Faleceu há poucos dias uma grande escritora, Hélène Carrère d’Encausse, Secretário-Perpétuo da Academia Francesa (utilizo o título de sua função no masculino porque era assim que ela queria) desde a renúncia de Maurice Druon, em 1999. De origem georgiana — nascida em Paris, foi apátrida por muitos anos —, era especialista em Rússia e no universo eslavo. Foi uma amiga que recebeu a Academia Brasileira de Letras naquela Casa com a grande elegância que a caracterizava.
Madame Encausse era conservadora e simpatizava com Vladimir Putin. O começo da guerra da Ucrânia mudou sua posição. Curiosamente, um de seus livros mais importantes foi Le Malheur russe: essai sur le meurtre politique (A Tragédia Russa: ensaio sobre o assassinato político), em que sua descrição do papel do sangue na história da Rússia cai como uma luva sobre o novo “Czar de todos os povos”. Em 1988, data do livro, ele era comandante da KGB em Dresden, na Alemanha [ainda] Oriental.
Conheci Vladimir Putin pessoalmente. Eu o recebi como Presidente do Congresso Nacional em novembro de 2004. Escrevi então que “[embora] nas fotografias sempre apresente uma cara amarrada, é um jovem simpático, sabe rir, [é] lutador de judô e tem ares de saber zangar-se. É egresso dos quadros do Estado e tem tido mão forte contra os que querem a independência da Chechênia. Tem um gosto grande pelo futebol e sugeriu uma partida entre os parlamentares da Rússia e do Brasil. Achei boa a ideia — por delicadeza, é claro —, mas logo adverti que eu não figuraria na delegação, pois nem para árbitro tenho disposição.” Ele fora o último primeiro-ministro de Boris Iéltsin e estava no primeiro mandato como presidente, mas já era acusado de crimes de guerra, tendo ordenado a total destruição da capital chechena, Grozny.
Em sua análise do assassinato político na Rússia, Madame Encausse começa explicando ter encontrado “um laço entre a conquista ou a conservação do poder [na Rússia] e o uso do assassinato político, individual ou em massa, real ou simbólico”. Os horrores se sucedem séculos afora, com destaques curiosos como o fato de os dois mais conhecidos czares, Ivan, o Terrível, e Pedro, o Grande, terem matado com as próprias mãos seus filhos e herdeiros.
Depois de ter feito a farsa da renúncia e ser chamado pelo povo — cenas tão marcantes do filme de Eisenstein —, Ivan estava no final de seu reino de terror. Fizera uma purga na Igreja; matara amantes e esposas; matara os boiardos, a aristocracia feudal; com os oprichniks, um esquadrão de assassinos vestidos de preto aos quais às vezes ele mesmo se incorporava, destruíra cidades inteiras, começando por Novgorod, onde assistiu em praça pública, dias a fio, à tortura e execução de cada habitante; decimara os próprios oprichniks e depois os eliminara. Então, discutindo com o príncipe Ivan sobre o destino de uma cidade, Ivan IV abate-o com sua lança para javali.
Um século e meio depois, Pedro, que queria transformar a Rússia em um país do Ocidente, não aceita que seu filho Alexis — sua antítese, beato, arcaico, pouco inteligente — se refugie no exterior. Torturado, o príncipe confessa conspirar contra o pai e é aprisionado até a execução pelo próprio Pedro. Mas, enquanto Ivan IV se desesperou, encomendou orações pelos 3470 assassínios, muitos deles múltiplos (“teus servidores de Novgorod, ao todo 1505 pessoas”), e morreu demente pouco depois, Pedro, o Grande, viu no sangue derramado o símbolo do passado que afastava, pensando agir como rei e não como pai.
Escrito quando terminava o regime soviético, Madame Encausse fazia votos de que finalmente o desaparecimento, o “assassinato simbólico” de Lênin livrasse a Rússia dos assassinatos reais. Mas a prolongada tirania de Putin mostra que nada mudou.
Se o Legacy que levava o mercenário Yevgeniy Prigozhin foi explodido para punir a ousadia da dissidência ou como exemplo para evitar qualquer pensamento discordante, a amplitude dos crimes de Putin se estende desde os “de guerra” até os envenenamentos, radioativos ou exóticos, dos adversários. A divisão das forças armadas em relação à Ucrânia é abafada. O império do ditador sobre todas as Rússias é revigorado.
A tragédia russa, toda assinalada pela violência e pelo assassinato, está longe do fim. Qualquer que tenha sido a origem da explosão do avião de Prigozhin, a origem real ninguém retirará de Vladimir Putin.