Julio Maria Sanguinetti •
Presidente do Uruguai
Eu poderia falar em portunhol, porque a nossa fronteira tem a língua da integração, conforme disse em seu tempo o Presidente José Sarney; porém, por segurança, hoje eu falarei em espanhol.
Vocês sabem que o Uruguai é um país com uma certa particularidade. A nossa história está envolvida com a história do Brasil, com a história de Portugal, com a história do Rio Grande, com a história da Argentina.
E nós sempre vivemos entre esses dois grandes países, com uma relação de permanente fraternidade, vivendo suas coisas boas e, claro, também, os seus problemas.
Ser um país pequeno entre dois grandes. Eu sempre digo que ser uruguaio não é apenas uma condição, mas sim, uma profissão.
Hoje nos propõem um olhar sobre 1985. Um olhar sobre aqueles anos. É muito bom ter essa perspectiva porque hoje já temos a possibilidade de olhar para trás.
O que era então a nossa região? O que era a América Latina, naquela época? Era um campo armado.
Na Argentina, em 1978, 79, e no Chile, houve um fim de ano dramático. Havia, nesses dois países, duas ditaduras que pareciam ter grande afinidade, e quase chegaram à guerra. Os barcos da marinha argentina saíram rumo às águas chilenas com uma ordem bélica. Essa inércia das armas acabou levando àquele drama da guerra das Ilhas Malvinas.
A América Central se desmanchava em sangue, numa guerra que custou centenas de milhares de vida.
A Nicarágua talvez seja o principal emblema dessas guerras, depois daquilo que se chamou “a Revolução Sandinista”, que nos colocou a todos frente a algo que hoje, com a perspectiva da história, com a distância histórica, acabou tendo um final feliz. Parece até um romance, mas naquele momento parecia que se configurava um Vietnam.
A Nicarágua, naquele momento, com as relações que tinha com os Estados Unidos, parecia estar criando uma situação realmente dramática como um novo Vietnam.
E poderíamos continuar falando sobre o grande problema que tínhamos aqui: o medo, a corrida armamentista que estava ocorrendo em toda a região do Pacífico. Tínhamos o Chile, o Peru, o Equador e, infelizmente, depois houve realmente um conflito militar entre o Peru e o Equador. Como resultado dessa inércia armamentista que ocorreu naqueles anos. Mas hoje, com a perspectiva da história, poderíamos lançar um olhar tranquilo sobre essa época. Como poderíamos, então, enxergar com uma nova perspectiva?
Eu gostaria de destacar o papel excepcional de Raúl Alfonsín e José Sarney. Na minha condição de uruguaio, tenho uma posição muito favorável para ser testemunha desse caso. É notório que havia uma rivalidade histórica, um preconceito histórico bastante enraizado nas forças militares até aquela época. E a superação desse preconceito, desse medo, foi condição sine qua nonpara que depois tivéssemos nosso processo de integração.
A Argentina e o Brasil, antes desse momento, não poderiam jamais ter se engajado em um processo de integração. Essa foi uma decisão desses dois grandes estadistas que para mim é um marco histórico.
A abertura das usinas de energia atômica que ocorreu naquela época na Argentina e no Brasil simbolizou aquele momento. Um novo clima porque dois países deixavam para trás aquele atavismo histórico, aquele ressentimento que existia.
Leônidas Pires Gonçalves foi um grande protagonista daquele momento, que hoje recordamos com grande alegria.
Parece que já faz muito tempo. Mas eu vivi muito isso. Durante minha vida tive muitas experiências e me lembro das dificuldades que enfrentamos no Uruguai para construir uma ponte sobre o Rio Uruguai ou para fazer uma represa. Porque havia o medo de um conflito com o exército argentino, e o Rio Uruguai era justamente a barreira para os tanques brasileiros.
Hoje enxergamos isso até com um sorriso, mas essa era a realidade. A Província de Entre Rios, uma província muito rica, estava desvalorizada em sua estrutura viária devido a esse medo, devido a essa possibilidade que hoje nos parece inverossímil, mas que até aquele momento existia, pelo menos psicologicamente na mente dos homens da época.
A América Latina mudou muito durante esse período.
Em segundo lugar, nesses anos 80, víamos também um mapa da nossa região cheio de ditadores. A década de 70 tinha sido trágica desse ponto de vista. O mapa da América Latina era justamente um mapa de ditaduras nessa época, nesses anos, de 1983 até 1990, quando se iniciou então um processo vigoroso de democratização.
Em terceiro lugar, outro destaque dessa época era o isolamento.
A América Latina, devido às suas condições políticas, às ditaduras, devido também às situações de conflitos, e sua presença naquele momento da Guerra Fria, a América Latina realmente estava isolada, em nível internacional. E tínhamos também um isolamento entre nós. Havia um isolamento entre os diferentes regimes que, independentemente de sua identidade, viviam também essa situação de preconceito e temor.
E naqueles anos em que forjamos a democracia, em que reconstruímos a democracia, os nossos países conseguiram sair do isolamento, tanto em nível regional como internacional, e foram reincorporados para sempre, pelo menos até hoje, espero que em direção ao futuro, recuperaram o seu diálogo internacional.
É por isso que sempre resisti a aceitar a expressão, ou terminologia cunhada pelos economistas para a década dos 80, muitas vezes chamada de “década perdida”. Porque vistos do ângulo econômico não foram anos de extraordinário crescimento nem de estabilidade. É uma olhada, um olhar muito parcial porque o espírito dos gloriosos anos 80 foi o que permitiu a restauração das liberdades, a consolidação das instituições, a pacificação da região, sua incorporação ao mundo global que estava por nascer e nascia e, apesar de termos sofrido em muitos daqueles anos momentos de muita instabilidade e ainda vivendo sob o perigo da inflação, foram criadas as bases para o desenvolvimento que nos permite olhar a economia de um ângulo totalmente distinto.
Esse foi o espírito dos anos 80 que indubitavelmente nos permitiu avançar com tanto vigor nesse processo de democratização.
Naturalmente, as circunstâncias foram diferentes. O processo de democratização foi diferente na Argentina, no Brasil, no Uruguai. No primeiro mandato de 83 a 85, isso também foi diferente entre Paraguai, Nicarágua e Chile, que foi o que ocorreu depois, entre 85 e 89. O processo argentino caracterizou-se primeiramente por digamos um esgotamento e decadência ou vigência, melhor dito, da ditadura anterior, que começa com o desastre das Malvinas e que permite um movimento popular muito vigoroso encabeçado pelo Presidente Alfonsín com muito brio e que levou a uma restauração democrática praticamente sem negociação. Foi uma erupção do movimento democrático que se sobrepôs a um governo militar que começava a dar sinais de claudicação.
No Uruguai foi um longo processo de negociação que de fato começou em 80 com o plebiscito, quando o governo de então propôs um sistema novo constitucionalista sob o rótulo de reinstitucionalização do País, mas que na realidade não estabelecia as condições verdadeiras para o exercício da democracia livre de ungir o governo que dali nasceria.
Da oposição ganhamos esse plebiscito com o nosso silêncio porque não havia possibilidade de falar: não tínhamos como discutir, nem tínhamos liberdade de expressão.
E apesar disto, conseguimos ganhar o plebiscito.
Quando falava há pouco o presidente do Jornal do Brasileu me recordava que justamente no Jornal do Brasilli, quando terminou a ditadura e se abriu o governo do Presidente Sarney, eu li a publicação daquela famosa ata que estabelecia e determinava o que não era permitido escrever. E entre os jornalistas proibidos eu, com muita honra, era um deles.
Não posso me esquecer desse pequeno episódio que li no Jornal do Brasil.
Foi uma fase longa e difícil, mas que permitiu em novembro de 84 a eleição de um governo democrático pleno.
A situação no Brasil foi diferente, como os senhores sabem melhor do que eu. Havia, então, um processo de eleições indiretas que pretendia, de alguma forma, estabelecer uma transição. Algo com certa afinidade com governo que terminava. E eis que surge o gênio político brasileiro, que eu chamaria a sublimação do “jeitinho brasileiro”, que permitiu conduzir aquela situação a um genial acordo político entre Tancredo Neves e José Sarney que, dentro das regras do jogo, produziu e criou a ilusão da democracia.
Este foi um momento estelar, de brilho de uma política de pacificação. Depois vimos aquela situação extremamente dramática com a doença do Presidente Tancredo Neves e as circunstâncias nas quais o Presidente Sarney teve que assumir. Foram momentos dramáticos e me lembro que estava com o Embaixador Ricupero e ele dizia: “O Brasil sempre tem que viver esses dramas: a morte de Getúlio, agora Tancredo. Por que estas coisas têm que acontecer conosco brasileiros?”
Mas passou-se a situação e passou-se para uma situação melhor. E José Sarney que disse, então, que tinha se preparado para ser o Vice discreto de um Presidente forte, acabou por ser um Presidente histórico levado pela força do destino.
Todos nos lembramos que havíamos chegado ao Brasil para a posse. Estávamos no entardecer de 14 de março, no ano de 85. Nos preparávamos para a posse e eis que a situação extremamente difícil se apresentou: um Presidente eleito que não podia assumir, momentos de grande tensão — e peço desculpas aos jovens aqui no auditório por trazer de volta o drama daqueles momentos, quem assumiria, quem não assumiria. Não se dizia, mas não queriam que assumisse o Presidente da Câmara dos Deputados ou que assumisse o Vice-Presidente. Lembro-me perfeitamente que estava com minha esposa Marta quando o chefe da segurança me chamou e disse: “Estamos vivendo uma situação muito difícil porque o Presidente eleito está gravemente enfermo e não pode assumir.” E eu digo: “Estou ciente porque acabei de ver pela televisão.” E ele me perguntou: “O Senhor entende bem português?” Respondi: “Senhor, eu, com muito orgulho, sou de Rivera.” Eu entendia tudo.
Ligamos a televisão onde se vivia aquele debate dramático até que Afonso Arinos, nas altas horas da madrugada, é despertado para que perguntassem ao famoso jurista, com a sua grande maestria no Direito, quem deveria assumir. E ele disse: “O Vice-Presidente, porque ele tinha o mesmo mandato. O Vice-Presidente é o Vice-Presidente não do Presidente, mas da República, portanto ele tem que assumir.”
E assim terminou o debate com uma sentença magistral.
No dia seguinte este Senhor (apontando para o Presidente José Sarney) tinha que assumir a extremamente difícil situação de, diante de seu Presidente enfermo, o Vice ter que assumir. Era uma situação que vinha trazendo homens de passados políticos diversos. Lembro-me perfeitamente da serenidade costumeira e do estilo costumeiro de José Sarney. Seu estilo clássico que, aliás e felizmente nunca mudou. Naquele momento comentava-se muito os paletós cruzados do Presidente Sarney, que não eram moda à época, mas felizmente esse Senhor nunca mudou e continuou sempre sendo o mesmo. E este senhor, como ele próprio disse, e disse muito bem: “A política foi o meu destino e a literatura a minha vocação.” E graças a Deus ele pôde fazer os dois.
Ele assume a Presidência naquele momento difícil de transição. E isto acontece naquele momento em que, com muita tristeza, nos despedíamos do grande estadista Tancredo Neves.
E, de repente, o Senhor Sarney, um homem de circunstância, que é um conceito de Ortega. Ninguém pode dizer melhor do que isso: “eu sou eu e minha própria circunstância” disse Ortega. Na verdade, sempre se cita a primeira parte da frase porque a segunda parte é “se eu não me salvar das circunstâncias, não me salvarei”. Portanto, coube ao Presidente Sarney assumir a circunstância e salvar a sua própria pessoa daquelas circunstâncias e produzir a grande mudança política no Brasil.
Eu diria que aquele foi um momento em que o Brasil, após muitos e muitos anos de turbulência, de confrontação, duas dimensões extraordinárias da democracia e da vida política, encontra a liberdade. O Brasil se abre a todas as dimensões que constituem a liberdade.
Mesmo que fosse para questionar o Presidente, os acordos firmados, explode uma grande liberdade.
Em segundo lugar surge uma das grandes virtudes da política, que é a paciência. Um presidente que tinha que assumir todas as tensões e continuar levando-as com grande sabedoria.
Foram três processos diferentes, mas que conduziram, afinal, a um mesmo. Havia um élan, um espírito democrático, um espírito fundamental que é o que nos permite lançar as bases de um processo de integração que nos tirou do isolamento e que foi a semente do futuro Mercosul.
Claro que aquele processo logo continuou e com características diferentes em cada lugar.
No Paraguai foi uma grande surpresa. Dentro da própria ditadura do General Stroessner se produziu um golpe, um golpe militar dentro de uma situação militar. Uma situação muito diferente de tudo que se conhecia, até duvidosa nos primeiros momentos.
Também naquele caso nos coube protagonizar um episódio muito interessante. Porque conversamos entre nós e nos perguntamos “O que quer dizer isto?” — o general Rodriguez era genro do General Stroessner e nos perguntávamos: “Aonde isto nos levará?” E o General Rodriguez realmente assumiu um papel histórico porque ele sentia que o Paraguai ia caminhando para uma violenta divisão interna e, quiçá, a uma guerra civil. E o General Rodriguez assume o seu papel histórico dentro da democracia, aquela sua condição democrática.
Continuamos nos falando e ele nos assegurou que cumpriria o seu papel. Para lá seguimos Alfonsín, José Sarney e eu, acompanhando os dois e vivenciamos aquela situação inédita. Como se disse e se dizia então era a Tríplice Aliança ao contrário, porque solenemente o General Rodriguez finca o pé em sua decisão de levar o país às eleições democráticas e nos colocou os três como testemunhas daquela decisão que tomara. Ele cumpriu e abriu aquele Paraguai historicamente isolado e com tão pouca tolerância política, de fato, com tão pouco exercício democrático, o abriu a uma situação democrática como a que nós vivenciamos e eles vivem até hoje.
Diferente, por outro lado, foi a situação da Nicarágua. Diferente também a do Chile. Porque na Nicarágua havia um governo revolucionário de inspiração marxista que vivera uma situação de conflito em toda a região da Nicarágua. Por sua vez, uma situação de conflito aberto com os Estados Unidos que gerava uma situação especial, mesmo naquele momento. E tudo aquilo mudou naquele momento, porque nós não podemos esquecer que simbolicamente em 89 terminou a Guerra Fria com a queda do Muro de Berlim. Mas ainda estávamos vivendo a Guerra Fria. Guerra que na verdade que não chamar de Fria na América Latina. Era assim nas duas grandes potências. Aqui na América Latina não era Guerra Fria. Porque essa história que começará a ser escrita agora nos dirá, nos contará, nos explicará de que forma naqueles anos fomos nós o palco dramático e sangrento para a Guerra Fria, com guerrilhas que foram alentadas e financiadas pelo Ocidente, pelo Oriente, e outros golpes de Estado que vieram do Pentágono determinando que direção deveríamos tomar. A verdade virá a público através da história. Mas, a partir de 89 muda o contexto internacional. E isto também é algo que terminou, na década de 80, abrindo uma nova etapa histórica. E também no mundo, na nossa forma de poder fazer a política.
Na Nicarágua se produziu uma situação em que o governo Sandinista acaba por aceitar a possibilidade de uma eleição, abrindo-se à democracia, mas vivendo um paradoxo muito grande porque Zamoro tem que assumir a democracia e o governo com um exército hostil que não só era um exército, mas a força política vigente, como é até hoje. Era uma situação então dificílima.
Se quiserem, podemos chamá-la de análoga à situação que viveu o Chile. Diferente, mas análoga. Porque Dom Patrício Alwyn teve que governar um exército hostil e que não apenas era um exército, mas parte de um movimento político que representava uma força muito grande na vida chilena. Com isso, ele tinha uma particularidade muito especial dentro dessa situação que tinha que ser administrada dentro da democracia para que aquela força militar, por sua vez também política, não significasse uma recaída ou uma volta ao período de ditadura.
Vamos poder dizer que por isso mesmo a situação militar não foi igual em nenhum desses países vizinhos. Porque no Paraguai, apesar do exército também ser força política por uma identificação histórica com o partido paraguaio, eles produziram uma mudança política dentro do mesmo exército onde nascera aquela mudança política. Isto era o Partido Colorado.
Diferente do que viria acontecer no Chile, na Nicarágua. Diferente do que aconteceu na Argentina, onde o Presidente Alfonsín teve que enfrentar a instabilidade, confrontações e outras situações muito delicadas, mas que felizmente, nem Sarney nem eu, Brasil e Uruguai tivemos que viver, onde as situações democrática e militar se casaram de uma maneira extraordinariamente boa.
O pequeno exercício que fiz aqui apenas nos dá uma introdução ao que deverá ser uma grande indagação sobre os gloriosos anos 80, que nos levaram e nos abriram para a democracia de hoje e que nos permitiram olhar com esperança, otimismo, com espírito de união, com integração os tempos que estão por vir, porque os desafios continuam a existir. Já não temos a Guerra Fria, mas o narcotráfico pode armar processos de violência e de desestabilização.
Por outro lado, a economia se globalizou com todos os significados que isso teve em alguns aspectos de bem-estar, mas também com a imensa problemática que trouxe para dentro de nossos países e a regeneração das crises monetárias e cambiais que produziram processos de profunda instabilidade econômica em nossos países.
Os desafios da equidade e desenvolvimento social sempre estão presentes em tudo isso. E para mim o maior desafio é a educação que é a base de toda a nossa redemocratização.
O mundo mudou, a riqueza não é a indústria, a propriedade já não é mais a terra, e hoje, propriedade e riqueza são traduzidas por conhecimento. As grandes potências, hoje, discutem e brigam muito mais pelas patentes e pelo conhecimento do que como no passado, porque aí é que está toda a riqueza. É aí que está toda a riqueza e é isso que define e determina esses momentos que nos coube viver e que nos caberá viver no o futuro. É a detenção do conhecimento.
Ainda há pouco, conversando com o presidente do Jornal do Brasil, que nos falava sobre o conhecimento, eu disse que ninguém melhor que os poetas para definir as situações. Ninguém melhor do que os poetas que o fazem 30 anos antes. T. S. Elliot, um poeta norte-americano, disse: “Que tipo de conhecimento será este que se esgota com a mera informação. Que tipo de sabedoria é esta que se esgota meramente no conhecimento?”
Hoje esse é o nosso desafio: não a informação, não o conhecimento, mas a sabedoria fundamental para saber incorporar esses dois grandes pilares em nosso processo democrático. E a batalha do nosso desenvolvimento está ocorrendo agora mesmo na formação dos nossos jovens.