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Buscar o que nos pode unir

Buscar o que nos pode unir

Marco Maciel •

Senador por Pernambuco, Vice-Presidente da República, da Academia Brasileira de Letras

Buscar sempre, entre o que nos separa, aquilo que nos pode unir parece constituir o grande objetivo da Política, porque se queremos viver juntos na divergência, princípio vital da democracia, estamos fadados a nos entender.

Impõe-se assim acreditar na força das idéias, compreender que a política não pode ser o meio da conservação, mas de transformação, e que a firmeza das convicções não deve ser empecilho para o entendimento capaz de transformar o poder em instrumento de justiça, igualdade e paz social.

Faço tais observações por considerar que episódios significativos incorporados à história brotaram de provisão da capacidade de homens públicos de anteciparem-se às crises e, de modo sintônico, resolvê-las em consonância com as aspirações nacionais. Fazer memória desses fatos que se transformaram em datas paradigmáticas serve de pedagogia cívica e ajuda a iluminar o futuro, que se nutre daquilo que passou. Os vinte anos da Nova República permitem lembrar que o Evangelho da conciliação começou a ser escrito nas Gerais, berço de Tancredo Neves, cuja vida e morte nos torna coetâneos do mais amplo e denso movimento de redemocratização de toda a vida republicana.

É oportuno recordar a inclinação do homem das alterosas ao bom senso, como afirmou Alceu Amoroso Lima, “… o mineiro não é, nem da razão pura, nem da paixão pura… A ordem, para ele é uma manifestação da própria vida… em seu equilíbrio profundo, em sua compensação das partes, em sua oscilação entre extremos”.

Nessa direção, acrescentou Mestre Gilberto Freyre: — “No assunto todo mineiro típico é vigário… a quem nenhum outro brasileiro deve ter a pretensão de ensinar o padre nosso da relatividade. Relatividade política. Relatividade social. Mineiridade”.

Vale anotar a coincidência de refletirmos sobre as duas décadas da Nova República idealizada por Tancredo Neves e efetivada por José Sarney, no mesmo instante em que transcorrem os 150 anos do Gabinete de Conciliação, articulado e presidido por notável pró-homem das Minas Gerais, estadista que o Presidente Tancredo Neves muito admirava e revelara, se tempo houvesse, a intenção de biografar-lhe.

Pena que a obra do Marquês de Paraná, cujo Gabinete tanto contribuiu para a estabilidade política do Segundo Reinado, por meio de pacto entre os partidos do Império, não se concluísse, interrompida em virtude de seu súbito desaparecimento nos idos de 1856.

Conquanto sejam obviamente distintos a moldura das circunstâncias e o tempo histórico, o “Gabinete de Conciliação” e a “Nova República” são movimentos que se semelham teleogicamente: congraçar a Nação em torno de idéias, sem exigir das agremiações partidárias renúncia a seus princípios, visando a aperfeiçoar as instituições e construir uma sociedade compatível com as exigências do desenvolvimento e da justiça social.

A Nova República foi fruto de amplo acordo aberto aos partidos políticos e à sociedade civil, tendo como núcleo o PMDB e a Frente Liberal, assim cognominada a dissidência do PDS. O documento constitutivo desse pacto intitulado “Compromisso com a Nação”estabelecia, ao lado de preceitos doutrinários, objetivos programáticos essenciais para que o Brasil se reinserisse no Estado Democrático de Direito, promovesse o encontro entre o governo e a sociedade, através de adoção de medidas também no campo social, cultural e econômico.

Estava igualmente presente a convicção de que “só a coesão nacional, em torno de valores comuns e permanentes, pode garantir a soberania do País, assegurar a paz, permitir o progresso econômico e promover a justiça social”.

Para tal era indispensável concluir, sem ressentimento, o processo de transição para a democracia, com o término do regime militar.

O percurso, é oportuno recordar, havia sido encurtado com a promulgação da Emenda Constitucional no 11, de 1978, resultado da chamada “Missão Petrônio Portella”, que autorizara a revogação dos Atos Institucionais e Complementares, garantira a anistia, restabelecera as condições para a pluralidade partidária e assegurava o livre funcionamento dos sindicatos, entre outros dispositivos contendo inequívocos avanços político-institucionais.

É tempo de relembrar o destemor, a lucidez e, como diria Machado de Assis, o “instinto de nacionalidade”, que caracterizou os integrantes da Aliança Democrática e o apoio recebido, através de lídimas instituições – a ABI, a CNBB, a OAB, a SBPC, a Imprensa, as universidades, os sindicatos, entre outras organizações da sociedade civil.

A Frente Liberal, assim batizada pela Imprensa, foi um movimento desencadeado pelos que divergiram da direção do PDS para evitar a imposição de candidatura à Presidência da República, que não resultasse de consulta prévia às bases do Partido e fosse representativa do sentimento de abertura política que pervadira o País. Assim, nasceu o Partido da Frente Liberal, cujo Presidente de Honra foi Aureliano Chaves, então Vice- Presidente da República.

Bem se vê, que o PFL, hoje competentemente presidido pelo Senador Jorge Bornhausen, brotou de um movimento histórico que tornou possível, no Colégio Eleitoral, reunido pela última vez em 15 de janeiro de 1985, a vitória da Aliança Democrática com a chapa Tancredo Neves e José Sarney. No Manifesto de criação do Partido, que comemora também 20 anos, seus signatários proclamavam:

A hora da reconstrução da democracia deve ser a hora do reencontro e da conciliação indispensáveis à solução das graves dificuldades que nos afligem. Não há por que reviver antagonismos que as novas realidades se incumbiram de superar.

O que é preciso, agora, é corresponder à confiança e à poderosa corrente de esperança que a abertura política reacendeu neste País.

Esta sessão resgata a memória de evento inaugural de uma nova era em nosso País e que tem como referencial a eleição de Tancredo Neves para conduzir as mudanças que o povo brasileiro desesperançado reclamava. A brusca enfermidade que vitimou o Presidente Tancredo Neves e o impossibilitou de assumir a Presidência da República traumatizou a Nação e parecia toldar os horizontes do País.

A morte, contudo, ensinou Rui Barbosa, “não divorcia: aproxima”. Se é verdade que o falecimento de Tancredo Neves causou enorme comoção, deixou, todavia, um exemplo a nos inspirar e um programa a cumprir.

É de realçar, por dever de justiça, a exemplaridade de gestos e ações de seu companheiro de jornada Senador José Sarney.

Investido na suprema Magistratura do País, o então Vice-Presidente transformou o “Compromisso com a Nação” na bíblia do Governo, adaptando o texto às mudanças do contexto e enfrentando, sem pompa, as circunstâncias.

Empossado no cargo pelo Congresso Nacional, sua primeira atitude foi referendar o Ministério que Tancredo escolhera e recomendar-lhe o pleno cumprimento de todas as diretrizes que Tancredo deixara fixadas, sem que, “nem uma só letra ou vírgula sejam tiradas sem que tudo se cumpra”, segundo prescreve o evangelista Mateus.

Cito, pela sua relevância, parágrafos do ideário legado por Tancredo, transformado em ação do governo Sarney:

Juntos assumimos hoje, perante a Nação, o solene compromisso com a democracia e a justiça. Juntos nos comprometemos a pautar-nos pela seriedade na administração da coisa pública, pela devoção no serviço do País, pelo respeito ao cidadão e pela firme determinação de preservar um povo que é digno e austero.

E mais adiante:

Se não bastasse o imperativo ético, não faltaria uma razão política maior a ditar essa postura. É que estou convencido de que a austeridade no Governo será fator decisivo para o êxito do grande projeto de transição para o regime constitucional democrático, um dos mais importantes capítulos da carta-compromisso da Aliança Democrática.

E dizia finalmente Tancredo:

Conclamo o povo brasileiro a continuar a prestar-nos seu apoio nessa difícil missão. Que cada cidadão oriente suas ações no sentido de atingirmos, na paz social e na concórdia, os altos objetivos que juntamente nos fixamos em praça pública, ao longo de nossa memorável campanha cívica pela democracia… . Que cada brasileiro, enfim, dê o melhor de si no exercício da responsabilidade intransferível de, com seu esforço consciente, plasmar para si e para os seus filhos o futuro deste País.

Dentre os objetivos fundamentais impõe-se sobrelevar a convocação da Constituinte, através de Mensagem do Presidente José Sarney ao Congresso Nacional, de que resultou a Carta de outubro de 1988, que Ulysses Guimarães chamou de “Constituição Cidadã”. Com ela, encerramos um longo, todavia exitoso, processo que assegurou ao País viver sob um autêntico Estado Democrático de Direito, restaurando ou – perdoem-me a hipérbole – instaurando, sob os auspícios da Sexta República, uma verdadeira democracia em nosso País.

A nossa transição para a democracia – ouso afirmar sem receio de contestação – foi, na segunda metade do século XX, tanto em extensão quanto em densidade, a mais bem-sucedida, mesmo se comparada com a da Espanha, cujos cânones foram fixados nos “Pactos de Moncloa”.

Sr. Presidente, Sras e Srs. Senadores, autoridades, minhas senhoras e meus senhores, ensina a filosofia, não desacompanhada da sociologia e da história, que ao desatar o nó da democracia novas demandas emergem com intensidade e não há outra resposta senão aprofundar, em sua essencialidade, o exercício da democracia. Enfim, os problemas da democracia exigem mais democracia.

Daí insistir na necessidade de conferir, na semântica dos novos tempos, urgência às reformas institucionais, cuja inadiabilidade está cada vez mais visível.

Seus enunciados, aliás, estão presentes no pacto fundador da Aliança Democrática, ao preconizar:

– É urgente a necessidade de proceder-se à reorganização institucional do País.

– É dever do Estado erradicar a miséria que afronta a dignidade nacional, assegurar a igualdade de oportunidades, propiciar melhor distribuição da renda e da riqueza, proporcionar o reencontro com os valores da nacionalidade.

Para esse fim, entre outros de seus objetivos, explicitava o pacto fundador da Aliança Democrática:

– Fortalecimento da Federação e efetiva autonomia política e financeira dos Estados e Municípios;

– Reforma tributária, como instrumento básico de realização dos objetivos de política social e econômica. Correção das desigualdades regionais e pessoais de renda;

– Desconcentração do Poder e descentralização do processo decisório. Desburocratização.

Precisamos, depois de consolidada entre nós a democracia, enquanto processo, fertilizá-la substantivamente com os instrumentos da governabilidade. É indispensável mudar o sistema eleitoral para que o voto deixe de ser “fulanizado”; vertebrar verdadeiros partidos enquanto canais de interlocução entre a sociedade e o Estado; aperfeiçoar o sistema de governo para melhorar o desempenho dos Poderes e seu relacionamento no modelo presidencialista que praticamos; redesenhar o Estado Federal para compatibilizá-lo com as exigências de descentralização, e, finalmente, revigorar as instituições republicanas, isto é, “republicanizar a República”, para eliminar a incerteza jurídica e assegurar a todos plena cidadania.

Tais medidas teriam enorme efeito não só no sistema político, mas igualmente na vida cultural, social e econômica do País e sua plena inserção na comunidade internacional.

Essa deve ser, como anunciou o Presidente Renan Calheiros, a nossa prioridade.

Há, malgrado continuados e expressivos avanços, ainda um largo território a percorrer. A esfinge nos acicata: agora ou quando? Se não nós, quem?

Sr. Presidente, a memória serve para cultuar o passado que continua a se mover, ajuda a sinalizar o futuro e nos leva a refletir sobre os valores em que se assentam os fundamentos da nacionalidade: a paz, a igualdade, a justiça, a solidariedade, a democracia e, sobretudo, a liberdade.

Pois, “a liberdade é – como dizia Dom Quixote a Sancho Pança – um dos dons mais preciosos que aos homens deram os céus”.

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