Saudades Mortas

 

“Time present and time past
Are both perhaps present in time future
And time future contained in time past.”

T. S. Eliot

 

 

Papéis Amarelados

 

 

Revisitando a Casa da Infância, no Outono

Na máquina em que escrevo
o teclado
de santa alucinação.

Sozinha brilha e aparece
entre tipos e aranhas
a amarga madrugada
do recordar.

Na terra em que meus olhos descobriram o mundo
abre-se
a flor da memória.
Verdes campos
em que me fiz igual a eles.
Surgem
nuvens, um pântano, uma cacimba.
Depois o velho poço.
O poço que amarga o relembrar
onde enchi de água o balde ralado
pedras pretas, musgos do tempo
plantas penduradas que teimavam em crescer
nos encaixes das juntas de fungos negros.
Sapos boiando,
o lancear da corda trazendo o balde.
O poço não é o poço
é um espelho
meu rosto copiado
nas águas guardadas
no fundo de mim.

Aparecem o pé de urucu
com as cachopas espocadas
a mangueira onde dormiam as galinhas
e a horta onde as mãos de minha avó
esmagavam folhas de vinagreiras
e onde o cavalo preto, Graúna,
relinchava com a descarga
das cargas de palmito.
Este remoer
acorda solidões esquecidas
junto aos pés de figo, no limoeiro,
no pé de romã, de grumos que
traziam a felicidade dos bons anos.

Encontro uma moça de cabelos longos
ajoelhada.
É minha mãe rezando.
Meu pai a falar das coisas de Deus
meus irmãos com as pequenas mãos
entrelaçadas nas cantigas de roda
na pureza de que tudo seriaeterno
e nada tombaria.

Os anos se escondem nas saudades
que desaparecem
deixando apenas encardidos ossos.
Onde estão? Esmagados no silêncio.
Só tu, alma minha, tens a ressurreição
que surge sem sol
cresce sem água, abre flores,
dá frutos e ilumina
esse travo do ter existido
na sombra da memória.

O padroeiro no altar.
A seus pés a oração
de implorantes perdões
por todos os pecados
que depois soubemos não eram.

Nas colunas pobres do templo
cobrindo as pedras carcomidas
as tintas imitavam o mármore
esperança do fausto dos grandes santuários.
A Basílica de São Pedro
não tem a beleza da cor de terra
da capela-morta da igreja
do Senhor São Bento.

Acorda, saudade do possível.
Abram meus olhos
para ver estas sombras
da alma que corre em busca
de agarrar-se ao que passou, para fugir.
Casa da minha infância.

As janelas pintadas de azul
bancos toscos, mesas gastas
os gostos dos pratos do angu
de todos.

Meu avô, minha avó, meu pai,
minha mãe, meus irmãos,
o riso de festa
na algazarra daqueles dias
em torno dessa mesa de alegrias e mangas.
Aos meus olhos, boiava a felicidade eterna.

Lágrimas chegaram. Flores murchas.
Um corpo velado: José Adriano.
Foi o primeiro.
E começou o mistério do vazio.
Os anos foram se amontoando no corredor
até serem tantos que não se pode ver.
A varanda é um só longo espaço morto.
Limpa a mesa, sem cadeiras e olhos.

Tudo é um instante
que sobrevive com lágrimas secas.
Não está morto. Vive eterno.
Volto à casa
Posso vê-la aberta, janelas e portas escancaradas
o vento derrubando as mangas-caianas, a chuva caindo
as biqueiras correndo
dos telhados envelhecidos
a água santa no sortilégio do amor passado.
Volto ao batente da despedida.
Olho para trás.
O que viveu vive e
está morto
e foge dos meus olhos
e de minhas mãos.

As candeias de azeite
não iluminam mais
porque o escuro clareia.
A luz não existe mais.
Toda memória está cega
na saudade morta.

Eu mesmo não estou em mim,
liberto para sempre da felicidade.

 

 

O Quarto de Tijolos

Era diferente.
O vermelho do barro cozido,
lugar das preces.
Irregulares quadrados no chão,
cheios de sombras sugeridas e fugazes.
Um leão, uma cobra,
um velho, um pênis, uma coxa.
As formas se misturavam em mudanças de cores e linhas.
Sempre voltava para revê-las.
Fugiam dentro dos meus olhos.
Outros contornos nasciam
no mistério desse quarto.

Ao fundo, o santuário polido de preto,
com folhas de palhinhas de Reis,
porta de vidro em arcotosco,
restos de presépios.
Santana, Santo Antônio, Santo Irineu
— com as mãos separando no peito o hábito jesuíta.
Os santinhos coloridos de papel, desbotados,
tintas velhas, caras desfeitas.
O oco Menino Jesus cheio
com os umbigos
de todos nascidos na casa:
meu pai, meu tio, meusirmãos
e minha irmã. De Pinheiro chegou,
seca relíquia amassada de pele,
o meu,
e ali ficou com os outros para sempre.

Amas, as velhas comadres,
tiradeiras de rezas e ladainhas,
o latim das vilas velhas.

O vermelho dos tijolos gastos
permanece pálido.
Os cantos fundos, as rezas altas.
Meu avô lendo o visionário Isaías
e Deus
presidindo a mesa da família
nas noites das ladainhas,
entoadas no latim
das velhas.

Nestas visões,
tudo desaparece e volta.
Vem a escuridão,
e as chuvas daqueles ermos,
no esconderijo do barro.

— Conta, Debum, a história de Santa Maria.
“Ela era mulher do Alegre e o Diabo veio atravessá-la
na malhada do Jenipapo.
Quando ela viu que era o Capeta,
jogou-se na lagoa e de repente
nasceram capins e canaranas tão altas
que ele não pôde encontrá-la.
Chegou molhada, tremendo de frio, na igreja
e Monsenhor Conduru mandou fazer
uma imagem de cedro cheiroso para guardar seu corpo.”

— Conta, Debum, outras histórias.
“Era uma vez um menino chamado José,
ele está aqui,
dentro de ti.
Dorme.”

Noites e visões de fantasmas,
monstros, curacangas e fogo-preto.
Passos lentos e escondidos
da falecida tia Zica
andavam no quarto de tijolo,
assombrado e guardado
por mil cavalos de vento,
mil bestas de bem-te-vis,
apelos e terços,
rosários e hortelãs,
cheiros daquele cômodo
que até hoje destroça
com seus gemidos do tempo,
um escravo daquele vermelho barro,
cozido por sete fornos,
no fogo dos campos cheios
que encheram minha infância
e não queimarão jamais.

 

 

A Varanda

Nos esquadros da varanda
o corrimão escorria
na meia parede de taipa,
suja e gasta de abandono.
No parapeito das janelas,
nada além de um horizonte
nuvens cinzas.
Tudo desmoronara.
Ficou um quintal molhado.

Eram mangueiras e figos,
laranjeiras e limão.
Oitis perfumados, pés de jasmim e de estrela,
erva cidreira, murta e romã.

Chão aberto por sulcos escondidos
na malva braba,
caminhos das corredeiras
que das biqueiras caíam
serpenteando em desníveis
na fuga ligeira
das prisões que prendem as águas.

Olho o corrido da taipa
o ondulado do barro
descascado em manchas
a marca de minhas mãos
marcadas no brancocal.

Há figuras debruçadas:
avô, avó, Tomásia, Emília e
quantos
olhavam a chuva cair
desabando do telhado
nas calhas de zinco velho.

Os galhos balançavam
como pêndulos verdes
de relógios que dormiam.

O varandão das lembranças,
com o caixão negro-dia
do meu avô preparado.
Fraque, colete e botina
para uma festa de cinzas
onde se chega
e não volta.

Olhos fechados,
mãos cruzadas,
lábios cerrados.
E os cravos dos defuntos,
amarelos e sombrios
cores de sonho, choros
e gemidos gementes
para quem viaja
com as mãos sem poder
apertar um gesto de adeus.

De novo as biqueiras jorrando
no vazio do varandão.
Silêncio nesse cantar
feito de tempo e tristeza
da vida que já passou.

Jasmineiros apodrecidos,
roseiras, avencas, cravinhos
e as águas coloridas:
água branca, pingo azul,
água verde, água amarela,
que tem a cor dos meus olhos
presos na noite datarde.

Varandão, varanda, chuva,
verde alegria molhada.
Só o silêncio vazio
habita no varandão.

Águas conversam e murmuram,
falam de invernos passados,
contam contos de besouros,
pedem perdão das goteiras.

Remoem como moendas,
em voltas que não acabam
as chuvas dos verdes campos.
Enterrados vivem os olhos
que olhavam ventanias,
sacudindo os galhos verdes,
onde pousado cantava
o pássaro do meu destino.

 

 

O Corredor do Retrato

Olhar severo,
barba esgarçada,
óculos redondos,
corpo franzino,
fraque gomado,
colete grudado,
peito estufado,
foi tudo que restou numa moldura redonda
do velho Guilherme Luís, meu bisavô.

Abriu terras, comprou casas,
foi boiadeiro e pescador.
Vaquejou campinas,
plantou milho e canaviais.
Tinha engenhoca rangendo e
mandou filhos andar.
Libertou seus três escravos
que acharam que a liberdade
era morrer junto dele
no Engenho Queimado,
onde sempre viveram.

Seu olhar me prendia e assustava.
Acompanhava minha passagem
cobrando
de onde vinha e para onde
caminharia depois.

Amou duas mulheres,
com elas deitou e casou
na Santa Igreja Romana.
Pariram muitos filhos
que povoaram esses campos e deixaram nos ossuários
o destino de cada um.

No corredor daquela casa, só ele existia,
imóvel e duro, na parede amarela.
Era o construtor da morada,
do campeão dos começos,
de voz grossa e venerável.
Nunca ninguém lhe negou
o desejo demandar.
Até que um dia a filha Amália
disse que ia casar com o Professor Januário.
Ele ouviu e foi dormir
para depois decidir
que ela fosse para sempre e jamais
e jamais
o seu nome ali foi dito.

Eu o fitava
e queria conhecê-lo.
Desvendar o seu pensar.
Tinha medo daqueles olhos frios
como as madrugadas que me doíam nos ossos.

Nunca ninguém lhe negou
o coração de azinhave,
dessa bondade do amor
de libertar tia Amália.

Guilherme Luís:
quantas travessias
nos campos dos Palmeirais,
febres, chuvas, amarguras
malárias e vacarias.
As mulheres que amou
em redes brancas, varanda de rendas,
sem camas, sem começos de carícias,
vestido de chambre e gorro,
corpo e touro.

“A nenhuma mulher tive
que não fosse de altar.
A ninguém devi tostão,
que não pagasse no dia.”

“Mas não pude ser feliz,
feito ferro e pau-cetim,
como os homens do meu tempo,
mistura de barro e gente.”

“Perdi tudo que tivera,
morri sozinho e penando,
sem mulher e os filhos todos,
por meu orgulho afastados,
comendo maniva assada,
roças sem plantação,
sepultado não sei onde,
em pastagens que morreram
nos barros do Pericumã.”

Guilherme Luís, uma barba,
um olhar, uma vida,
um retrato na moldura redonda, polida de preto.

Engenho da Prata

O descampado do vento balançando.
O barracão do moer,
caído de velhice.

É o engenho? O cheiro do melaço
atravessou os séculos.
Moscas, abelhas, muruanas.

Os bois na canga.
Nascia em meus sovacos
a dentição do corpo.

Palmeiras definhadas e cercas velhas.
Trepadeiras caducas.
A casa desmanchada
era só o lugar dos bredos e bodes.

No chão, capim e restos de tijolos.
O engenho rodando, rangendo,
voando mosquitos e besouros.

Os cavalos correm como raios.
Nascem em minhas pernas
os galhos da luxúria.

Restos da Infância

Canas,
as flores selvagens.
Caducas trepadeiras,
espinhos podres.
Ramadas de são-caetano.

Os velhos quintais
chorando de abandono,
as cercas apodrecidas,
currais aleijados
e, no céu,
uma cor diferente.
Pela primeira vez vi o infinito:
ele era da cor das estrelas.

A ProcissãodoEncontro

Nasci nesta rua de cavalos, comi pó e barro,
peixes de água lodosa
pescados nas madrugadas molhadas.

Vieram dias
que docemente me induziram
a viver,
e vivi.
Buscando forças
que me levaram a partir
e nelas fui embora como quem apanhava um barco de velas
para enfrentar o mar.

Estou íntegro.
Sou carne do meu sonho e
alma do meu encanto
que amou,
conheceu o medo, a salsa, a alegria,
e a chama dessa luz que se apagou
no vento azedo da maresia dotempo.

A Bicicleta

I

Máquina de aros e correntes
a recusar-me.
Sonhar montá-la,
em equilíbrio de rodas
num clarão de selim e cordas.

Incólume e sedento
na ânsia de possuí-la
na doação dovento.

Tê-la, rija e completa,
com braços e pernas,
alarmes e campainhas.
A bicicleta,
espanto da ambição,
que me sonhava então.

Untei meu corpo
com as flores vermelhas do urucu,
estranhos para-lamas,
braços e peito
livres na correria
na angústia de cores e chamas.
Era o desejo de possuir
a vida não revelada,
entre vazios e artifícios,
em puro jogo debrincar.

A bicicleta que não tive
invadiu de ambições enérgicas
as preces e os incensos
desses meus olhos aos olhos dos santos,
e fizeram cair as lágrimas
da jovem mãe
sem poder matar-me este sonho
de montanha impossível,
gelados cumes
de uma santa alegria.

O corpo estava lavrado
de músculos, esteio pronto
para possuí-la.

Ela não veio.

II

Os tempos fizeram-me sumir,
crescendo os pés, os cabelos
e o mágicoaprender
dos palavrões e das declinações do latim:
Rosa, rosae. Insula… insularum.
As regras da gramática. O catecismo,
os pecados capitais,
as virtudes teologais.

Tudo a exilar-me
daquela ambição de possuir
o que eu quis ter,
porque eu era eu,
e a vida me vencia, pelos cobrindo
aquele pássaro de penas intocáveis,
cujo canto não ouvi.

O viver me fugiu da bicicleta
como ela outrora fugira de mim.

Nada de rolar pelos parques gramados,
porque dentro das paredes
os anseios que me despertavam
eram desejos que não rodavam
como rodam as bicicletas.

Se a possuísse,
como abarcá-la?
Eu seria o estranho
que se contemplava
no prazer de passear,
ridículo, como se no picadeiro
de um circo de luzes coloridas
com calções e meias de listras,
palhaço sem público.

Terna e encostada,
apartada de mim, a bicicleta
agora se entregava
e eu a recusava.

III

Cabelos, braços, mãos encolhidas,
de novo o fantasma é lembrado
na busca de montá-la.
Ela passa rodando
sem parar e sem que possa segurá-la,
porque as pernas com que a desejei
hoje são longas para esse desejo.

Tudo me diz
que o brinquedo que sonhei
e agora é chegado
pleno de enfeites, ouro, fitas e brilhos,
jamais poderá ser montado.

De viver, vive-se.
O saibo desse sonho de raios e borracha,
involuntária e sólida tarraxa.

As Avencas

Os espinhos são meus,
só espetam em mim,
pontas sem ponta para as outras almas.
Dor nesta pele, sangue nesta carne.

Vieram e chegaram.
Por que tantos anos para crescerem
tantas luas para vazarem?

Estas feridas não têm idade,
crescem com o destino
e se encravam.

Nada mais resta do que vê-las
sangrando,
lembrança de um tempo em que não sabíamos
que secas
estavam
as raízes de nossas avencas.

Meu Avô

Pincenê, revisando despachos.
Cantarola “sóbolos rios que vão…”
Bate a campainha, chamando o criado,
agasalha a pena no velho tinteiro.
Senta-se na cadeira de balanços e pensa.

José Adriano da Costa
professor de primeiras letras,
remou canoas em noites turvas,
navegou entre aguapés e canarana.

Oleiro do silêncio,
viveu combates de mil tempestades
e, agora,

neste chão,
pequeno cemitério de minha terra,
nem cinzas é mais.

É lembrança
que também morrerá.

A Vida Sombreada

Auto-Retrato

Bigode,
indevassável,
eterno,
ausente, habita
intocável
o latifúndio da minha solidão.
Menino, moço e velho
superpostos,
me olho e não me vejo.

Um Deus

Pobre anjo
deixei o inferno
e pedi paz.

Sou um velho santo
que caducou em rezas
pediu silêncio
e penitência.

Sou um deus
sem divindade
que uma noite pediu
um amor para amar
e não lhe deram
porque um amor para amar
nem os deuses podem dar.

TUmaNoite

Uma noite
dormiu
dentro de mim.

Mil demônios
balançando-a para lá e para cá,
a rede de linha de seda.
Ela sorria
com o odor
do cio.

Jamais Virás

Venhas na noite
lembrar-me a noite.
O desejo e a ausência
dessecorpo
esguio e efêmero
para ficar.

Venhas no dia
para abrir o dia.
Quero o tempo,
eterno e parado,
desse desejar.

Venhas agora.
Saudades das horas,
da sombra,
perdida e difusa,
que quero lembrar.

Venhas na noite,
venhas no dia,
venhas agora.
Venhas.

Jamais virás.

Velas Apagadas

É uma
chama vermelha
em meus olhos.
Fé, crença, certeza,
luz e esperança.
Agora,
ali, parada e morta,
solitária e fria,
uma vela apagada.

Aquela Noite

Esta carta sem destino
chegará a tuas mãos.
Viaja no tempo passado
percorrendo uma longa fileira de anos.
Feita no vento dos papéis de reis rendados
que circulavam nos largos de novenas,
cheira incenso e
renova recatados amores de nossas infâncias.

Estende tua mão. Segura a minha.
Aperta firme. Vejo teus dedos finos e
a saudade daquela noite
em que jurei:
— Meu amor será como pedra.

Carta

Minhas mãos choraram
ao escrever esta carta
de despedida:

teu lembrar
fala dos sinos que tocavam
para a ladainha
da Santa Conceição das Meninas Enamoradas.

Mãos
suaram trêmulas deslizando,
em tuas formas,
para encontrar
o desconhecido mistério.

Oração de Pentecostes

Tratávamos de voltar às indagações
para o normal contraste entre
o respirar e o ver.

Evoquei
o carinho
o doce e terno amaciar da pele
e perguntei “onde estás?”

Então fitei a flor da dúvida
que teimava em conviver com a fé
que desceu em línguas de fogo.

Gênesis

Esperei pela vida toda
um jarro de flores, aviso de chegada,
notícias de viagem
um encontro de febres.

Esperei entre buganvílias e lenços
perfumados leve como um pássaro,
alegre como as ventanias do meu quintal.

Tudo parecia que era a festa esperada
nesse longo dia.

Esperei.
Vi o mundo nascer.
A semente de teus olhos nas águas.

Na porta uma batida sem ninguém.
Agora é esperar
o silêncio que chegou.
Estou pronto para ir
visitar
as estradas escuras
que enroscam as estrelas.

Garça Negra

Garça negra,
asas de fogo e silêncio,
noites de tédio e de calmantes.

Não me busques.
Os meus olhos perdidos na leitura,
refazendo e fazendo os vagos medos
no temor de tudo e das ausências.

Não me busques, garça negra,
traição do estar e do existir.
Me entrego
aos horrores do medo e da ternura,
no descompasso do ir e do não-ir.
Entre o branco e a sombra de pensares,
mortos, exangue, escravo e chumbo,
mastigo a dor, a não ver nada.

Não me toques.
Asas de sangue e de agonia,
voos de sonho e de torpeza.

Garça negra, garras das insônias,
dos pedidos para ser a antevida,
companheira dos tempos e espaços,
encharcados no infinito mundo.

O Labirinto

Fruto da fortuna que é a vida
aqui estamos.
Aos cabelos revoltos e à paixão, digo sim,
ao podre andrajo de nossos desencontros, digo não.

A janela aberta e o sol entra.
É luz e vida, e
me perguntas se devo sair?
— Agora não, preciso que o dia se apague, a noite chegue,
e teu cheiro saia pela janela.

A madrugada volta e volta a noite
tudo volta, sem chegar.

Sei apenas que estou parado
no silêncio de mim, no fosco-escuro
desta árvore frondosa e inútil
espraiando sombra para nada.

Papagaios de Carimã

Nada de espelhos,
árvores, ruas,
becos, edifícios, cais.
Nada.

Voam vermelhos,
de penas abertas, tagarelando.

Pedra, flor, manga,
mar, remo, vela.
Sal da terra,
sal que não salga,
maré que cresce e volta.

Morena, cor de barro.
É a vela do barco,
com seios de bicos vermelhos,
como os papagaios
de Carimã.

Beijos que não Viajam na Madrugada

Não me abandone
esta fome da morte
que é a vida
e de não ter na sorte
de viver a vida que duvida.

Serenata sem lua,
luz sem noite,
cão
que late a alma
e depois é uma fímbria.

Solidão de platéias,
sozinho, sentado ao teu lado,
sem ninguém, dentro do nada.

Terrível estar só
e com todos,
contigo e o mundo.
Canções, músicas, alegria,
risos, damas e rituais.
No meio, o escuro.

Quero estar só
com esta fome
que me rasga o estômago.
Os amores impossíveis
andam
na madrugada.

O Ser Nada

Estou sempre aqui,
na porta de mim mesmo,
porque não basta
nem a tarde, nem a madrugada,
mas uma sombra de vida
em que tudo não seja sombra
mas o gosto de viver
entre o nada e o não-ser,
vivendo o amanhecer
entre o canto dos pássaros
e o andar dos lagartos.

O Som

Amor,
só a música
das lembranças.

Amar,
uma saudade,
um gosto de carne.

Bem-aventuranças.

Rosas Cativas

O barro, a lama, a chuva,
nenhuma primavera.
Morrem de sede as águas,
escurecem as luas, murcham os girassóis.

Almas de espinhos e de esteios,
cercas de amor já nascem velhas,
sentimentos de dor, velhas ressacas,
tiros, sebo, tacas.

Onde encontrar as estradas
em chãos descampados,
curvas de morte e olhos fechados?

Flores secas dessa cor reviva,
mortas na cova deste realejo,
leite da rosa dessa dor cativa.

Gosto das Amargas

Sem gostos e gestos de mentir
entre tristes rios que secaram
nos mares e rotas que se perderam.
Sou o pobre azul, o doce branco
o travo sentir sem ser amargo
o que viveu e não andou
sem morrer, morrendo sempre.

Constantes as ânsias dessa trama
que desmaia sem marcas.
Força e tédio.
O próprio viver é breve:
um punhal de esmeraldas.

As Espatódeas

Abro a janela
e as espatódeas invadem meus olhos.

Estão vermelhas de novo,
abrem as asas para as chuvas de setembro.

Milagre da cor eterna
das flores.
As espatódeas, quando morrem,
permanecem vermelhas
para enfeitar
os gramados secos
nos frios de julho.

Uma Gaivota

Na plenitude do desejar
olhos fechados
sem ver meus olhos
nem meu pensar
que percorrem teus olhos
param em tua boca
descem como cobra e se enrolam
num colar de muitas voltas
em teu pescoço.

Montanhas do rola-moça
construídas em suaves quedas.
Nelas o rosto descansa.
Teus olhos se abrem.
Veem meus lábios abertos
e meus olhos nos teus
deixando dissolver na boca
o gosto frio e quente da terra.

As curvas
se encontram e aparece a gaivota
aninhada
de plumagens nas asas fechadas
e adormecida.
Mãos tentam apanhá-la.
Bate as asas
a porta da gaiola aberta
dispara afagos
e se arrasta no mar das carícias
para voar solta e infinita.
Torna-se um o que foi dois.

Adormecido
com a cabeça
nas montanhas desse corpo
tateio mãos cobrindo meus olhos.
Tudo é escuro, mas
na treva das pálpebras fechadas
tem uma alegria de madrugada.

Ela aos Vinte Anos

Só a morte é capaz
de tornar-te eterna,
com os olhos verdes,
a pele lisa, a beleza, e tudo
que nasce nos vinte anos,
existência aberta entre desejos galopantes
e alvoradas de amor.

A morte eterna,
absoluta,
sai
de um riacho de águas que passam
sem saber que um dia
ficarão paradas,
pedras mortas.

Só a morte
faz o milagre
de eternizar os cedos anos.
E nesse corpo a sepultura
possuirá a poeira
sem velhice.

Palavras
lágrimas lábios brancos e belos
que nunca mais
terão o gosto de um beijo.

Saudades que Fugiram

Não sei se devia andar
a dizer ou recitar
acalantos.
Não quero
mais o canto do adormecer.

Quero entregar-me
para ser visto e amado, num banquete
das saudades que fugiram
ou
morreram.

Amor Amado

Amo por que te amar
porque de amor não se pergunta
para amar o amor sem perguntar
se é sombra e fantasia
o desejo e o sonho de buscar.

Encantos e
sendas que andei sem encontrar
quente corpo
entre tardes e noites de juntar
a tua carne à minha
nesse gosto do forte renovar
o amor amado,
peles agarradas
uma só carne e chamas.

O Milagre

O milagre é viver
na graça de sopapos e ladeiras.
Dias de glórias e clarins,
noites de suicídios.

Dias de paz, saúde e esperanças,
noites de guerra e desamor.

A tudo rendi graças,
no vau dos dias.
Navegar, navegar, naveguei
sem encontrar mares.

Cheguei a uma praia limpa,
branca, de ondas leves.
Um anjo perguntou pela minha paz.

Respondi com um sorriso.
Ele agradeceu, enxugando com areia
as lágrimas que não me deixavam mentir.

Amarela Borboleta

Uma borboleta
está pousada
no anjo de mármore que chora eternamente
num túmulo
onde todos tiram o chapéu
à entrada da capela
onde se encaminham os mortos.

Essa borboleta não sabe
que esse anjo
foi feito por mãos que tiveram vida
ambição e glória.
Estão mortas
como
o voo que passou nessas asas amarelas.

Flores

Canteiros de rua,
efêmeros e pobres,
nascem flores,
sem brilho nem destino,
tristes sem mãos de carinho.

Flores de rua,
de olhos fechados.
Pobres como os homens
que atravessam estasflores.
Sujos pela cidade
e pela falta de amor.

Luzes

Desaparece a noite
vem de volta o brilho
o contorno
dos homens e objetos.
É madrugada.
Na esquina
o lampião ainda aceso
aquece os namorados.

É a indecisão
do claro-escuro
o pranto
a dor
a árvore
a sombra
os amantes
e o desejo de ser sólido
como as pedras
sem vida, caladas
olhando as outras pedras.

Os rios correm
e secam nas estiagens de outubro.
As lajes aparecem
mostram a alma absoluta.

As coisas vivas morrem
vivem as coisas mortas.

A luz volta a mostrar a cidade
no frio da madrugada
onde destinos acabam e renascem
num relance da troca de adágios.

Restam acalantos tênues
sons imperceptíveis
que vazam de janelas abertas
de soluços novos da vida
como flautas-doce.

O beijo noitento
marca despedidas
avançam as horas
e o relógio cumpre seu giro
e a claridade começa a descobrir
as desertas praças.

Os bancos retornam a ser bancos
e o súbito milagre
da madrugada
aperta a mão do dia que vem.

Só então tua face
fica branca,
como anoite.

O Sol

Canto uma canção de amor,
eterno sol.
O teu mistério,
a flor, a luz, a cor, as árvores, a vida.
O que me vejo e a ti me vejo,
entre tranças e desejos.

A mata, o mar, a terra.
A chuva que recai
em galhos que se espraiam.
Sol, que de luz não fica só nas coisas,
mas que se derrama como tinta
e tinge meu corpo.

Sol,
todas as cores da luz
que não se limitam às coisas,
mas constrói de azul e cinza
nossas almas.

M de Mar

Mar, mar, mar.
Três vezes repito
para que ouças o grito.

Mar de ser o mar
a mar, o mar, amar.
Sempre a palavra descoberta
entre buscas.

Fêmea sim: melhor a mar.
Amar com todas as letras da posse:
amor
morte
amante
navegante.

A Lua também Aparece em Washington

Bosques que antes me queriam,
flores que agora me deixaram,
sóis que outrora me aqueciam,
luas que dantes me beijavam.

Esta vida, agora, sons e águas,
campo que é sombra nua,
amor que amassado me continha
esta falsa presença que não tinha.

Tudo é só,
é nada,
é tudo.
Tudo enfada.

Vem lua da noite azul e clara
falar-me dos naufrágios.
E depois, repousa em minha cama.
Aqui, no lençol branco dos reflexos
que brilham nas águas do Potomac.

As Cores de Maio

Descer?
Do chão onde estou sem escadas?
Do muro que me separa sem ver nada?

Descer
sem alvoradas na toca.
Descer para viver o sonho e a têmpera
do fogo semiquente
dos seios que brancos me fugiam.
Destes lábios que mudos me encantaram.
Corpo que é corpo, e não desejo
para tê-lo comigo, rijo e fêmea,
numa noite pensada e não vivida,
entre o sonho e a vida sem viver,
nas cores violetas deste maio.

Lenços de Espanha

Olhos de Espanha são mistérios.
Castanholas
fandangos
bailados
canto fundo
canto belo.

Andaluzes
galegos
catalães
bascos.

Toureiros
arenas
são punhais.
Cortam o passado
e avançam no mar
para maestrança no coração da América.

Lembrança de Praga

Para Jorge e Zélia

Sinos tocam.
Abrem-se janelas.
O relógio imita o tempo e repete
o mesmo som e agonia
dos séculos e dos dias.

A caveira e o espelho,
o ouro e os rapsodos.

Os seios contidos nos invernos
presos no peito em agasalhos e apertos,
agora pulam brancos e espigados,
livres, libertos de aconchegos,
glória ao calor e ares do verão.

Praga. Beethoven, eu e a mulher que passa
no compasso musical.
Reis que chegam, damas e valetes
distribuindo lótus e rainhas
nas festas da primavera.

Todos olham chegar o tempo,
dançando e abrindo os braços,
cachecóis rendados, flores,
bailarinos do espaço, invisível e cinza.

A igreja, os santos, o ferreiro e a bigorna.
Moedas velhas, feitas ali, canteiros e aleluias
gente, mais gente, que salta e se mistura.

Jorge me diz:
— “Há cheiros de cravos,
harpas, sóis, sons, cordas e lágrimas.
Veja as pernas
abertas dessa cigana eslovaca,
novilha branca e não domada.”

Os sinos já não choram.
Praga pede para matar memórias
das botas passadas.
É hora de ver
a liberdade
caminhando entre as flores das alamedas.

A Menina do Retrato

A sépia está desbotada.

Mas são presentes grossos
lábios, olhos-malícias
dos anos azuis.

Passar a mão em tuas pernas de menina,
ver cabelos roçando nos meus dedos.
Gostos, lembranças.

Os anos corrompem o sonho.
Vem o desejo, a paixão, o desvario,
o som da pele, os sisos dos pecados.

Tudo se foi.
Só não passa a suave penugem
de tuas coxas de menina,
meus dedos em tremor na busca do
intocável.

A sépia tem a cor daqueles começos.

Cheiros que não Passam

Líricas, lírio.
No bonde, o teu fantasma.
Tudo desmontado.
Eu, o bonde, tu, nós.

Nos ouvidos, os sons das sineiras,
restos de orvalho e de garapa.
As noites de aleluias e rezas.

O amar
tinha o cheiro de estrelas nas janelas,
de canelas e cravos.
Recordo teu olhar dormido
me pedindo para nunca mais morrer.

É possível ver
os cheiros daquela noite.

Amar sem Amor

Na cama, entregue a sonhos e lembrares,
delírios de histórias e antigas perdições.
O relembrar desejo e tentações
desse corpo de glórias e cantares.

Recordar na carícia dos amares
tudo que se acabou no mar das ilusões,
os seios tristes e mortas seduções
do encontro e do perder-se nos vagares.

Gastar o tempo e o gosto de sentir
o não-sentir do próprio suspirar
entre gestos e gestas de mentir.

Sussurrar e repetir, beijar,
o construir do nada entre sorriso e dor:
o gosto amargo do amar sem amor.

Que me Queres

Quero ouvir-te
dizer quero.
Nada mais.
Voltei.
Teus olhos têm o brilho
do ódio da partida
sem uma palavra, sem um gesto.

Voltei.
Sem um gesto, sem uma palavra.
Meu caminho foi o exílio
desses olhos de saudade
que desperdiçaram o destino.
Saia azul e blusa branca
dize-me que devo regressar.
Meu mar será como a nave de
Joaquim Antônio de Vasconcelos.
Saiu de Goa e jamais
encontrou porto.
Náufrago e sobrevivente,
velho marinheiro esfaqueado
pelo sonho de haver chegado
sem cheguei.

Soneto da Rua sem Casas

Nesta rua sem casas
eu construí meu abrigo.
Ele é feito de asas
e restos de linho antigo.

Tem um canto de atalhos
e luzes de madrugadas,
esquina coberta de galhos
e resto de estrelas apagadas.

Uma muralha interna, nua,
um casamento de solidão
que tudo tem, exceto a rua.

Nele eu construí com o coração
aquilo que de mim só quero ter:
essa paz sem corpo e sem morrer.

Adeus

Dizei-me vida a que devo estar contigo.
Dizei-me do encontro amigo dos amigos, sendo
de todos que amargam a dura pena,
feliz e amarga de dizer vivendo.

São flores, são encantos, são ternuras.
No passar, o aperto de mão, a doce cortesia
de pensar que a vida é mesmo,
folhas e flores,
apertos de mão,
como estás,
preciso ver-te.
Vida é o espaço.
Dias e noites, acordadas e dormidas
entre vigílias e amanhecer,
paixões e discussões, lembranças carcomidas,
gostos e seduções do renascer,
vida do trem, do ônibus, do jardim,
da mulher que diz não,
talvez e jamais, agora e sempre,
e depois, sem nada que dizer,
envelhece na sombra de uma chama amarga
que não é de gás nem de óleo,
apenas um adeus que se apagou
para sempre,
um trapo
que anda
na solidão.

Terra e Outros Poemas

Maranhão

Pensar-te navio que se afogou
na Praia Grande.
Teus mares
são terras de França
para onde
Maria de Médicis
mandou caravelas
para os domínios destas paisagens
onde o nome de São Luís foi dado
para dizer Maranhão:
mar e paixão.

Carta de La Ravardière a El-Rei

Majestade.
A graça que me dais
de voltar a ver o sol,
fugir da eterna escuridão
destes porões infernais,
sem voltar ao Maranhão,
não é graça, é servidão.
Ver a noite, dormir livre
sem os grilhões que me prendem à cantaria fria
desta Torre de Belém,
andar nos caminhos de oliveiras,
navegar nas cangas do mar,
beijar Charlotte em Cancale
e viver,
sem voltar ao Maranhão,
não é graça nem vida,
é maldita escravidão.

Como viver viveria
sem olhar o claro escuro
das florestas intocadas,
daquelas terras encharcadas
da ilha de SãoLuís?
O vermelho do urucu,
o amarelo dos ventos,
o vaivém das marés,
as chuvas de pingos grossos,
os pássaros e os animais:
trágico chão de derrota,
índias do meu amor,
filhos que ali deixei.

Majestade.
A minha libertação com a maldita sentença
de não voltar ao Maranhão,
não é liberdade,
é escravidão.

Melhor meu corpo apodrecer
ulcerado neste chão
desta Torre malsinada,
porque sair é morrer;
na faca da imposição
de não voltar ao Maranhão.
Será angústia,
matar o meu amor,
meu final,
minha paixão,
terras do Maranhão.

Melhor guardar a esperança
das alucinações que me vivem
— o corpo jogado ao Tejo,
de chagas e de amarguras —,
mas ter a almaliberta,
na esperança de um dia
na eternidade pousar,
entre flechas e canção,
nas terras do meu sonhar,
os ventos do Maranhão.

Salmo para São Luís

Centro do mundo
estrela sagitária
constelação azul
inverno de flores
chuvas de vento
terra, mar, perfume
jardim semestiagem.

Morrerei dormindo
no sonho de possuir
esse beijo selvagem
corpo com corpo
minha cidade
paixão e eternidade
que se dissolve
no próprio amor.

Bandeira Tribuzzi

Cheguei.
Procuro a cidade e nosso tempo.
Trago Lucy.
Volta Madeira,
Campelo volta,
Luiz Carlos está.
Burnett agoniza.
Brilha Gullar.
Odylo partiu.
Josué é mármore.
Todos procuramos por ti.
Estamos prontos para começar.
Possuir a noite entre sonetos e sonatas.
Na ressurreição do tempo.

Estás morto!
Não ouvir o teu sotaque.
O baque
de tuas sentenças ao romper das madrugadas.
Lembro as cantigas
de amanhecer
que reunidos cantávamos
ao pé da palmeira de mármore
de Gonçalves Dias.

O silêncio da morte
encheu tua face firme e serena,
de quem saiu de um duelo de facas
com leve sorriso,
e diz adeus à namorada.

Penso nas marés,
músicas eternas
de nossas solidões:
a devoção de S. Luís
e o sortilégio desta terra de sinos.
Maranhão:
mar e paixão.

Canção Maior para Roseana

Há em minha sombra, agora,
a claridade de pequeninos gestos
construindo o tempo,
invadindo o campo dos meus olhares
com as nuvens de pássaros,
as canções vivas de aboios velhos, garças,
guarás vermelhos de asas abertas,
pássaros boiando noespaço
riscando nomes, em tudo:
a presença de teus olhos, filha.

Já o barco da noite
me descobre com falas de acalanto
e lendas nascem,
os príncipes, dragões e estrelas
onde o lago é mágico e existe
o fantástico jogo das histórias simples
para os teus ouvidos.
A velha bruxa,
danças e modinhas,
e o polichinelo
governa o tempo navegando
nas águas
da tua companhia.

Há no meu olhar nas tardes, nas manhãs
nas ruas, nas casas, no mar,
o espaço, a vida e o encanto de tua lembrança.
Todas as coisas trazem
teus pequeninos olhos
e as árvores, os pássaros e os incensos
falam de tua inocência.
E a madrugada com o teu chamado ao mundo,
na menina que saúda o dia,
arranca a palavra Amor dos seus abismos
para entregá-la
indestrutível
e pura
a tuas pequeninas mãos.

Anjo e pássaro agora sou.
O teu sorriso me prolonga
além do dia, além da noite, além da morte,
e chega aos infinitos da esperança
porque agora, está em tudo,
nas minhas mãos, no meu andar,
no meu morrer,
no meu silêncio, nas minhas lágrimas,
na face do mundo:
o sorriso de Roseana.

  1. Luís, 9-9-1953

Canto quase Morto

Abandonei os frangalhos
para voltar.

Largar o passado, o céu e as amarras.
Recolher os agasalhos
desse sonho de garras
tronco e galhos.

Abandonar os campos de mostarda,
o eterno das feridas,
o medo de sorrir.
Voltei.
Conta-me, S. Luís,
histórias do passado e
deixa-me chorar nos rios do teu corpo.

Serei eterno, sem peso para trás,
nem sonhos para longe.

Tenho uma noite, uma estrela
e o tempo de rever-te.

Abram-se
as barrancas das velhas amizades
e a lembrança
das moças que eu amei.

São Luís, Amor e Cravo

Estou sempre na busca desse
voltar.
Encontrar-te de novo
depois de tempo imenso em que vaguei
os dias da vida.

Voltar a ti, minha cidade,
para sempre, e sempre estar contigo.
Saltar na rampa Campos Melo,
a lancha do Chocolate apitar três vezes,
bandeiras desfraldadas e os parentes,
tios, primas, avós e pais,
entre abraços e beijos e bênçãos
chorar lágrimas de reencontro.

Voltar a ti, minha cidade de São Luís,
amada, corpo com corpo
nessa longa presença dos tempos não juntos.
Subir as ladeiras, ver a Catedral,
Nossa Senhora da Vitória entre as nuvens,
o largo do João do Vale,
o beco do Quebra-Costa, a rua da Estrela,
a Grande, a Cruz, a Alegria, os Afogados, o Alecrim.
O sorriso, leve, rápido, como o bonde G. Dias
que corre com a campainha tocando,
o marcador das passagens pagas, no martelo do registro.

Começa a chover.
Cai água por todos os beirais
corre na sarjeta, abre a boca-de-lobo,
molha-se tudo, é a ventania,
e teus olhos de menina fecham com a janela.
É um leve piscar
e depois um sorriso.
Esse sorriso é o mundo nunca desvendado.
Tenho sonhos de ver-te entregue à chuva
e eu a correr atrás de tudo que é teu chão.

Estou na espera de voltar.
Sonho esse chegar,
acabar tudo, a ambição, a felicidade e a alegria
para voltar para ti, só para ti, cidade
de São Luís do Maranhão.

E num dia de chuva, dobrar o sino
de São Pantaleão.
Passar meu corpo liberto
e será só teu,
plantado como uma mangueira de setembro
na beira do
rio Bacanga, sendo nas Mercês.

Abade Claude D’abbeville

Fundador

Abade Claude, frade maior
que viu a Maioba e o Desterro
antes que todos nós os víssemos.

Abade Claude, frade maior
não viu o beco do Couto
e a Maroca com seus bailes
antes que meu pai visse
as coisas que ele nunca disse.

Era o mato, as palmeiras, as pacas
o vento sempre vento, e as puídas
onde andavam capivaras e índias
que deitavam seus corpos na areia
onde tudo era branco e silêncio
daqueles anos perdidos onde o mundo
era um sapo cheio e fecundo.

Abade Claude, frade maior
que cantou o Maranhão como se cantasse
um amor de freira perdido em França
entre o gosto dos cabelos e a trança
lembrada entre nostalgias e canto
nessa terra de mistério e encanto.

Abade Claude, frade maior
primeiro cantor, primeiro amante
que nos lembra São Luís
moça, mocinha, como era dantes.

Carta a Frida Kahlo

Chegaram as cores de maio.
Chegou o sol.
Chegou o vento, o mar, o mês de julho.

Espero crescerem as velas e as ondas,
ver montanhas e areias
e receber-te descendo as encostas áridas
desse México de olhos índios.

No bar, espero repente surpresa,
o garçom te levando a cadeiravazia.

Há na tua morte
as sobrancelhas amargas
da tua vida.

Kahlo Frida
fêmea não domada
por pincéis e cores.

No bar, a cadeira está deserta.
O verde não verde, e o siena.
Dá-me a mão morta.
Dedos finos de mármore.

Amor e morte,
criou tua sorte.

Frida.
Te vejo
no segundo inútil e
na canção estraçalhada
desta carta
construída com demônios
e um azul
que Gagarin viu,
depois de ti, ser a cor da Terra.

A Viúva da Nau S.Tomé

Quero ir ao mar.
Viver mistérios de náufragos ressuscitados,
roupas de marinheiros,
trompas de videntes.
Rezas de luas enfunadas.

A tempestade. O vento rompendo velas,
tambores nadando,
mulheres rezando,
padres levantando crucifixos,
pilotos chorando em frente ao sextante.

Mulher retornada da Índia,
viúva de tantos machos,
entrega tua filha ao oceano
e morre nos braços de
Dom Afonso de Albuquerque,
Rei de Melinde e Goa,
voltando para o sonho de viver
na Alfama.

O Capitão que Cuida

Não me chames de capitão.
Eu sou a caravela.
O navio do Japão,
do Selo Vermelho de Agosto,
de Melinde a Nagasáqui.

Trago sedas, sinos, incensos,
canela, cravo, pimenta.

Sou a mulher que vem nos mares,
entregar-se aos homens,
e morre entre estrelas e trombas de água.

Camões me fez sua
na madrugada da batalha
dos mares que foram
portugueses.

Retalhos de um Poema de um Náufrago da Índia

Naveguei mares antigos.
Vi monstros e voadores.
Vi deuses e tempestades.
Vi homens e marinheiros.

Nas velas feitas de vento,
rompidas na ventania,
eu saquei minha espada,
lutei com mares e gentes,
capitães, padres, tenentes.

Rompi a linha da vida
dos monstros que nos cercavam,
tridentes que levantavam,
Vênus, Minervas e Tétis.
A todas disse com força,
que do meu peito sangravam
coisas do bem e do mal,
mais que tudo, flor do peito,
cantares de Portugal.

Portugal, leito de flores,
de matos belos e ventos,
raízes de gosto e medo.
Dono de mares e terras,
Portugal, meu querer,
minha febre e meu amor,
minha força de pecado,
sangue, desejo e dor.

Navego da Índia pobre,
atravesso as Baleares,
os ventos vêm do Sul
as sortes mandam do Norte.
Em Malaca vejo Júpiter,
em Melinde está Minerva.
No Tejo esperaMaria,
de tranças e saias largas,
perguntando onde estarás,
com meu valor e de chagas.

Estou no mar das saudades,
nas águas das esperanças,
em África, Macau e Ceilão,
dentro do coração.

Maria, Tejo e Leiria
Porto, Arcos deValdevez,
Vilaça, Coimbra e Mombaça,
caminhos de recorrer.
Lisboa, Alfama e Varzim.
Ai que saudades de mim!

Uma Sombra, um Bar,Domingo

Esbarrei andarilho em tristes olhos.
Monólogos de outros.
Perambulam nos lábios
e na multidão que corta os sinais.

Solidão,
sem mão a quem apertar,
verso para dizer,
olhar para olhar cada
coração abrir,
olhos, boca, ouvido, nada.

Solidão do silêncio,
corrosão do afeto,
convite repetido para morrer,
relâmpago de um instante em que o mundo se apaga.

Solidão da cidade vazia,
do domingo deserto, da cortina fechada,
do encontro não marcado.

O passar um carro, um ruído longe,
um som de violino, uma televisão ligada.
No bar do hotel uma mulher
espera um encontro com um homem
que não chega
e fuma um charuto
com lembranças da Jamaica.

O Inverno

Passa a borrasca, a torpe travessia
esvai-se na onda dissipada.

Renasce a luz,
e de novo esperamos viver.

Canta-se o canto,
e a natureza é outra.
Há promessas de trigo
e milho.
Flores se abrem no peito
e se levantam sombras.

Até quando esta miragem floresce
e o inverno permanecerá dormindo
à espera da volta?

Quantos ventos e chuvas passarão
escondidos nessa espera?

Eu permaneço na ânsia de chegar
em meio dessa tempestade fria,
gélida, branca e cortante
que me congela a espera.