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Jorge Amado

Jorge Amado

Jorge Amado•

Da Academia Brasileira de Letras. Prêmio Camões 1995. Folha de S. Paulo, 21 de dezembro de 1995.

 

Sobre O Dono do Mar

O Dono do mar, do mar do Maranhão, é o escritor José Sarney que o recria, em romance belo e vigoroso. O Dono do Mar vem situar de forma definitiva o nome do autor entre os nossos melhores ficcionistas. Já não cabe confundir o homem político de polêmica travessia de sucessos — foi Presidente da República e, posteriormente, do Congresso Nacional, é Presidente do Senado — com o escritor, membro da Academia Brasileira de Letras. Muitos ainda o fazem, atacam o escritor para atingir o político, no exercício da crítica literária do “não li e não gostei” tão característica dos hábitos (maus hábitos) intelectuais do país.

Os adversários das ideias e das posições do político Sarney buscam desconhecê-lo e negá-lo como escritor. Uma tolice, pois acontece que a qualidade da obra de um escritor independe da boa ou má vontade da crítica: a obra é boa ou ruim e assim permanece, independentemente do que dela digam amigos em gordos elogios, inimigos em pérfidos ataques.

Já que comecei esta breve notícia sobre O Dono do Mar fazendo referências à atividade política de Sarney, aproveito a oportunidade para opinar sobre a forma como ele exerceu o poder na Presidência da República. Coube-lhe a difícil tarefa de conduzir o país para o exercício pleno da democracia, após os 21 anos de ditadura militar, violenta e obscurantista. Sarney realizou com extrema habilidade a difícil transição. Ao fim de seu mandato o Brasil se encontrou num clima de completa democracia política, a tal ponto que nos foi possível suportar o Governo Collor, lutar por sua queda e obtê-la, sem que a vida democrática fosse abalada.

Apenas empossado na Presidência, Sarney tomou medidas que fizeram a democracia avançar rapidamente. Vale a pena citar duas delas: a legalização do Partido Comunista e o reconhecimento do regime cubano. Em entrevista à imprensa após a eleição, Tancredo Neves prometera levar esses temas controvertidos à discussão no Parlamento. Sarney optou por resolvê-lo de imediato.

Ainda nas barbas da ditadura, abriu espaço para a ação de todos os partidos, inclusive do Partido Comunista. Nas barbas do embargo a Cuba, imposto pelos americanos às nações da América Latina, Sarney reconheceu Fidel, estabelecendo relações diplomáticas com a ilha amaldiçoada. Vale a pena, no que se refere à nossa política externa, ressaltar ter sido o Governo brasileiro no tempo de Sarney o principal responsável pela formação de um novo fórum de discussão e de ação para os países latino-americanos, mais além da vontade dos EUA.

Desviei-me do tema que de início me propus, volto a ele: quero falar do romance O Dono do Mar, do escritor José Sarney, escritor a quem o político José Sarney tem causado graves prejuízos. Não me refiro só à má vontade dos críticos de oitiva, tão salafrários. Refiro-me sobretudo às dificuldades criadas pelo homem público à plena realização do escritor — nas correrias da política, onde o escritor iria encontrar tempo para levar avante a obra iniciada com tamanha vocação? Eu próprio, devo confessar, por mais de uma vez duvidei que o autor de Norte das Águas retomasse os caminhos da ficção, voltasse ao trabalho criador, à literatura.

Certa feita, muitos anos são passados, um editor paulista me ofereceu um exemplar do livro do ficcionista estreante, nome para mim inteiramente desconhecido. Tratava-se de Norte das Águas. Fico feliz cada vez que me deparo com um novo escritor de talento e vocação indiscutíveis, era o caso. Mandei carta ao autor, louvando-lhe os contos e, como de hábito, botei a boca no mundo conclamando os leitores para a leitura de quem contava a vida da gente simples do Maranhão com profundo conhecimento, numa prosa saborosa e original. Fiquei à espera de novos livros de quem começava tão bem.

Depois, pouco a pouco, vim a saber que era o estreante, já então político popular em seu Estado, amigo fraterno de Odylo Costa, filho, que me louvou, além dos contos, a poesia do conterrâneo. Terminei amigo de Sarney e, nos últimos anos, não fiz outra coisa senão lhe cobrar novo livro de ficção — sem esperança que o milagre viesse a suceder. “Tenho um romance na cabeça”, respondia-me Sarney, “mais dia menos dia o escreverei.” Pois bem: em junho recebi em Paris um pacote contendo os originais de O Dono do Mar, romance do mar do Maranhão, belo e vigoroso, repito.

Romance da pesca e das canoas, do cotidianos dos pescadores da costa maranhense, das tempestades, do mistério e do sonho, dos naufrágios e dos náufragos, dos navios que afundaram nesse mar do Maranhão no passar do tempo. Navios que persistem na travessia infindável, a cruzar as águas, povoando-as de fantasmas. No romance de Sarney os tempos se sobrepõem e se somam para formar um tempo feito de memória e de vida, tempo único e inseparável. Os sucessos do passado, de aventura e heroísmo, e o cotidiano dos pescadores de hoje, igualmente de aventuras e heroísmo.

Eis que fantasmas navegam na canoa Chita Verde do pescador Antão Cristório, capitão do mar. Os fantasmas participam das pescarias, convivem com a gente dos povoados, vitoriosos sobre a morte na força da legenda. Vivos na imaginação que constrói a verdade histórica dos homens e dos países.

A história, a lenda, o dia-a-dia, o amor, a família, a paixão desvairada, a guerra, o que está acontecendo e o que sucedeu séculos antes, aquilo que se sabe por ouvir dizer. De começo os tempos do romance são linhas paralelas, acontecidos diversos e distantes, mas no decorrer da narrativa essas linhas se aproximam e se misturam, fundindo-se na realidade de um tempo maior que contém o ontem e o hoje. Tarefa difícil que José Sarney resolveu na perfeição da arquitetura de seu romance. As histórias dos navios naufragados no passado, da canoa e da pescaria de Cristório. O romancista conhece, com um conhecimento vivido, a vida de seu povo e a história do mar do Maranhão.

Quero terminar destacando no conjunto harmonioso do romance (harmonioso ou turbulento?) duas cenas que me parecem soberbas. Uma delas descreve as núpcias de Cristório e Camborina. Recém casados, Camborina entrega a Cristório a irmã Germana, para que ele possa possuir a virgem a que tem direito. A outra é uma das cenas finais, página para se ler em voz alta, conta a morte da canoa Chita Verde. A canoa Chita Verde e o Capitão Cristório, o pescador e sua embarcação na vastidão das águas. No bojo da canoa Cristório e os fantasmas, a realidade e os mistérios do mar do Maranhão.

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