essa?
— Nossa Senhora de Nazaré, padroeira do Pará.
— De Belém do Pará, não é…
— Sim, senhora…
— O senhor sabe que o nome Caiena era de um príncipe índio que casou com a princesa Belém? Essa é história de minha avó…
— Não sabia, não, Dona Saraminda.
— Já pedi a Cleto que me levasse a Belém para assistir a uma festa dessa santa…
— O Círio de Belém, minha senhora. É uma beleza de procissão, tem meio-dia de gente passando nos seus olhos e um mundão de devotos puxando o andor dentro de uma corda. Coisa bonita de muita fé.
— Pois Cleto me prometeu um dia aparecer por lá…
— Vai ter muito tempo pela frente, Saraminda — cortou Bonfim.
— Pois é, Seu Domingos, em Caiena as maiores juntações de povo são em 14 de julho, na Place des Palmistes, e em setembro, na festa que é de majurie dos bailes. É um jardim cheio de flores, de lanternas chinesas e lampiões junto do Carrefour de Jean-Paté-Banane, com as corridas de saco, de jumento e perna-de-pau. Tem outra alegria que é o Carnaval e tem outra triste que é La Nuit de la Toussaint, com velas acesas, flores e aquele turbilhão de gente levando lembranças para seus mortos, no cemitério. É triste, mas é como se fosse o baile das almas. Lá o cemitério é bem conhecido, com a capela de um velho sino na entrada. O túmulo primeiro é bonito, com uma coluna de mármore partida, do Governador Louis Massin, capitão-de-mar-e-guerra que morreu na peste de 1851, e a sepultura de Sœur Norbert, que fazia caridade em Caiena.
*
A memória recente era melhor, começou a iluminar-se. As coisas estavam mais claras e iam juntando-se. Kemper via os olhos de Domingos, sua mão calejada e dura apertando-lhe o ombro e dizendo: “Vá, não volte mais, eu também não voltarei.”
Retomava as reminiscências. Todos os que conhecera na chegada estavam desaparecidos. Lefèvre estava morto, ele próprio se matara. Laurence fugiu, seguiu um novo amor, libertou-se “dos calores da Guiana”.
O medo de ser perseguido e encontrado. Sua cabeça estava com os pensamentos embaciados e as idéias atropelavam-se. Havia vácuos imensos. Principalmente sobre seu tempo no garimpo. Lembrava-se da chegada e tinha algumas janelas na memória. Não compreendia com clareza quem haviam sido Saraminda e Cleto Bonfim, nem se recordava das febres e do ouro.
Com grande esforço, abriu as portas da memória para lembrar o passeio que teve em Caiena com Laurence. Tudo era difuso. Deu-lhe desejo de rever os tamanduás do escudo da Guiana. Foi ao forte de Saint-Michel de Cépéroue estava em sua cabeça o relato de Laurence de que o sino do forte tocou oito dias e oito noites, em 1888, no grande incêndio que destruiu a parte comercial da cidade velha. “Olhe o Palácio do Governo e o Hôtel de Ville, no princípio eram no velho convento dos jesuítas”, ela repetia, pois gostava, para encher o tempo, de passear com a ajuda das referências da cidade.
Kemper se lembrava de Laurence e de sua visita à cidade. Reviu as palmeiras gigantes no fim da antiga Esplanada, agora das Palmeiras, transplantadas de Guisambourg, trazidas sabe Deus como, gigantes, para aquele local. “Veja esta palmeira, não há no mundo nada igual a ela, tem dois troncos! Palmeira de duas cabeças, só na Guiana…” Era a voz de Laurence, nas artes de seduzi-lo. Todas essas imagens eram referências que afloravam, como bóias escapadas do fundo do mar para a superfície. Tudo de que se lembrava começava com Laurence, vestido de saia rodada, ela dançando e, depois, levando-o para o quarto, despindo-o, resoluta, beijando-lhe os ombros, o peito, as pernas, as costas, todo o corpo, com sua boca perfumada, a saliva saciando-lhe o prazer. Ela estava excitada pelo vestido que devia ser de outra e foi dela.
Caiena era um mistério que se revelava, cidade modesta com a beleza das pequenas coisas. Seu povo era alegre. Nas ruas explodia a diversidade das raças, com predominância do belo sangue negro, cor que se revela fúlgida aos vento leste e o desconhecido das florestas do setentrião.
Os longos dias de espera. A quarentena antecipada. A internação no Hospício Civil e Militar, o Hospital Geral, que desde o século XVIII ajudava os enfermos. Os olhos piedosos de admiração das Irmãs de Saint-Paul de Chartrespara com sua cor amarela de uma palidez intensa, resto dos males da ressurreição na prisão do garimpo.
Numa volta confusa, Kemper, aos poucos, recobrava a memória, embaciada, escura, numa visão sombreada pelas manchas que ainda cobriam os olhos.
Embarcou. A travessia, o navio jogando, a tempestade, a falta de vontade de comer e, pior de tudo, a perda do gosto de voltar a ver a terra de onde partira.
Caiena era passada.
As luzes do Havre o ajudaram a abrir os olhos.
34
Noite de Saraminda
Caiena estava encharcada de chuva. Os pingos grossos juntavam-se em feixes e não deixavam espaço onde não corresse uma língua de água, que levava os sujos das ruas, as folhas, os ciscos pelas estreitas passagens abertas nas sarjetas laterais, fundas, de drenagem, em demanda dos canais construídos para receber as inundações dos grandes temporais.
Clément Tamba vagava solto, ambulante das sombras dentro daquela casa de madeira velha que os anos tinham carcomido. O jardim e os canteiros que davam para os quartos estavam todos com as árvores cheias de fungos, os troncos de manchas esbranquiçadas, as folhas retorcidas e esburacadas. Os jasmineiros sustentavam-se sem pernas, caídos em touceiras, com o peso dos anos, arbustos sobre o chão, escondendo o capim-de-burro que crescia lento e apodrecido. Resistia o cheiro bom das estrelas-lírios que invadia a casa, penetrava nos aposentos de dormir com um sabor doce e amargo.
— Lucy, minha querida Lucy, quando pensei que você me acompanharia nessa vida que não se acaba, nesses anos cheios de mofo?
— Clément, não estou feliz nem triste, cumpro o destino de ficar ao seu lado. Coisas em que não mandamos. Não me incomoda sua presença nem me conforta. Dividimos o mesmo badalar das horas.
— Lucy, você tem ouvido o som dos sinos da catedral?
— Sim, quando tocam nas aleluias e nos dias que anunciam o funeral de algum cristão.
— Onde está o Frei João, que tentou me converter um dia, pedindo que me batizasse e pedisse perdão dos meus pecados?
— Eu não sei. Lembro do Frei José, que me confessou pela primeira vez: “Como cumpre os deveres com os mandamentos?” “Já conheceu o pecado da carne?” “Não.” “Já negou ajuda aos pobres?” “Não.” “Reze três padres-nossos e duas ave marias, prometa arrepender-se dos seus pecados e nunca mais se curvar às tentações do Demônio.” Eu nunca tinha sido tentada pelo Demônio. Deus para mim era aquele pai que me protegia e que não era de me jogar no fundo dos infernos. O Deus do Padre José me amedrontou…
Cleto Bonfim disse:
“Eu nunca me confessei na vida. Sempre fui arredio às coisas da Igreja. Sempre acreditei mais no Diabo do que em Deus. O Diabo me causava medo, mas Deus nunca me ameaçou. As pajelanças para mim eram coisas do Demônio, como o piaille.”
Lucy, com a voz baixa, fez revelações:
— Tamba, eu sofri quando tive que confessar ao padre a primeira vez que me entreguei a um homem. Era um companheiro de colégio, eu tinha dezessete anos, ele, dezoito. Levou-me a passear atrás do prédio, depois fomos ao bosque. Eu o namorava há seis meses e ele já conhecia todos os caminhos do meu corpo, percorrido por suas mãos meninas. Até que um dia acariciou meus seios e disse que me queria. Eu recusei. Sempre fui recatada. Não sei como aconteceu. Ele desprotegeu-me. Eu passivamente aceitei. Frei José me perguntou como ele reagiu quando me viu. Eu disse que não me lembrava. “Ele estava frenético?” “Não sei, Frei José.” “Como não sabe?” “Eu não sei se ele estava.” “Diga a verdade. O Demônio estava dentro de você?” Eram tantas perguntas e eu só me lembro de que saí com um sentimento de culpa danado, que não se esgotou no confessionário. “Foi a primeira vez?” “Sim.” “ O que você sentiu?” Frei José me perguntava demais. Meu namorado não foi rude. Ele me conduziu com ternura. Ele me acariciou, me encheu de cortes e ficamos amantes, assim, durante dois anos. Depois, não sei por que não continuamos, mas eu achava que estava em pecado e pedi a Frei José que me aconselhasse, ele me respondeu: “Abandone o pecado.” Eu abandonei. Hoje, não me arrependo de ter me entregado a Juvêncio.
— Lucy, não me fale dos homens que teve. Não quero saber do seu passado. Quando nos juntamos, você era para mim uma vida nova, um amor antigo que eu não tinha desejo de saber. Uma casa bela que eu não queria desvendar quem construiu — resmungou Tamba.
— Meu passado é hoje, está aqui, nesse varandão sem brisa, vazio, ao seu lado, sem filhos, sem memória, mastigando o tempo.
— Um dos momentos mais felizes que tive em Caiena foi quando chegou o landauquadrado que encomendei em Paris. Era um carro de classe, fabricado pela Million Gui et Cie, desenho de Alfred Gabriel Count, célebre projetista de carruagens. O exterior era preto com frisos prateados. As maçanetas da porta tinham meu monograma. O interior, de seda-cetim. Tinha botões no teto com rosetas douradas. Seus degraus podiam ser recolhidos, eram de marroquim e couro grená, e possuía duas lanternas, uma de cada lado. Custou-me vinte mil e oitocentas libras, coisa pequena para meu ouro de Calçoene. Tinha quatro rodas, molejos bons. Era puxado por uma parelha de cavalos brancos que adquiri, mandava oleá-los e os atrelava luzidios para que percorressem as ruas de Caiena. Carro bonito, com cristais nas janelas. Todos iam para as portas de suas casas para ver-me dentro, com amigos e namoradas. Depois o povo achou que era vaidade minha, que eu era ridículo e queria parecer o que não era. Tudo inveja. Nunca ninguém tinha visto um carro vindo da França em Caiena. Eu mandei fazer uma farda com botões dourados para o cocheiro, que usava boné e se preparava para andar na carruagem. Com tempo, as pessoas foram perdendo a curiosidade e todo mundo se acostumou e não foi mais novidade. Apodreceu no meu quintal. Está lá, em pedaços, desmanchado, ferido pela velhice. Eu sobrevivi mais do que ele e do que os cavalos. Era muito melhor do que aquele que Cleto mandou levar para Lourenço. Vergonha de Cleto, que recebeu um cabriolé para Saraminda.
— Não me pronuncie o nome dessa mulher, vagabunda que nem rezar sabia — disse Lucy.
— Não, Lucy, ela era um fantasma no centro do garimpo. Até hoje atormenta nossas cabeças.
— Pare com isso, Clément Tamba.
A chuva prolongava-se. Uma vez ou outra ouvia-se o som de um trovão, e raios cortavam a escuridão.
“Compadre Clément Tamba…” reapareceu a sombra de Cleto Bonfim, “estou necessitando falar. Livrar-me de outras lembranças minhas.”
Estava ali, em pé, com seu velho e conhecido chapéu, sua barbicha e os braços compridos, estirados, cheios de veias, as mãos alongadas.
“Clément,” disse Cleto, “os franceses foram bandidos. Eles próprios ficaram com vergonha do que tinham feito. Invadiram a Vila do Amapá e mataram todos, tocaram fogo nas casas e não deixaram nada. Pilharam, saquearam, e a terra era nossa.”
— Mas não fomos nós — Clément respondeu —, foram os soldados mandados por Charvein. Nós, créoles, que estávamos no Contestado, franceses, não tínhamos nada contra os brasileiros. Foi o governador da Guiana. E depois, Bonfim, ele mostrou sua generosidade perversa mandando dar às viúvas das vítimas do Mapádois garrafões de vinho Saint-Julien. Cabral não era o Brasil.
“Respeita, Clément, Cabral era o Brasil, Cabral é herói, ele deixou tudo, arriscou a vida. Charvein é odiado na Guiana, Cabral é herói nas terras brasileiras.”
— Você está ouvindo a gritaria, os cavalos galopando, a poeira levantando, os garimpeiros gritando vivas, e Cabral, de Winchester na mão, com seus capitães, invadindo o Lourenço e gritando: ‘Liberdade…’ Eu estava escondido, lá na montanha, olhando de cima.
“Sim, Clément, eu estava em casa e ali fiquei, mergulhado na minha desgraça. Depois que conversei com a feiticeira e que ela foi degolada, o garimpo começou a secar. Eu vi a mãe do garimpo trancar as portas do ouro. As bateias passaram a vir com lama e tijuco. Muitas águas viraram sangue. Muitos garimpeiros fugiram atemorizados. Os barracões foram caindo, os caminhos enchendo de mato, todo mundo indo embora. A maldição caiu sobre o Lourenço, mas não caiu sobre os outros garimpos. Tudo começou quando aquele francês chegou. Saraminda se apaixonou por ele e por aquele vestido eivado de mandinga.”
— Eu não assisti a esse tempo da morte do garimpo. Eu fugi. Você está misturando as coisas, Bonfim — disse Clément.
“Para mim tudo está misturado.”
— Meu último dia foi aquele, Cabral desfilando nas estradas do Lourenço, o povo todo apoiando, e ele a gritar: ‘Onde está o homem da Casa da França?’ E cercaram minha casa, revistaram tudo e retiraram a bandeira que estava escondida no meu baú. Bonfim, quando vi aquele rolo de fumaça, minha alma começou a se partir e a casa foi queimando e, dentro dela, minhas coisas, minhas saudades, meu passado. Eu ouvia quando o fogo estalava minha mesa. Era um som cortante que feria meus ouvidos, o choro da minha mesa — Clément soluçava fundo, como tendo de novo a visão do fogo. — Quase me atirei ladeira abaixo. Mas eu não podia fazer nada, não tinha forças. Meu caminho foi o exílio de Caiena. Eu não sabia que tinha crescido dentro de mim tanto amor pelo Lourenço, tanto querer pelo Calçoene. Mas, pensando bem, foi Cabral que me fez sair daquele inferno. Aquela gente morrendo, os pés inchados, as febres, a miséria, e nós roubando comida dos desgraçados, com os quilos fraudados, as contas adulteradas. Bonfim, nós pagamos pelo mal que fizemos àquela gente. Minha fuga não foi difícil. Eu conhecia as pessoas, os caminhos, e tive comigo muitos créolesfugitivos. Cabral não fez questão de nos perseguir. Ele queria só expulsar.
“Mas, Clément, eu morri duas vezes. Quando viram o garimpo com febre, os brasileiros fugiram com medo da morte do ouro. As bateias eram de sangue, meus barracões ficaram vazios. Nem as mercadorias eu pude levar de volta. Fiquei só, com Ricardo, que disseram que era amante de Saraminda. Saí do barracão de baixo e fiquei no que eu possuía perto da mina. Nesse dia, tomei a decisão. Era o dia. Larguei tudo e caminhei para casa, enchi os bolsos de pepitas e tomei o caminho. Estava cansado, minha cabeça era só coisa ruim. Comecei a chorar. Andava soluçando. Ia matar tudo que eu mais amava.”
“Um galo cantou, seis horas da tarde. Quando passei no pântano, aqueles sapos no coaxar, vi entre os mururus, em cima da vitória-régia, a cabeça da feiticeira Artônia, que pedia: ‘Quero meu corpo, para minha cabeça jogada aqui’, e repetia: ‘Quero meu corpo.’ Olhei para a montanha e lá no alto estava o corpo dela sem cabeça, de braços abertos. Mulher que só me trouxe anúncios maus. Depois olhei para o mato e lá, num tronco seco de imbaúba, estava a cabeça da Artônia, duas cabeças. Fechei os olhos. Ela estava em toda parte. Coisa feia. E ria. Foi ela quem botou feitiçaria no garimpo.”
— Cleto, você viu isso e não correu?
“Vi, vi, mas já estava com a decisão na cabeça.”
— Que decisão, Bonfim?
“Aquela que eu sabia que ia tomar um dia.”
— Você pensou no canto do galo.
“Pensei em sair das correntes do ouro, minha verdade.”
— Que verdade?
“O canto três vezes.”
— Por quê?
“Foi o canto do galo que me confirmou aquilo que eu já sabia. A traição.”
— Compadre Cleto, você degolou Saraminda? Diga-me. Até hoje ninguém sabe.
Bonfim desapareceu. Lucy veio correndo. Tamba suava e suspirava. Estava branco, à beira de desmaiar.
— Lucy, manda encostar o landauna minha porta, com quatro cavalos brancos. Manda vir a galope. Manda abrir a janela preta para Saraminda entrar.
— Clément… — soluçouLucy. Repetiu: — Clément?
Ele não respondeu.
— Raimunda, traz a vela que está na gaveta da cômoda.
Acende, traz.
Ele não respondeu de novo.
O quarto foi invadido pelo forte cheiro de cravo amarelo de defunto. Sangrava um silêncio que se diluía no espaço como fumaça.
Foi quebrado por um rinchar que vinha da rua a todo trote e parava na porta. Passos firmes saltaram e foram ouvidos no corredor. Os cavalos silenciaram. Na porta olandauesperava
— MonsieurClément Tamba, je suis prêt[17]. Aonde vamos? — disse o cocheiro.
— À Maison de France, em Saint Laurent.
35
O sudário
“Cleto Bonfim, o que você fez de sua vida? Como encontrou tantos espinhos para pisar? Cleto, onde está meu corpo? Minha cabeça está rolando de chão em chão. Por quê, Bonfim, você me degolou? Eu vim chamada para perder minha cabeça?” “Não, Artônia, não me acuse.” O vozerio dos fantasmas era um zumbido de abelhas em seus ouvidos. O garimpo de Roraima, onde começara a vida, os índios pintados gritando, as flechas cruzadas e tiros. Tantos mortos. Correndo do ouro e procurando o ouro. Os caminhos do Calçoene, as cachoeiras galopando nas pedras, o rio se escondendo aqui e acolá para passar nos estreitos, e nós lutando com as canoas vazias. Eram sempre as mesmas agonias, o repisar das lembranças. O garimpo novo, o florescer das casas, a chegada dos franceses, as trilhas, os navios, tudo cheirando a dinheiro, e suas vontades sendo levadas a todos os cantos. As noites de Caiena, a vinda das mulheres, o encontro com Saraminda: “Oh, desgraça minha, me acompanha na decisão final. Para que viver? Ouro, para que serve? Não comi ouro, não bebi ouro. Cavei ouro e ele me atormentou os dias e as noites. Saraminda, deita aqui, quero pegar você, quero minha mão descendo nas suas coxas, babar seus seios, beijar você e depois sentir o seu corpo de ariranha roçar no meu, enrolar-se, e eu suspirar em você, suar e sentir o gosto quente de um só corpo, um no outro, dois em um, no silêncio de nossos gemidos e gosma de nossos gostos. Saraminda, eu quero você e você me traiu, amou o francês sujo e entregou-se a ele. O garimpo está morrendo, secaram as bateias, os veios, o mato e até a montanha de Salomoganha está seca. Os pés de cumaru que florescem onde tem ouro, com suas favas perfumadas, agora fedem que nem catinga de bode. Restaram seus seios amarelos e seus olhos verdes.”
“Onde está minha navalha, jóia feita para essa noite? Só essa peça rara, de ouro e brilhantes, poderá te levar para o sono dos mortos.”
Cleto Bonfim pegou a caixa, desembrulhou-a, e retirou a navalha. As pedras reluziam e o ouro brilhava.
O quarto estava inundado pela penumbra. Abriram-se as janelas, entrou a luz opaca da lua, escondida pelas nuvens. Cleto olhou a cama. Saraminda dormia; os calores do Calçoene eram muitos. Ela estava como queria, na simplicidade mágica da sua nudez. O corpo era um resplendor, dava para ver os peitos dourados e as partes despojadas. A respiração era um suspiro brando. A cabeça, caída para o lado, descansava do abandono da alma para dormir e sonhar. Cleto Bonfim trouxe o candeeiro para mais perto. A mão tremia, os lábios tiritavam de medo, seus olhos se fechavam e abriam nervosos. Cleto Bonfim avançava. Saraminda dormia. Ele construíra aquele instante, uma prisão sem grades.
Abriu a navalha e segurou-a com força, firme, a mão direita apoiada pela esquerda, todos os músculos dos braços contraídos. Tremiam ao olhar Saraminda. Quis prolongar esse instante de sua vida. Queria tê-la pela última vez. Saraminda não se movia. Seus olhos, mesmo fechados, misteriosamente brilhavam de medo e terror. Bonfim recuou, foi à janela, respirou um pouco mais, não conteve os soluços, e voltou com a navalha na mão. Quis vê-la iluminada. Estava como na primeira noite. A lâmina da navalha emitia raios de luz verde que faiscavam nos estranhos olhos fechados de Saraminda.
Aproximou-se e ajoelhou-se. Fechou os olhos.
Os cachorros corriam em desespero e uivavam.
As mãos de Cleto Bonfim desmaiaram e os olhos começaram a chover.
Havia no ar um cheiro de alfazema e enxofre.
Os cachorros, de repente, silenciaram. Só se ouvia o silêncio da matilha que se embrenhava na floresta.
— Saraminda! Saraminda!
36
O garimpo morto
O céu encheu-se de um rebanho de carneiros de lãs negras, nuvens vindas de longe, lançando poeira no infinito. Tudo escureceu. O dia virou noite. O garimpo estava morto e exalava fumaça com o cheiro da mugueta.
Os pássaros e os bichos, desorientados, corriam e voavam em círculos desordenados. Um vento frio soprou, acompanhado do espocar de tabocas queimadas.
— É a pororoca que zoa assim. Quando está chegando na costa, invade as matas e seu estrondo espanta os bichos, que, muito longe, de ouvidos no chão, escutam o troar trazido do mar e das entranhas da terra — afirmou Ricardo.
Cleto não aparecia. Todos indagavam por ele. Não se sabia o que acontecera na casa assombrada. A chuva irrompeu inverneira e não parou por três dias.
— São lágrimas de Cleto Bonfim — disse alguém.
Os trovões eram soluços, monótonos, profundos, tristes, longos.
As águas corriam acotoveladas para o lago dos rejeitos do garimpo. O povo abandonava os barracões e fugia. Os rios amarelos ficaram vermelhos.
Os cachorros latiam e uivavam em todas as direções. Pareciam milhares, e ninguém via nenhum.
— Que mistério existe no mormaço da tarde, que Cleto sumiu? — indagou Taíta com os olhos abertos, que havia três dias não fechavam e não choravam.
— O garimpo morreu de banzo — declarou Crescêncio, o mesmo que fugira na varação do Cunani com Jacques Kemper e depois voltou.
— Acabaram todos os ouros. Agora, ficar aqui é a fome, a febre, a loucura do calor dos meses de verão e o nada nenhum — acrescentou uma sombra.
Todos olharam para o céu e, no meio da chuva, viram uma fogueira. As nuvens ardiam como lenha em brasa.
Um vulto de chapéu largo, com uma maleta de jóias, cruzou com os garimpeiros que fugiam destroçados pelo caminho do Cruz-Credo. Era conhecido.
— Não é Domingos? — indagou Manira, a última mulher de bordel que ali permanecera.
— É. Mas foi assassinado — disse Taíta.
— Vim à procura do Cleto Bonfim, quero comprar ouro.
— Domingos, há três dias chove e ninguém sabe o que aconteceu com ele.
— Alguma degola?
— Ninguém sabe.
- E Saraminda? — insistiu Domingos.
— Também sumiu.
O garimpo está morto, macacaúba preta que queimou na capoeira velha.
37
Uma luz no cais do Havre
Kemper voltou ao camarote. Os apitos se sucediam no porto vindos de todos os lados. Um ranger de correntes e motores invadia seus ouvidos, cornetas de vozes gritavam: Bombordo, estibordo. E as luzes do Havre, cada vez mais próximas. Os passageiros carregavam a bagagem para o tombadilho e os corredores do Belle de Martinique, cansado de tantas travessias.
Kemper pegou sua mala de madeira, pintada de amarelo, com as cantoneiras pretas e os cercos da fechadura de ferro batido. Poucas roupas, todas compradas em Caiena. Nenhuma memória dos infortúnios, nenhum objeto que recordasse aqueles anos.
Kemper era a carcaça de si mesmo. Suas mãos, desbotadas e brancas, refletiam a palidez do rosto. Sua cabeça era um tabuleiro de xadrez com as peças tombadas, como de um jogador que não conhecesse nem as figuras nem as regras do jogo. Sua memória eram pedaços cortados que não se encaixavam. Era o último prisioneiro do bagne[18]invisível que voltava da Guiana, o corpo em postas sangrentas. Os fatos que lembrava se concentravam numa caixa misteriosa, que ele quebrava e dentro encontrava outra, tornava a quebrar e surgia mais outra, e nunca chegava ao fim.
Foi nessa angústia que percebeu um suor frio varrer-lhe o corpo, gelando a alma. Atordoado, como um fantasma lavado, vestiu uma camisa de algodão, comprada na RuePichevin, na Velha Caiena, e parou com ela nas mãos. Seus olhos se embaciaram, um terremoto na cabeça, que girava, derrubando tudo, sacudindo-lhe a memória e reconstruindo aqueles campos de ruínas que não se juntavam. O pensamento e as pernas tremiam, os olhos saltavam das órbitas, como se quisessem abandonar-lhe o rosto para ver tudo, só que voltados para dentro, torcidos. Era como se sentisse mais uma vez a malária na noite da fuga, o suor aos borbotões. Quando deu por si, o navio se aproximava. As luzes próximas, brilhantes, saíam em feixes. A algazarra aumentava. Eram ordens: baixar ferros, atracar, e os motores freavam, estrebuchavam, as hélices em rotação contrária, a ré, e as amarras jogadas em meio às águas. Kemper tremia, tomado de azeda comoção.
A memória se confundia para voltar pouco a pouco, apressada, com o fim da viagem. Seu passado clareava, reconstruía-se a teia da vida: a partida, o garimpo, Cleto, Celestino, Maruanda, Laurence, o vestido, a fuga, a febre, a morte, a ressurreição. Tudo voltava, como as chuvas de Caiena. Recordou a paixão que, como um vulcão em erupção, jogava lavas em todas as direções: “Quem tomou minha decisão de voltar? Saraminda, quero ficar eterno com você.” O corpo escuro, liso, cobra-d’água que se enrolava no vento quente dos vapores da floresta. As tempestades, o corpo dela imerso nas águas da cachoeira, nos banhos de cheiro, os cachorros em torno, o ouro em tudo.
Desfez-se o delírio.
— Desembarcar — foi a ordem que ouviu do marinheiro, batendo nas suas costas doloridas.
Jacques Kemper pegou a mala. Tremia, quase não podia segurá-la. Na cabeça, trazia a demência do amor perdido para sempre. Enfrentou, cambaleando, a fila da escada, os passos trôpegos a descer em meio aos outros passageiros e à gente estranha que os esperava.
Kemper esticou o olhar no rumo do espaço de solidão que boiava no porto do Havre, aberto para o mundo, de onde partira para aquele sonho. Pôs sua triste mala no chão. Ergueu o rosto e deparou-se com o Calçoene e a montanha Salomoganha. A multidão descia, crescendo em avalanche, como as águas dos rios encachoeirados que ele subiu e navegou, águas fortes, que chicoteavam as pedras, levantavam as chuvas, faziam tudo cinzento, mas, à luz do sol, reverberavam como um arco-íris.
Ninguém o esperava. Nenhum rosto. Só as águas, as pedras e o redemoinho da memória.
Um chamado de espanto encheu seus ouvidos, invadiu todo o espaço da estação do desembarque. Era uma voz longe e perto, com a força da araponga, sineiro da selva.
— Jacques Kemper, da Vila do Calçoene! Jacques Kemper…
Levou as mãos ao rosto. Tapou os ouvidos, não sabia mais os sentidos dos sons. Abriu os olhos. No meio do saguão, rompendo caminho, uma mulher. Parou em frente dele. O enigma da beleza nos olhos verdes, na misteriosa nudez dos seios de ouro:
— Saraminda.
Tábua de personagens
Alexandre | Dono do garimpo em Roraima |
Alfred Gabriel Count | Projetista de carruagens |
André | Padrasto de Jacques Kemper |
Annie | Irmã de Kemper |
Artônia | Feiticeira |
Astrolábio | Representante de Cleto Bonfim na Vila do Firmino, porto do rio Calçoene |
Augustin Ruppert | Pai de Clément Tamba, soldado francês |
Balbina | Créole, avó de Saraminda, dona de bordel |
Bizene | Companheiro de hospedaria de Kemper em Caiena |
Carlindo | Joalheiro |
Celestino Gouveia | Capataz de Cleto Bonfim |
Charlotte | Mãe de Kemper |
Charvein | Governador da Guiana em 1895 |
Clément Tamba | Guianense, francês nascido em Caiena que vai para os garimpos da bacia do rio Calçoene |
Cleto Bonfim | Chefe do garimpo que arrematou Saraminda |
Cortês | Conquistador espanhol |
Coudreau | Cientista que passou alguns anos no Contestado estudando o curso dos rios |
Crescêncio | Garimpeiro |
Danton | Revolucionário de 1789, nomeou o sobrinho Governador da Guiana |
Denara | Prima de Clément |
Descoup | Pai de Saraminda |
Domingos Eleutério de Barros | Mascate de jóias |
Doriques | Marido de Raída |
Edith Mourreau | Primeira mulher de René d’Orville que foi assassinada por ele |
Esode | Tocador de saxofone no enterro de Cleto Bonfim |
Ferote | Pastor alemão, cachorro de Saraminda |
Fiapo | Garimpeiro |
Firmino Amapá | Brasileiro que descobriu o ouro do Calçoene |
Foucaud | Funcionário da Société Française de l’Amérique Equatorialeem Paris |
Francelino | Mestre do barco Fé |
Frei João | Padre que tentou converter Clément |
Frei José | Padre para quem Lucy se confessou pela primeira vez |
Gabriel | Garimpeiro |
Gedina | Empregada de Saraminda |
Geneviève | Passageira do navio Gazelle |
Genibaldo Pereira | Negociante nos garimpos do Calçoene |
Gérard Perin | Rapaz de Caiena que participou do leilão de Saraminda |
Greba | Mãe de Gertrudes, tia de Clément Tamba |
Grover Cleveland | Presidente dos Estados Unidos |
Jacob Biarritz | Judeu, avô de Clément, arrematou sua avó, vinda da África como escrava |
Jacques Kemper | Apelidado Barba-de-Fogo, francês de Cancale, funcionário da Société Equatoriale |
Jansen | Holandês, pai de Balbina, bisavô de Saraminda |
Jean-Baptiste | Ourives |
Jean | Negro carregador do cais de Caiena |
Jean-Louis Lefèvre | Gerente da SociétéEquatoriale, suicidou-se por causa de sua mulher, Laurence |
Jean-Maria | Pianista do Tour d’Argent |
Jeannet Odin | Sobrinho de Danton enviado a governar Caiena |
Jean-Pierre | Vendedor de fumo e açúcar, negociante na área do Cépérou em Caiena |
João | Vigia da portaria do garimpo de Cleto |
Joaquino | Garimpeiro que desapareceu com Raída |
Jules Gros | Fundador da República do Cunani |
Julienne | Mãe de Saraminda |
Juvenal | Dono de casa de aviamento na Vila do Firmino |
Juvêncio | Primeiro namorado de Lucy |
Juventino | Garimpeiro do Pará |
Koron | Primo de Lorette |
Lariel | Hortaliço |
Laurence | Esposa de Jean-Louis Lefèvre |
Leão da Rodésia | Cachorro de Saraminda |
Ledério | Fugitivo do Suriname, empregado de Clément |
Li Yung | Chinês que descobriu uma pepita de dezessete quilos no rio Calçoene |
Linderfo | Amigo de Clément |
Lorette | Prima de Saraminda |
Louis | Pianista do bar Chez Martin |
Lucienne | Mulher leiloada no bordel de Marie Turiu |
Lucile | Tia de Kemper, com quem foi morar em Paris aos quatorze anos |
Lucy | Mulher de Clément na velhice |
Ludgero | Fiscal de grupo |
Madame Coudreau | Esposa do cientista Coudreau |
Marie, Mazi, Marthe | Irmãs de Clément |
Marie Turiu | Dona do bordel Tour d’Argent |
Maruanda | Empregada de Saraminda |
Nicomedes | Macaco de Saraminda |
Ovídio | Responsável pela horta de Saraminda |
Pedro Nolasco | Comprador de ouro |
Pizarro | Conquistador espanhol |
Possidônia Biarritz | Mãe de Clément, judia e preta |
Querida | Ajudante da feiticeira Artônia |
Raída | Cabocla maranhense que fugiu do garimpo |
Raimunda | Empregada de Clément |
Raimundo | Garimpeiro |
René d’Orville | Padrasto de Clément |
Ricardino Merenda | Garimpeiro |
Ricardo | Ajudante de Bonfim |
Ritinha | Lavadeira de Caiena que ensinou créoleao papagaio |
Robespierre | Revolucionario de 1789 |
Rodrigo | Garimpeiro que veio do Pará |
Roger | Marido de Lorette |
Ronjon | Notário que tinha terreno na Rue d’Estren |
Saraminda | Créole de Caiena, mulher de Cleto Bonfim |
Severino Boião | Garimpeiro |
Taíta | Cozinheira do garimpo |
Tatie | Prostituta do garimpo |
Teodoro Leal | Comprador de ouro |
Terêncio | Empregado de Bonfim |
Trajano Benítez | Representante da França e delegado do governador de Caiena no Contestado |
Veiga Cabral | Chefe da revolta do Amapá contra os franceses do Contestado |
Wandero | Preto saramaca companheiro de Balbina |
Wiabo | Mulher leiloada no bordel |
Xaxá | Papagaio de Saraminda |
Zacarias | Comprador de ouro que participou do leilão de Saraminda |
Zaqueta | Importador de cachaça |
Zeca | Galo |
Zeduco | Trabalhador de casa |
Zerido | Ajudante da loja |
[1]Termo com que se designa o ouro na Guiana Francesa.
[2]Tipos de preto guianenses.
[3]O rio onde, em 1854, foi descoberto ouro na Guiana Francesa.
[4]Língua e raça da Guiana Francesa.
[5]Rejeito da garimpagem.
[6]Como os franceses chamavam o Amapá, a área do Contestado.
[7]Franceses da metrópole.
[8]Ilha dos Cabritos, em frente a Caiena, que tinha o desembarcadouro de condenados e foi transformada em leprosário.
[9]Vamos embora; tudo bem; merda.
[10]Puta que pariu.
[11]Magia negra feita de encomenda.
[12]Máquina artesanal de garimpar, tipo lontana.
[13]Cozido de carnes com pasta de tucumã. Prato típico da Guiana.
[14]Ave de caça.
[15]Caititu.
[16]Foliões com as fantasias tradicionais do Carnaval de Caiena.
[17]Estou pronto
[18]No ultramar, estabelecimento penitenciário, para onde eram mandados os condenados a trabalhos forçados.