Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, 7 de maio de 1986
Chego a esta Universidade carregado de lembranças permanentes, não daquelas que a vida vivida acumula em nossa memória, sedimentadas pela experiência, e, sim, das que nos vêm dos livros, das conversas, das crônicas de jornal, com transunto das vivências alheias.
Parece-me que já andei por estes corredores, por estes pátios, por estas salas de aula, por estes salões capitulares, com a tradicional capa e meus compêndios, e recitei, também, os meus poemas.
Não precisei ler o velho Teófilo Braga para viver este ambiente. Bastou-me ler as cartas que daqui mandou o poeta Antônio Gonçalves Dias aos seus amigos do Maranhão e em que nos fala de seus companheiros, de seus estudos, de seus livros, de seu teatro, de sua poesia, de seus amores. Porque foi aqui que se formaram os mestres que deram as glórias da cultura literária à minha terra natal.
Ao tempo em que os estudantes brasileiros saíam de suas províncias para o Recife, para o Rio de Janeiro e para São Paulo, a fim de recolherem os seus títulos superiores, era para Coimbra que vinham os estudantes do Maranhão.
Por essa época, uma linha de navegação direta unia Lisboa a São Luís. Ora levava os imigrantes, ora trazia os futuros bacharéis. Era mais fácil estudar em Portugal do que em Pernambuco. Por isso mesmo, realizamos ali este milagre: não precisamos ter em São Luís qualquer instituto de ensino superior, além do velho Seminário de Santo Antônio, para conquistar, no século XIX, a preeminência intelectual que nos confere um capítulo à parte da história de nossa cultura. No mesmo corte de tempo, deu o Maranhão ao Brasil o seu maior poeta, na pessoa de Gonçalves Dias, o grande prosador, na pessoa de João Francisco Lisboa, amigo de Alexandre Herculano; o seu maior homem da Ciência, na pessoa de Joaquim Gomes de Sousa, o grande matemático de que tanto nos orgulhamos; o seu maior biógrafo, na pessoa de Antônio Henriques Leal, famoso autor dos quatro tornos de Pantheon Maranhense, amigo de Camilo Castelo Branco.
Foi a mesma linha de navegação que daqui nos levou Manuel de Bittencourt, jornalista e romancista que preparou a geração literária ao final do século XIX e começo deste século, definida por Humberto de Campos, nas suas memórias, como o último estilo de Atenas.
Ao tempo de colônia, daqui saíram estudantes de teologia para concluírem seus estudos no Seminário de Santo Antônio, segundo nos conta o padre Bettendorf, na sua História dos Jesuítas no Maranhão.
Entre os bacharéis por Coimbra que se transferiram para o Maranhão, dois, também poetas, se destacam: José Tomás Quintanilha, juiz de fora em São Luís, que se fez brasileiro aderindo à Constituição do Império, foi amigo de Filinto Elísio e de Bocage, e Joaquim José Sabino, autor de farta produção poética e de uma tragédia — A Nova Castro.
Mas a vinda dos maranhenses é mais marcante. O primeiro deles a se graduar foi José Pereira da Silva, que de 1777 a 1785 aqui estudou Direito, Matemática e Filosofia, e em nossa terra se tornou jornalista combativo, poeta repentista à maneira de Bocage.
Odorico Mendes, já no início do século XIX, veio estudar Medicina, estudou Filosofia, e voltou para participar, com seu jornal O Argos da Lei, das lutas pela Independência e sua consolidação. Neoclássico, tradutor de Homero, Virgílio, Voltaire, foi o patriarca e inspirador do humanismo maranhense, da geração de Gonçalves Dias e Antônio Henriques Leal.
Em 1838, aqui chegou um caboclo maranhense de quinze anos. Chamava-se Antonio Gonçalves Dias. Durante sete anos viveu a vida boêmia de estudante, estudante pobre, torturado. Escreveu a Antônio Teófilo de Carvalho Leal, seu mais querido amigo e colega.
“Triste foi a minha vida em Coimbra que é triste viver fora da pátria, subir degraus alheios e por esmola sentar-se a mesa estranha. Esta mesa era de amigos… embora! O pão era alheio, era o pão da piedade — era a sorte do mendigo. Compaixão! É um termo de expressão incompreensível — não a quero. Mas ser desconhecido — ou malconhecido, mas sentir dores d’alma, mas viver e morrer sem nome, sonhar de tormentos e viver deles — é mais triste ainda.”
Sua turma incluía ainda, entre os maranhenses, Pedro Nunes Leal, Antônio do Rego, João Duarte Lisboa Serra, José Ferreira Vale.
Foi em Coimbra que Gonçalves Dias escreveu o mais belo, o mais conciso e o mais popular dos poemas líricos brasileiros. Refiro-me à Canção do Exílio, que todo brasileiro repete, emocionado, sempre que o sentimento do desterro nos aperta o coração.
Daqui partiu também, com Eça de Queiroz, a renovação do romance brasileiro, por intermédio de O Mulato, de Aluísio Azevedo, sensível ao modelo de O Crime do Padre Amaro.
As gerações preparadas por Coimbra ressoaram no Brasil, participando de nosso processo histórico, quer no plano das ideias políticas, quer no plano das ideias literárias. Ainda conheci admiradores de Guerra Junqueiro que sabiam de cor A Velhice do Padre Eterno. Também conheci admiradores de Antônio Nobre, que traziam na ponta da língua os poemas de Só. Eugênio de Castro, a bem dizer, participou do processo simbolista em meu país.
Razão assistiu ao saudoso Presidente Tancredo Neves quando agradeceu à Universidade de Coimbra a preparação dos líderes políticos que fizeram a Independência do Brasil. Nossa autonomia política tem a singularidade de nos manter fiéis às nossas origens, sem prejuízo de nossa consciência nacional.
Com razão afirmava Joaquim Nabuco, num de seus estudos literários, que as duas maiores obras de Portugal são Os Lusíadas, no plano intelectual, e o Brasil, no plano de criação social e política.
Nossas primeiras lideranças nasceram nestas salas, nestes corredores, nestes pátios. Aqui se formaram os nossos próceres, aqueles que moldaram o País com a sua consciência autonômica, preservando os valores de que nos orgulhamos: a língua, a unidade física, no sentimento cristão, a vocação da liberdade, o gosto de construir e realizar.
Entre vós foi aluno e professor o homem que organizou o nosso processo de independência, o sábio José Bonifácio de Andrada e Silva. De 1783 — onze anos depois dos estatutos pombalinos que modernizaram esta Casa — a 1788 fez seus cursos de Filosofia e de Leis. Daqui partiu para sua viagem de estudos à Europa, para usar, em Paris, a cocarda tricolor, para, de volta, aqui criar a cadeira de Metalurgia, recebendo, ao mesmo tempo, gratuítamente, seu capelo doutoral. Aqui encontrou então seus irmãos Antônio Carlos, graduado em Filosofia e Direito, e Martins Francisco, formado em Filosofia, criando-se então a unidade de pensamento que seria decisiva na conquista da Independência e na organização de nosso Estado. Aqui tomou em armas: participou do corpo voluntário acadêmico na primeira invasão francesa, foi major, tenente-coronel, comandante, na segunda invasão. Elogiado inúmeras vezes em ordens do dia por sua coragem, pôde dizer:
“… Em tais circunstâncias mostrei que o estudo das letras não desponta as armas, nem embotou em mim aquela valentia que sempre circulara em nossas veias, quer nascêssemos aquém ou além do Atlântico.”
Não quero prosseguir sem antes vos falar de uma dívida, aquela que contraí na adolescência. Bandeira Tribuzzi, grande poeta, o mais alto de minha geração, foi aqui que estudou. Sua passagem o marcou tanto que, pouco antes de sua morte, ainda escrevia:
“A capa preta, manto da noite enrolando-me os sonhos, ó pedras sábias que D. Dinis ergue em templo à deusa da Ciência. Ó Coimbra, inteligência romântica de um país sentimental, fonte de santas heresias a pulsar para sempre nos corações que um dia na água de tua fonte os lábios jovens embriagaram.”
Daqui Tribuzzi nos levou poetas fundamentais de sua renovação literária: Fernando Pessoa, Camilo Pessanha, José Régio, Miguel Torga, Antônio Boto, Alberto de Serpa, Mário de Sá-Carneiro, Vitorino Nemésio, Sebastião da Gama, e tantos outros. Foi nesses poetas que nos debruçamos para encontrar nossos próprios caminhos.
Sobre Coimbra nada mais tem-se a dizer. Ela é maior que a soma de todos os que foram e são. Não é mais um prédio, os professores, os alunos, os que a ela estão vinculados pela glória com que se cobriram ou pelo anonimato em que desapareceram. E porque ela sendo tudo isso, é mais, pela carga da História e pela força de sua instituição.
“Instituição que está aqui e está no Brasil, atravessando os oceanos, está aqui e lá, tem várias e é uma só, é realidade e é uma nuvem.”
Grato e comovido, recebo este título e estas insígnias, com que quiseste generosamente associar-me esta Universidade, cujo nome evoca, na minha Pátria, o Brasil, e na minha terra, o Maranhão, o fluir do espírito através do tempo, a sequência de homens, ideias, fatos e obras que são a cultura de língua portuguesa, e que a inseriram na cultura de um mundo cuja própria unidade aqui tomou forma e impulso.
Nunca será demais repetir que o conceito de universalidade e o sentimento de ser um só o gênero humano surgiram e ganharam corpo nesta terra e afirmaram-se dentro destes muros, entre aqueles que temos, os dois povos, brasileiro e português, como nossa comum ascendência. E que o saber de experiência feito, de olhar, palpar, ouvir, sentir e viver, aqui, nesta terra que foi o fim de um mundo e o começo de outros, assumiu o desenho sobre o qual se ergueu o edifício da modernidade.
Se essas novas formas de conhecimento ainda chegam até nós, como novidade, nas palavras de Camões, de Garcia d’Orta, de João de Barros, de Duarte Pacheco Pereira, de Francisco Faleiro, de Frei João dos Santos, de Manuel da Nóbrega, de Gabriel Soares de Sousa, de Vieira, de Fernão Mendes Pinto, de Sá de Miranda, é porque se assentaram na permanência destas salas, que, hoje como dantes, abrigam o nosso saber e o preservam e renovam.
Aqui, o mundo não se amesquinha: no suceder das gerações, no encontro dos homens com origens e experiências distintas, no confronto entre a História e a vida diária, entre o livro e a fala, o templo multiplica as geografias e amplia o entendimento do que fomos, do que somos e do que queremos ser, pois bem sabemos que o que mais importa, no conhecimento que herdamos e continuamente reconstruímos, é o que nele é o conteúdo do futuro.
Recebe, pois, estas vestes acadêmicas o que há de melhor e menos precário em mim mesmo, o que se construiu dentro de mim com a história de minha gente, com a presença dos amigos que me chegaram no convívio direto ou através das palavras que puseram nos livros que escreveram. Por isso, ao vos agradecer este novo gesto carinhoso, que, na minha pessoa, fazeis ao Brasil, não posso faltar à expressão de meu reconhecimento aos que me acompanham dos longes da História, aos que, desta Universidade, se projetam desde o passado até agora e se fazem visíveis no que somos e no que nos cerca.
Ninguém estranhará que se coloquem em um político a borla e o capelo da faculdade de direito. O direito é o urdume pelo qual passa, ou deveria passar, a trama da política. E não quero referir-me apenas ao quadro constitucional e ao conjunto de leis que regulam, condicionam e orientam a ação política, mas, sobretudo, ao estudo do direito, ao progresso da hermenêutica, ao incessante avanço das doutrinas, ao embate revigorador entre elas, ao surgimento ou ressuscitar de ideias que passam do direito à política, da cátedra aos partidos, à imprensa, à opinião pública e ao parlamento.
A ciência jurídica não cessou jamais de alimentar o pensamento político, de dar forma, justeza, amplitude e rigor às aspirações de permanência e de mudanças sociais, do mesmo modo que o pensar e o agir políticos são os responsáveis pela própria ordem jurídica, pois é nos partidos e no parlamento que surgem e se impõem as ideias que se substituem, modificam, completam ou renovam democraticamente as leis.
Funda-se na coincidência de origem e de alvo esse constante dialogar entre dois tipos de inteligência e vontade, a política e a jurídica, que tantas vezes convergem numa só pessoa. Com efeito, ao político e ao jurista, o ideal de justiça está no início e no fim de toda a ação, não a justiça vista na sua cega impassividade, mas, sim, alerta, sensível, imaginosa e voltada completamente para a causa humana, com a qual aspira a confundir-se.
E ninguém tampouco estranhará que um poeta receba o doutorado em direito, pois isso que chamamos a causa humana é a construção do espírito poético, da imaginação criadora, da fertilidade das utopias. E é nisso que chamamos a causa humana que o exercício do direito e da política encontraram justificativa. Esta causa humana que pode definir-se como aspiração de um convívio perfeito de cada homem com os outros homens, com o constante aprimoramento da vida social, para que nela cada um caminhe em plenitude, fiel à sua verdade, e para que possa ele responder às necessidades que cada um e todos, sem fome e sem medo, têm para ser o presente, para contar com o futuro, para sonhar a eternidade.
Isso está na essência de nossa cultura, não apenas no consentimento da alma geral das duas nações de ascendência lusíada, mas no eixo do pensar de todos os povos que são herdeiros da maneira mediterrânea de ver o homem e o mundo. Vivemos, pois, numa cultura do poético, que explica por metáforas os espaços, as coisas e os seres, que justifica o presente com a potência de que imagina e sonha, um sonho entranhado no real, na vida prática, em cada frase que se diz, em cada ato que se completa, em cada voto que se deposita.
Os poetas nos compuseram o futuro em forma de profecias, e de sua voz não escapamos ninguém, matemáticos, físicos, biólogos, filósofos, juristas ou políticos, sobretudo nós, juristas, políticos e poetas, que devemos, cada um, a seu modo, tudo fazer para que, no espaço do mundo que nos coube, coincidam o belo, o justo, o puro e o verdadeiro.
Saúdo a Universidade de Coimbra,
“que sempre viveu em mim e era um horizonte distante, que está perto e está longe, nos mares que atravessou e que nos atravessaram. Ela é feita de saber. A única força que aproxima o homem da eternidade, entre a poesia e cravo. Cravos de Portugal, poesia do nosso amor.”