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O poder moral da democracia

O poder moral da democracia

Raúl Alfonsín •

Presidente da Argentina

Tenho uma certa dificuldade para leitura. Não tenho muita intimidade com papéis. Mas, justamente devido a essas dificuldades, prefiro ater-me àquilo que eu mesmo escrevo.

Falo daquelas dificuldades que mencionou o Embaixador Ricupero. Mas eu gostaria de começar dizendo que eu não poderia iniciar essa conferência ao celebrarmos os 20 anos de nascimento da Nova República, com o início da Presidência do meu querido amigo José Sarney. Não posso esquecer que isso ocorreu depois do trágico falecimento de um homem exemplar, Tancredo Neves, que serviu em favor de um país popular e democrático com a construção da transição da democracia dentro de um processo em paz e sem renunciar às transformações substantivas que depois seriam completadas com dois fatos que me parecem fundamentais.

Em 1986 tivemos a primeira eleição com voto universal e logo depois a eleição da Assembleia que faria a nova constituição.

Como um homem da política eu não pude e não posso hoje deixar de admirar, deixar de destacar a maestria do Presidente Tancredo Neves, quando ele trouxe a força popular através da campanha das Diretas.

Assim, quero deixar aqui a minha lembrança e a minha homenagem ao Presidente Tancredo Neves que, claro, também participou muito dessa política de aproximação, amizade e integração entre o Brasil e a Argentina, que acabou originando o Mercosul.

Uma vez eleito presidente pelo Congresso e sem condições de assumir, Tancredo Neves, conforme recordou o Embaixador Ricupero, visitou Buenos Aires. Ele veio me visitar. E nessa ocasião, nós argentinos passávamos por uma situação muito difícil. O nosso poder ainda era muito precário. E a nossa esperança e o nosso próprio interesse estavam intimamente unidos à evolução democrática dos nossos vizinhos e de toda a região da América Latina.

Entendam assim a profunda satisfação com a qual celebramos aquele acordo político que permitiu eleições livres no Uruguai e a constituição de um governo que, presidido por meu amigo Julio Maria Sanguinetti, estava acompanhado pelas outras forças democráticas, fundadores e símbolos da Frente Ampla que chegou ao governo acompanhando Sanguinetti. Isso quando assinamos a Ata de Colonia para integração entre os nossos países.

Com a mesma expectativa e otimismo, acompanhamos a campanha que ocorreu no Brasil pelas Eleições Diretas, e, logo após, a consagração de Tancredo Neves e José Sarney com uma alegria que mostrava o nosso interesse como argentinos porque nós sabíamos que tudo isso ampliava as fronteiras da paz e da democracia.

Com esse ânimo nós nos encontramos com o presidente eleito do Brasil lá em Buenos Aires. Era um Presidente civil e democrático, que fortalecia a nossa própria tarefa de consolidar uma república civil e democrática, que era o meu principal objetivo, aliás quase a minha obsessão, eu diria.

Lembrem-se que durante muitas décadas houve a hipótese de conflito bélico entre a Argentina e o Brasil, da mesma forma como ocorreu aqui, conforme tão bem recordou o Presidente Sanguinetti.

Essa tremenda herança tinha que ser desmantelada somente com o poder moral da democracia. E nós conseguimos isso. Com o amparo da lei democrática, da democracia reconquistada de forma firme e rápida, deixamos no passado aquela tradição de conflitos ou até mesmo de enfrentamentos que haviam chegado às raias da violência.

Mas a reunião que tivemos com Tancredo Neves trouxe muito mais. Mostrou que havia uma necessidade comum de construir uma democracia sólida. Mas havia ainda outra realidade comum: o peso, a carga da dívida interna. Então, a partir dessa reunião, entendemos que a integração era o mecanismo, era um instrumento necessário e que era um objetivo estratégico. Dessa forma criamos um compromisso compartilhado. Isso para enfrentar a dívida externa e permitir a modernização produtiva.

Mais tarde, o meu amigo José Sarney, o grande construtor da integração, me diria que ele tinha recebido de Tancredo esse compromisso, o compromisso da integração e que era, então, o compromisso dele, incondicional. E eu dou fé que realmente José Sarney foi um arquiteto incansável daquilo que chamamos “crescer juntos”. E isso só foi possível devido à confiança que construímos mostrando esse novo caminho.

Quando nos encontramos com Sarney em Puerto Iguazu e lhe pedi que me convidasse para conhecer Itaipu, a represa que com as discussões sobre cotas tinha dado origem a um grande entrevero entre o Brasil e a Argentina, o Presidente Sarney aceitou imediatamente. Eu então senti que algo havia se rompido e algo de novo nascia. Isto era confiança, a confiança que se expressou e se manifestou quando fomos com Sarney a Bariloche e ele comprovou que nossos avanços nucleares eram pacíficos, o que foi a mesma coisa que me ocorreu quando visitei a Usina Nuclear do Brasil.

Assim vimos o embrião do atual Mercosul, que certamente implicou em uma aproximação e em uma amizade, além de uma colaboração que não se reduziu a uma relação simplesmente bilateral, mas que abraçou todos os problemas e responsabilidades que nos colocavam a região. E fez com que nos lembrássemos destas e a tivéssemos presentes em momentos que pareciam negativos e que podem ser de desilusão para alguns e fazer pensar aos mais jovens que a construção de uma integração democrática é uma utopia inalcançável.

Foram muitos e mais graves os obstáculos que, juntamente com o Presidente Sarney, tivemos que vencer, que eram enfaticamente sublinhar o que à primeira vista parece um paradoxo, uma a mais das ironias da história. A democracia e a integração cresceram, fortaleceram-se de uma forma inédita e fortaleceram nossa região na mais difícil década econômica que foi chamada de década perdida para o desenvolvimento e tivemos de enfrentar as piores dificuldades de conflitos bipolares, os problemas inflacionários e financeiros e todos os processos difíceis de nossa reconstrução democrática.

O Presidente Fernando Henrique Cardoso certa vez contou em Buenos Aires que, quando o Governador Franco Montoro assumiu o Governo de São Paulo, em dezembro de 82, chegou para participar da cerimônia um acadêmico seu amigo, acompanhado de um político argentino que naquele momento de esperança trazia a mensagem de esperança e solidariedade de seu partido, mas que aqui era desconhecido. Contou também Fernando Henrique Cardoso naquele então que um ano depois, simplesmente um ano após àquela situação, Franco Montoro, Ulysses Guimarães e o próprio Fernando Henrique haviam viajado a Buenos Aires convidados oficialmente à subida presidencial daquele político que, obviamente, era eu.

Fernando Henrique Cardoso lembrou-se da situação para sublinhar a desvinculação existente entre os políticos da região com a rapidez com que soubemos subvertê-la e revertê-la. E isto foi feito com o mérito comum e o esforço comum tão essencial para reconstrução democrática como também para pôr os alicerces do processo da integração, que hoje chamamos de Mercosul.

Naquele e neste momento em que não é possível ocultar-se que é necessário um novo impulso ao Mercosul, é justo recordar-se os antecedentes ocorridos em momentos tão difíceis.

Devemos então recapitular que o nascimento da integração foi em meio à chamada década perdida econômica. Em meio ao brutal endividamento externo. Ao projetarmos a necessidade de restabelecer os direitos humanos e as convivências civilizadas impedindo a impunidade, imersos numa América Latina novamente ameaçada pela guerra, e também numa região saqueada pela existência de autoritarismos sólidos quando não também exitosos.

E dentro dessa estrutura e desse arcabouço implementamos um processo de natureza política que conduziria à criação de um espaço comum regional, imprescindível no mundo da revolução científica e tecnológica, de forma a unir e fortalecer a capacidade produtiva e cultural dos nossos países e para depois aceder a uma economia legitimada pela atitude de criar riqueza e trabalho.

Nossos povos e os responsáveis políticos pelos mesmos soubemos entender a fraqueza e a debilidade dos mesmos. E naquele mesmo ano nos reunimos em Lima, quando assumia então o Presidente Garcia, do Peru. E aí sim entendemos o que significava para a região o perigo da crise centro-americana, que afetava o nosso interesse nacional. E de tal forma que, em outra atitude inédita, o Brasil, o Uruguai, o Peru e a Argentina constituímos um grupo de apoio aos países reunidos em Contadora: México, Venezuela e Panamá. E unimos nossas forças, provavelmente frágeis. Evitamos, dessa forma, juntamente, a guerra, conseguindo a paz e enfrentando inimigos poderosos.

Desta mesma forma, fomos construindo um a relação de confiança sólida e criativa que permitiu irmos além do objetivo inicial, que era constituir o Grupo dos 8, o Grupo do Rio, que realizou em Acapulco a primeira Reunião Auto-Convocada de Presidentes Latino-americanos.

Esta primeira vez ocorreu em 1987, tão tardiamente em 1987. E isto foi um testemunho e um símbolo de tudo que conseguimos avançar, desde então, e também de uma história latino-americana que havia privilegiado em nossos países a vinculação radial com os centros de poder mundiais e dando forças à ampliação de nossa região.

Com esta ampliação, levamos os nossos objetivos de consulta sem paixão e levamos essa integração a toda a América do Sul e o marco territorial dentro do qual este Seminário coloca esse desafio.

Parece-me útil ter recordado estas experiências, neste momento em que o Mercosul passa por tão difícil momento. E que não podemos nos esquecer que temos que encontrar uma forma de reverter essa situação e ao mesmo tempo dar novo ímpeto ao processo integrador.

Não poderia deixar escapar o fato de que esta tarefa cabe àqueles que, enquanto governo, têm essa responsabilidade, uma vez que o receberam da vontade popular. Mas todos nós estamos comprometidos, e todos temos que ter a humildade de refletir e de apresentar propostas.

Este novo século será o da consolidação dos grandes espaços regionais. E nós temos que entender isto como o arcabouço necessário, apto e capaz de fazer com que nossos povos organizem seu trabalho de modo criativo, produzindo riqueza e desenvolvimento cultural.

Porque se o século XIX foi o das Nações — enquanto era precisamente a Nação-Estado o que possibilitava o salto qualitativo e quantitativo nos processos de construção da aventura do homem —, hoje, claramente, é a região que constitui a resposta às exigências da revolução que convulsiona a ciência e a tecnologia: as comunicações e a informação. Da mesma forma como os desafios e os perigos da chamada globalização. Globalização, certamente falando a não solidária, de uma região.

Agora, se quiserem um Estado-Região da mesma forma com o que ocorreu no Século XIX, com a conformação, a formação das nações, não é uma realidade mecânica, alheia aos motivos e aos valores. E tão pouco não é positiva somente por si própria. Pelo contrário, tem que ser configurada de forma a que construa ou a que destrua. De certa forma não poderão enfraquecer aquilo que os nossos povos já avançaram, em termo de personalidade política, em domínio da natureza, sobre a qual se assenta a convivência humana.

E é precisamente por tudo isto que para nós a integração regional é um capítulo novo e essencial, uma etapa fundamental no desafio da formação dos nossos povos enquanto Nação.

Então, em outros termos, como sociedades responsáveis e orgulhosas de sua autonomia no mundo da interdependência — livres, prósperas, justas e assentadas sobre o desenvolvimento sustentável e a convivência pacífica entre vizinhos.

Desejo trazer aqui a minha própria experiência na conquista desses dois objetivos que hoje estão tão intimamente entrelaçados: a democracia e a integração.

Isto é assim e é desta forma porque esta experiência é a que me anima e explica as causas que determinam a minha perseverança, porque estou plenamente convencido de que não há nada que possa ser melhor para aprofundar a integração do que nós, que nas piores circunstâncias que vivíamos, conseguimos colocar a pedra fundamental, seguir adiante e continuar realizando feitos.

A esta integração recém-lançada fomos formando adeptos. Nossos críticos se converteram em grandes adeptos. E, naturalmente, usando gradualismo, convergência política, prudência e administração, fizemos os objetivos da integração, deixando de lado uma oportunista situação que esquecia as assimetrias da economia real e a redução do processo a uma mera esfera comercial.

Porque a integração não é apenas uma construção política. E do lado da Argentina tivemos uma escolha que era uma integração política integrativa que definiu a relação com os Estados Unidos como sendo carnais.

Face a tudo isto, o Mercosul conseguiu avançar. E em poucos anos as exportações na nossa zona tiveram um aumento de 500%. Este fortalecimento obrigou-nos a não abandonar o rumo do Mercosul, ao contrário, acentuou a sua fragilidade ao reduzir a integração econômica a um mero intercâmbio comercial.

Meu querido amigo presidente Sarney, em 2001, resumiu com grande precisão sua crítica a esse processo. Dizia: “Integração passa a ser sinônimo de rivalidade comercial, deixando de ser percebida em seu sentido mais amplo, político e estratégico que a inspirou, ou seja, um projeto de associação entre povos e produção, entre povos que agregam valor aos parceiros, habilitando-se a, conjuntamente, enfrentar os desafios da economia mundial”, disse o Presidente Sarney.

Durante a crise do Mercosul de 99, vimos que um Mercosul sólido era incompatível com a pretensão, então vigente, de fazer da Argentina uma factoringao aderir à globalização financeira e ao não dar a nossa confiança ao Mercosul. Porque no mundo da globalização não há lugar para países isolados nem para projetos autárquicos. Por isso, mais do que um Mercosul, a única solução nacional é um Mercosul. E mais Mercosul significa recuperar o nosso rumo inicial, crescer e produzir juntos, encarando juntos a globalização, respondendo conjuntamente aos desafios internacionais, buscando juntos maior eficiência e aumento da competitividade e juntos colocar os limites necessários e racionais à intromissão dos capitais voadores, ao narcotráfico, ao oligopólio, e juntos enfrentar tudo que é necessário para a nossa agricultura, a desnaturalização da Organização Mundial do Comércio e o perigo que se supõe seja a ALCA.

E com tudo isto, contra tudo isto, construir um grande espaço regional que não pode ser apenas fruto do mercado. Tem que surgir da decisão política, com objetivos políticos, que será construído a partir da política.

Isto digo como argentino e como sul-americano, celebrando cada vez que nossos governos ratificam com ambição e precisão o objetivo estratégico inicial da integração, como o estão fazendo os presidentes Lula e Kirchner, e o fizeram na Ata de Copacabana.

Não podemos nos esquecer que, se no plano econômico a vulnerabilidade é enorme, não é menor nossa debilidade em matéria cultural, face à crescente globalização que nos inunda com produtos ideológicos que têm, com frequência, influência negativa em nossa formação como Nação e como povo.

Por este caminho recebemos e continuamos recebendo mensagens que a muitos faz titubear. E que na verdade faz pensar que se chegou ao fim da história, e é iniludível a sujeição às potências econômicas. Isto não é verdade, porque o papel do Estado e as particularidades nacionais nos mostram que, na verdade, a lei do mercado das grandes potências hegemônicas não está acima de tudo. Tudo isto é falso, tão falso como são as políticas econômicas que aumentaram nossa vulnerabilidade externa. Mas não devemos cair numa infantilidade que espere dos resultados econômicos a recuperação da autoestima regional e dos valores que entre marchas e contramarchas nos fazem continuar como um povo. Pelo contrário, é necessário que haja um projeto de integração cultural, educacional e científico de grande ambição e concreto, com passos precisos de controle público estruturado e dirigido a partir da política, com objetivo claro e explícito de constituir a base para os avanços na integração econômica.

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