A Folha de S. Paulo, quando eu escrevia uma coluna semanal, abriu o tema do significado de “coisa” como uma palavra que servia para tudo e no fundo era sinônimo de qualquer substantivo feminino que tivéssemos como tema do nosso artigo. Era um convite a ficar “por dentro das coisas”, para falar “coisa com coisa”. Coisa de inteligência, digna de ver a coisa como a coisa é. Exemplo: Benedito Valadares, prudente e arguto, quando encontrou Juscelino, a quem tinha lançado na política, perguntou-lhe, irritado: “Você ficou doido? A coisa está mesmo preta, Juscelino.” Este revidou: “Não tenho mais medo de coisa nenhuma.” E assim cada cronista usava a palavra coisa com o significado que quisesse.
Shakespeare colocou na boca de Hamlet a dimensão desse conceito misterioso, enigmático e imponderável: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a tua vã filosofia.” O povo traduz na forma popular: “Há mais coisas no céu do que os aviões de carreira.”
Agora a palavra “crise”, como foi no passado a palavra coisa e ainda o é no presente, mistura-se com a outra, numa designação que os dicionários relatam como um problema que se tornou paroxístico em qualquer setor. É crise do Oriente Médio, crise da
Ucrânia, crise de Gaza e, se chegarmos mais próximos, crise das enchentes do Rio Grande do Sul. Isso sem falar da crise da Igreja em relação aos homos. Os franceses já firmaram um conceito que vai além da crise, que é o de viverem em determinados momentos excesso de crises. Na verdade, todos nós vivemos um excesso de crises.
Afonso Arinos, numa série de artigos que escreveu na década de 60, abordou esse tema e sobre ele deitou e rolou, dizendo que a crise brasileira era uma crise de evolução. E sobre isso profetizou o que afinal aconteceu: o golpe de 1964 levar as nossas instituições a um período de sombra de mais de 20 anos, que só foi extinto quando da eleição de Tancredo Neves e quando seu dramático falecimento me levou a assumir a Presidência da República e ser responsável pela transição democrática. Isso me custou uma engenharia política para ser capaz de convocar uma Constituinte e assegurar o período de absoluta liberdade democrática que tivemos até hoje. Vivemos a mais longeva Carta Magna, com que fomos capazes de atravessar dois impeachments e alguns momentos de tensão. Somente o império da Lei foi capaz de evitar um novo desastre institucional, graças à responsabilidade das Forças Armadas com a Democracia e uma consciência nacional consolidada e forte, que, sob a égide da Constituição de 1988, preservou o Brasil de uma tragédia que poderia ter desembocado numa guerra civil.
Mais prolongada é a crise do Legislativo, provocada, como previra Afonso Arinos, pelo voto proporcional uninominal e a consequente multidão de partidos, que acaba resultando na sobreposição dos interesses corporativos às necessidades do País.
É claro que o coração da Democracia está no Congresso Nacional, que emana do povo e em seu nome assegura o império da lei. Agora vemos com certa tristeza a permanente crise de desarmonia entre os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, o que sem dúvida desestrutura o núcleo duro do Poder Democrático.
A isso os jornais estão chamando de crise permanente que, num tempo em que exemplos de clima devem ser citados, parece ser uma frente “crise” fria estacionária, que ficou sobre o Senado e a Câmara, extrapolando para o STF e o Executivo.
Como as águas do Guaíba estão baixando, estamos esperando que, urgentemente, também essa frente fria, do El Niño e de La Niña, afaste-se das nossas instituições e se estabeleça um clima de paz entre os Poderes.