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Lincoln Paine: sobre “O Dono do Mar”

Lincoln Paine: sobre “O Dono do Mar”

Lincoln Paine•

Escritor, especialista em história marítima. International Journal of Maritime History, XXII, no 1, pgs. 222-223, June 2010.

 

Literatura do Mar e História Marítima

Na obra de José Sarney, O Dono do Mar, o pescador Antão Cristório tem como companheiro Aquimundo, encarnação de um piloto chamado Aires Fernandes que morreu afogado, e “em quem o tempo não passou”. Aquimundo conta ao perplexo Cristório, no seu primeiro encontro:

Andei por muitas terras, de Sofala, Querimba, Ibo, Pemba, Mombaça, Melinde, Pate, Ormuz, Diu, Goa, Coxim, Malaca, Ceilão, Meliapor, Macau, Timor, e cheguei a Nagasáqui com Francisco Xavier, o padre que hoje é santo, mas que embarcou comigo na nau Amacau, o Navio do Selo Vermelho de Agosto que fazia o caminho do Japão.

A isto, Cristório responde simplesmente: “Eu não entendo essa conversa, eu não sei nada do que você fala. Isso é língua enrolada de curacanga.” Que um filho da colônia mais bem sucedida de Portugal, e ademais um marinheiro, ignore as realizações e a extensão do império português dos séculos XVI e XVII teria sido inconcebível no tempo de Camões, mas é uma consequência natural da passagem do tempo.

As pessoas esquecem, as nações também, e a ignorância acerca do passado é um erro no qual reincidimos muito naturalmente e com frequência; é contra essa ignorância que os historiadores constantemente se empenham. No entanto, e só porque Cristório nada sabe da sua dívida para com o império marítimo português não significa que ele se situe fora da história; O Dono do Mar pode ser lido pela forma como traz à luz as diferentes percepções a respeito do mar por parte dos pescadores da costa brasileira de meados do séc. XX, e pela compreensão da natureza das suas comunidades.

O tour de force de Sarney no campo do realismo mágico tem lugar entre as ilhas do Estado do Maranhão, na costa atlântica, a sudeste da Amazônia. O romance conta o amor de Cristório por Quertide, raptada por demônios; ao final de três anos de buscas, ele resolve desposar outra mulher e continuar com a sua vida de pescador. A busca de Cristório, sua tentativa de encontrar Quertide, é a um tempo real e fantástica, tal como a tentativa de Ulisses de voltar para casa; a mágica de Sarney tem uma qualidade mítica, de outro mundo. Mas o seu realismo está firmemente enraizado no dia-a-dia dos seus personagens. Cristório é um homem do seu tempo e lugar, e embora tivesse de lutar contra demônios, também tem de continuar a viver a sua vida. Embora o mar e a terra sejam ambientes distintos, são, na mesma medida, estranhos e banais, e embora não falte à obra um sentido de drama ou de maravilha, é um fato indisputável que os pescadores vivem vidas anfíbias, e Sarney não faz qualquer separação entre as duas formas de existência humana.

Yukio Mishima faz uma abordagem semelhante na sua obra O som das ondas (1956), que tem lugar no Japão do pós-guerra. Tal como O Dono do Mar, trata-se de uma história de amor, cujo herói, Shinji, é um pescador. Embora não haja nada de mágico no realismo direto de Mishima, tal como no caso de Cristório, barcos e navios fazem parte intrínseca da sua vida.

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