Alfredo Fressia•
Ensaísta e crítico literário. El País, Madri, 12 de janeiro de 2001.
Sarney, a selva alucinada
Devo confessar: não sei ler a obra narrativa de um político profissional com a inocência, com a devida “suspensão voluntária do descrédito”, que Coleridge pedia ao leitor. Ao contrário, trata-se sempre de uma leitura instalada em uma zona rarefeita de poderes: ao poder que exerce todo narrador, esse pequeno deus que cria mundos com a palavra, agregam-se outros, espúrios, literariamente pouco solidários, que emanam do exercício político e decisório, de uma biografia autoral crispada por simpatias ou por ódios e até de um quase inevitável cotejo entre o “como conta” e o “como governa” o mesmo homem.
A literatura de José Sarney sofre desse mal, aparentemente irremediável, pelo menos enquanto durar a biografia política do autor. […] É por isso que a cada novo livro do ex-presidente e atual senador, a crítica brasileira se divide, algumas vezes tentada pelo escárnio, e em muitas, perplexa não tanto pelas grandes tiragens editoriais, senão pelo êxito crítico que a obra de Sarney conhece no exterior. Seu romance de 1995, O Dono do Mar, além de ter chegado a 12 edições e de ser traduzido em oito línguas, voltou com elogios pela qual a enraivecida leitura local não esperava. O Dono do Mar foi para Lévi-Strauss uma “obra monumental”, ou “uma odisseia sobre o mar sem precedentes na literatura latino-americana”, segundo Maurice Druon. E, ainda, para o antropólogo Darcy Ribeiro, hoje falecido, “ninguém na literatura brasileira alcançou tais alturas no realismo
mágico”.
Em todo caso, o próprio Sarney não parece ignorar a duplicidade de sua situação autoral e declara publicamente que se tivesse que eleger entre a política e a literatura, elegeria a segunda. E seu último romance, Saraminda, responde por essa opção.
Trata-se de uma obra que poderia surpreender a quem somente conheça os contos do autor (Norte das Águas, 1970, ou Brejal dos Guajas e outras histórias, 1985), inscritos em um regionalismo maranhense, nordestino, mas não a quem leu seu romance de 1995, aquele relato do mar e de seus mitos, de um exacerbado “realismo mágico” e de um lirismo que o coloca ao lado do melhor da obra de García Márquez.
Em Saraminda, o autor transcende outra vez o “regionalismo”, mas dessa vez situado nas distantes fronteiras do Brasil com a Guiana Francesa, e em um erotismo que funciona como uma espécie de motor (de alta voltagem, certamente) da narração. A região do estado do Amapá, esse extremo norte, e atlântico, da selva amazônica, foi objeto de um conflito entre Brasil e França (resolvido a favor do Brasil por arbitragem suíça) devido ao ouro, descoberto em 1854, onde de qualquer modo a França continuou importante através da Société Française de l’Amérique Équatoriale.
Naquelas fronteiras até hoje pouco visíveis, onde é possível falar tanto em português como em créole, nesse “país” que vai do norte de Belém até Caiena, a capital da Guiana, e onde durante a “febre do ouro” até o começo do século, dentro do ambiente quase sobrenatural da selva e das minas, a paixão por la couleur, o outro modo de chamar o ouro, contaminava-se e até confundia-se com o erotismo. O amor do mineiro Cleto Bonfim por Saraminda, a moça comprada em um leitão num prostíbulo de Caiena exacerba-se e alucina, desmedido, com a mesma perigosa riqueza que surge nas minas: la couleur enlouquece e mata. O ouro, como o amor, comparece aqui sempre manchado de sangue. Como estrutura narrativa, Sarney acerta ao situá-la em certa imprecisão “mágica”. A violência dos acontecimentos, como o erotismo, pode surgir aqui do delírio de Clément Tamba, um moribundo num quarto de Cayena, ou de seu longo e sempre renovado diálogo com Cleto, o protagonista. Mas aqui, como em O Dono do Mar, os vivos podem estar mortos, e os mortos podem acordar com a mesma violência com que buscaram la couleur. A quase irrealidade da paisagem amazônica propicia a “irrealidade” dos personagens, um universo de homens dispostos a morrer pelo ouro, pela magia, esta literal, pela paixão sempre ingovernável.