Tereza Cruvinel•
Jornalista.O Globo, Rio de Janeiro, em 19 de junho de 2000.
Era uma vez uma mulher de seios de ouro
No novo livro de Sarney, há pitadas de realismo fantástico colhidas no imaginário dos garimpos e na tradição oral.
A literatura ficará devendo à política a existência de Saraminda, o novo romance de José Sarney. Não fosse haver-se candidatado a uma cadeira do Senado pelo Estado do Amapá em 1991, não teria o ex-Presidente tropeçado nas sobrevivências da luta entre franceses e brasileiros pela posse das terras contestadas, ou nas marcas da febre de ouro que rasgou o ventre daqueles rios e serras no início do século. Havia ali um romance a ser escrito, disse então o escritor ao Senador, pedindo uma pausa.
Nos últimos três anos, Sarney não se separou de Saraminda, o livro, mas não fez exatamente uma pausa na política. Escreveu nas madrugadas, fez revisões em aviões, divagou em reuniões e estreitou seus laços com o Amapá. Esteve em garimpos, nas fronteiras da Guiana e em Caiena. Apesar de cercado por uma moldura de época, de ser calçado em exaustiva pesquisa histórica, não se trata de romance histórico. O leitor em algum momento quase quererá que o autor fale mais das escaramuças do herói brasileiro Veiga Cabral contra os franceses, das trocas da bandeira azul, branco e vermelho pelo pendão verde-amarelo.
Como em O Dono do Mar, há neste livro pitadas de realismo fantástico, colhidas no imaginário dos garimpos e na oralidade local. Garimpos que secavam se não lhes dessem álcool todo dia e sangue. Garimpos que morriam se contrariada fosse a invisível “mãe do ouro”.
A personalidade em relevo da protagonista dá-lhe um viés de romance psicológico. Mas o que Sarney conta é a história de uma mulher singularmente bela (seios fosforescentes, olhos de esmeralda, pelo de cetim) que administra com cálculo a beleza e a vertigem de desejos que sabe provocar. Vende-se num bordel por 10 quilos de ouro mas é, a seu modo, íntegra. Escolhe o comprador, que a deixará reinar caprichosa e nua no garimpo inóspito. Ali terá vestidos de Paris, liteira e uma carruagem.
Mulher com uma vontade quase fálica de conquista, Saraminda é bárbara em seu egoísmo, chegando a enjaular um objeto proibido de desejo, o francês de perturbantes olhos azuis. De novo, o fantástico. A natureza a premia com oito virgindades, uma a cada entrega, quando feitas com paixão. E ainda lhe dá os seios de ouro.
Quem como Sarney tanto bebe nas fontes populares não escapará da linguagem que delas brota. Mas é com o ritmo, não com a colagem grosseira dos falares, que ele consegue esse feito. A estrutura tem audácia. O tempo vai e vem, os vivos e os mortos se falam preenchendo claros propositais da narrativa, que se faz guiar por uma misteriosa navalha talhada em ouro.
Saraminda, em algum momento, terá sua fraqueza. Seus laivos de gratidão e ternura não aplacarão os ciúmes que desperta. Se será morta, entregando seu sangue aos garimpos, vítima da navalha de ouro, o autor não deixa claro. Ao leitor resta outra escolha, uma ressurreição gloriosa, que pode ser também uma alucinação. Mas para escolher, é preciso ler o livro.