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A Coluna do Sarney

Carnaval sem preconceito

É extremamente difícil e quase impossível quantificar os ganhos sociais numa sociedade que vive sob permanente pressão para buscar ascensão social o mais rápido possível. Felizmente agora as minorias segregadas têm o poder de mobilização e decisão que elas sempre desejaram alcançar. Confesso que fiquei — sem dados efetivos nem estudos sociológicos — bastante surpreso ao recolher do último Carnaval a sensação de que a convivência racial no Brasil tem aumentado bastante. Não sei justificar por que cheguei a essa conclusão, mas a verdade é que pretos, brancos, índios, asiáticos Continue a ler

Cotas, um caso de sucesso

No final do século passado apresentei um projeto de lei que foi aprovado no Senado e atropelado na Câmara dos Deputados depois de muitos anos. Era muito simples, tinha apenas um artigo: estabelecia uma cota mínima de 20% para a população negra no preenchimento das vagas nos concursos para investidura em cargos e empregos públicos dos três níveis do Governo, nos cursos de graduação em todas as instituições de educação superior do território nacional e nos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior. Dois anos depois, em Continue a ler

Milagres do Carnaval

Eu tinha um tio muito querido, funcionário exemplar do Banco do Brasil, sisudo no trabalho, folião no Carnaval, que gostava de uma beer nos sábados e domingos. Chamava-se Ferdinand. São dele, no folclore da família, algumas histórias pitorescas. Começo por contar que num Carnaval do Maranhão — que, diga-se, é muito animado — ele chegou a nossa casa e queria fazer sua festa lá. Não encontrando parceiro, pegou uma mesinha da sala, colocou na cabeça e saiu com ela, improvisando uma marchinha: “Essa mesa não é minha, / essa mesa é da Continue a ler

Da Alegria

Parece que da etimologia da palavra “carnaval” a única coisa certa é que se refere a carne. Seria para designar a abstinência de carne da quaresma? Ou, como queria o pai italiano de minha amiga Zélia Gattai, para afirmar que “o que vale é a carne”, jogando a origem da festa para as farras romanas ou germânicas, quando não a uma verdadeira bacanal grega? Essa origem europeia pode ser incontestável, mas basta ver a tristeza do carnaval de Veneza ou a imitação que são os carnavais que pipocam mundo afora Continue a ler

Os senados

Antônio Paulino Limpo de Abreu, Visconde de Abaeté, foi senador por 36 anos. Quando eleito, em 1847, fora juiz, ouvidor, desembargador, Ministro do Supremo Tribunal de Justiça, deputado, Presidente da Câmara dos Deputados, Presidente da Província de Minas Gerais, membro do Conselho de Estado, oito vezes ministro — depois foi mais cinco vezes ministro, além de Presidente do Conselho de Ministros. Depois presidiu o Senado do Império por doze anos. O velho Senado era diferente, conta Machado de Assis: “Nenhum tumulto nas sessões. A atenção era grande e constante. […] Continue a ler

A Casa do diálogo

Durante a maior parte de minha vida o começo do mês de fevereiro significava a abertura da Sessão Legislativa. Como acredito na “liturgia” das instituições, pois a ação concreta depende das vontades e estas do caráter simbólico dos gestos e das palavras, sempre a essas solenidades dei grande importância. Chega-se a elas com as expectativas do que será construído nos próximos meses, com a reflexão sobre como se pode contribuir para alcançar o objetivo da política, que é o estabelecimento da justiça social. Algumas vezes me coube o papel de Continue a ler

Cultura, minha causa

Por duas vezes me despedi — coisa de que não gosto — do Senado Federal: como Senador pelo Maranhão, em 14 de março de 1985; como Senador pelo Amapá, em 18 de dezembro de 2014. Da primeira vez eu me preparava para assumir a Vice-Presidência da República, acompanhando o Presidente Tancredo Neves; da segunda vez eu deixava, depois de sessenta anos, de participar da política representativa. Aconteceu, em 1985, a tragédia que levou a vida de Tancredo. Colocou-se para mim a responsabilidade de conduzir a transição democrática, e ela foi Continue a ler

Desigualdade e Justiça Social

Toda a minha vida pública teve como objetivo maior a busca da justiça social. Presidente da República, com o lema “Tudo pelo social”, com o pleno emprego — as taxas de desemprego chegaram à casa dos 2% —, programas de alimentação, criação do SUDS e do SUS, entre muitos outros, muitos milhões de brasileiros saíram da linha de pobreza. Quando apoiei o Presidente Lula em seus primeiros governos tive a satisfação de ver a prioridade à área social e ao combate à fome. Agora, mais uma vez, concordo inteiramente com Continue a ler

O ataque à democracia

Estarrecido, o Brasil assistiu, no domingo, ao primeiro ataque simultâneo aos Três Poderes. Nossa História tem alguns episódios de ataques a um ou outro Poder, em geral durante os golpes — ou tentativas de golpe — de Estado que marcam nosso caminho para a estabilidade democrática. Nunca, no entanto, houve qualquer movimento que se parecesse com a selvageria do bando de arruaceiros que atingiu agora o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. A Assembleia Constituinte e Legislativa de 1823 foi fechada por militares a mando Continue a ler

Ano que vai, ano que vem

O tempo é algo em que vivemos, com que não nos conformamos e que festejamos. Os versos de T. S. Eliot, que sempre cito, dizem tudo: “O tempo presente e o passado / estão ambos talvez no tempo futuro, / e o tempo futuro está contido no tempo passado.” Já o Padre Vieira explicava que “se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é o futuro do passado, e o Continue a ler

O foguete e o teto

Quando eu era Governador, o Brigadeiro Délio Jardim de Matos deu-me uma notícia que aumentou a minha taquicardia e encheu de esperanças todo o Maranhão. A FAB estava escolhendo o local para erguer uma nova base capaz de lançar foguetes, para não termos somente uma — Barreira do Inferno, no Rio Grande do Norte —, pequena e limitada. Atendia também ao provérbio popular: “Quem tem uma não tem nenhuma”. Entre os lugares em estudo estavam o Município de Amapá, no então Território do Amapá. Entre os outros sítios aparecia Alcântara, Continue a ler

O Tribunal das Contas

É sempre difícil ter uma medida exata do brasileiro a que o País ficou devendo mais do que a qualquer outro, pois por dez vezes lhe recusou a Presidência, cargo a que ele dera a primazia e a grandeza. Filho de político prestigiado, mas pobre, fez-se advogado, político, escritor. Partilhou com Nabuco as causas da abolição e do federalismo; mas vindo o golpe republicano, ocupou sozinho o largo vazio do Estado de Direito, que reinstituiu com seu projeto de constituição, e os negócios públicos, no Ministério da Fazenda. O Senado Continue a ler

Tempo de chegança

Advento é sinônimo de Esperança — a esperança da chegada do Menino Salvador. Ainda se faz, em muitos lugares do Brasil, as cheganças, visitas com autos e danças que elevam as expectativas do novo tempo. Houve tempo — é lembrança de velho — em que a celebração do Natal não era de expectativa de vendas comerciais, mas de intensa aproximação familiar, focada na figura frágil de um recém-nascido, do Recém-Nascido na humildade absoluta de uma manjedoura. Durante muitos séculos, como se sabe, a festa da Epifania, da manifestação divina, era Continue a ler

Crise na democracia americana

A  última sucessão presidencial americana mostrou fatos que ninguém jamais imaginou pudessem acontecer nos Estados Unidos: negação da lisura das eleições, invasão do congresso para evitar a diplomação do eleito e a troca de afirmações contrárias ao sistema democrático constituíram uma surpresa a nós que pensávamos que a democracia americana era sólida. A chave da construção dos founding fathers é de que o embate das forças, quando é grande o tamanho da amostra, gera o equilíbrio. Foi o que descreveu Tocqueville, no seu tratado clássico sobre a democracia nos Estados Continue a ler

Os Corações da Democracia

A democracia tem dois corações: o sistema representativo e a liberdade de imprensa. Afonso Arinos, certa vez, quando conversávamos sobre a Constituição americana e a formação do Senado, lembrou que a questão se colocara desde a abertura dos debates da Convenção de Filadélfia, no dia 29 de maio de 1787, inserida pelo Projeto de Virgínia. Todos concordaram com a ideia de duas casas, à maneira inglesa. A grande dúvida era como conciliar o poder dos grandes e dos pequenos Estados. Na sua primeira Constituição cada Estado tinha poder igual, uma Continue a ler

O Negro Cosme

Comemorou-se anteontem o dia da raça negra, e todas as homenagens foram para Zumbi. Eu sempre defendi que elas deviam ser divididas com Negro Cosme, do Maranhão, que fez um dos maiores quilombos do Brasil e, segundo João Francisco Lisboa, fundou a única escola num quilombo. Negro Cosme, como era chamado, tinha um ideário de educação e liberdade, lutou na guerra da Balaiada e contra a escravidão e terminou mártir e enforcado sem direito à anistia, chamado de “infame”. Na busca da necessária, atrasada e cada vez mais urgente reparação Continue a ler

As Lágrimas de Lula

O Padre António Vieira, em Roma, diante da rainha Cristina da Suécia, defendeu que o mundo era mais digno das Lágrimas de Heráclito que do Riso de Demócrito. Argumentava o já idoso jesuíta: “Quem conhece verdadeiramente o mundo há de chorar; e quem ri, ou não chora, não o conhece.” Falando a parlamentares em sua primeira visita a Brasília depois da eleição, o Presidente Lula disse que consideraria justificada a sua existência se todas as crianças brasileiras fizessem, ao fim de seu governo, três refeições diárias — e chorou. As lágrimas Continue a ler

O Brasil dividido

Os problemas do Brasil atravessam o tempo sem solução. Para ilustrar os riscos dessa imobilidade, repito aqui, com os elementos da época — final de outubro de 2014 —, um dos muitos artigos em que tratei do tema da divisão do País: “A eleição contabilizou uma hipoteca séria que vai marcar o futuro governo: um país dividido. Carlos Drummond de Andrade escreveu que vivíamos um ‘tempo de partido, / tempo de homens partidos’. Estamos divididos, na pequena diferença do resultado entre os candidatos, entre pobres e ricos, Nordeste e Sudeste, Continue a ler

Voto pela Democracia

Quando, em janeiro de 1985, Tancredo Neves e eu fomos eleitos por um grande acordo da sociedade, tínhamos muito claro um compromisso: a transição para a democracia. A partir da eleição é que, no espaço cedido pela Fundação Getúlio Vargas, começou-se a detalhar números e tarefas. Antes de janeiro a tarefa não apenas era impossível por não dispormos dos dados reais sobre o funcionamento do governo, mas sobretudo porque a dimensão do que se decidiria na eleição era política e institucional, num nível superior de decisão: estava em jogo o Continue a ler

Amazônia

Um dos maiores artistas plásticos do mundo é brasileiro: Sebastião Salgado. Sua dimensão ultrapassa a da própria e excepcional produção artística para atingir um universo de paradigma ético de alcance universal e intemporal. Grandes, extraordinários artistas plásticos povoam o espaço sensorial da verdadeira poiesis, o ato que permite ao homem criar um ser original, no instante em que nossa liberdade mais se aproxima do Criador. Há uns poucos, no entanto, que levam a expressão além da apreciação estética para nos imergir na dimensão dos questionamentos da verdade e do papel Continue a ler

Eleição majoritária

A questão da legitimidade do mandato nos cargos executivos é velha como a República. A Constituição de 1891 definia, em seu artigo 47, que “o presidente e o vice-presidente da República serão eleitos por sufrágio direto da Nação, e maioria absoluta de votos”. Sabemos que logo foram adotadas as providências para que isso acontecesse: Prudente de Moraes foi eleito com 88% dos votos; Campos Sales, com 91%; Rodrigues Alves, com 93%; Afonso Pena, com 98%; o Marechal Hermes da Fonseca, com 65% — Rui Barbosa teve a maior votação de Continue a ler

A Revolução dos Artesãos

As desgraças são desgraçadas, não as desejemos nem deixemos de tentar evitar que se repitam. Na Covid-19, por exemplo, houve grande avanço na tecnologia das vacinas. É claro que o custo das vidas que se perderam ou das sequelas que ficaram foi altíssimo em valores humanos. Quando as condições de trabalho dos cientistas no Brasil tinham levado ao exílio um grande número deles, insisti no esforço para promover o retorno dos cérebros ao País. E, quando fui Presidente da República, aumentei várias vezes o investimento em ciência, tecnologia, inovação, dei Continue a ler

Francisco Dornelles

Minha longa amizade com Tancredo Neves trouxe-me outra amizade com um grande homem público: Francisco Dornelles, seu sobrinho e pessoa de sua absoluta confiança. Tributarista de sólida formação, acompanhou Tancredo em Minas e no Planalto, onde firmou seu conceito de seriedade e competência. A Secretaria da Receita Federal, que assumiu no começo da abertura do regime militar, foi-lhe entregue por ser o mais preparado para o cargo. Veio a transição. Durante a construção da Aliança Democrática para viabilizar a eleição de Tancredo Neves, sua ajuda, costurando pontes e dando ao Continue a ler

História de Rádio

A história do rádio no Brasil começou com a paixão de um homem eminente: Edgar Roquette-Pinto, cientista e pioneiro, explorador e professor, escritor e desenhista, um dos grandes nomes da Academia Brasileira de Letras. Jovem médico, tornou-se professor de antropologia, de história natural, de fisiologia. Logo foi o braço direito do Marechal Rondon e fez o que ainda não tinha sido feito: gravou e fotografou e filmou os povos contactados na expedição a Rondônia. Suas observações científicas se espalham por todos os domínios: da notação musical à geológica, da sociologia Continue a ler

A Rainha

Morreu a Rainha Elizabeth II. A notícia estava redigida, mas há um sentimento generalizado de perda que corresponde a sua presença no imaginário universal desde o fim da II Guerra Mundial, ainda antes de ser rainha. Tinha sido preparada para a função, mas isso não diminui o extraordinário esforço para exercê-la com a contenção e a disciplina necessárias ao Reino Unido. Ela deixa o exemplo de que o dever com o Estado passa, muitas vezes, à frente do comportamento pessoal. É o que chamei de liturgia do cargo — e Continue a ler

João Paulo II e Gorbachev

O mundo perdeu um grande estadista. Contou-me Dom Mauro Morelli que, ao felicitar o Santo João Paulo II pelo trabalho que tinha feito em favor da queda do Muro de Berlim, evitando que o mundo se confrontasse com as duas ideologias, que certamente terminariam na guerra nuclear, o Papa, humildemente, respondeu: “Não. O responsável foi o Mikhail Gorbachev.” Fez uma pausa: “Mas eu dei um empurrãozinho.” A Humanidade deve a Mikhail Gorbachev o fim do Estado concentracionário comunista, feito que só se compara ao de Winston Churchill ao derrotar — Continue a ler

A Ressalva

Alexis de Tocqueville, em sua clássica e famosa obra, “A Democracia Americana”, que já caminha para dois séculos de sua primeira edição (1835), fez a apologia do regime praticado nos Estados Unidos, único no mundo com suas características, até então, e disse de suas grandes e inovadoras virtudes. Tão boas que essas instituições se espalharam no mundo inteiro, inclusive no Brasil, onde a República, sob a inspiração de Rui Barbosa, moldou a Constituição de 1891 com o domínio das ideias civilistas dos direitos individuais e do poder político, síntese de Continue a ler

Partidos Repartidos

Volto ao tema da última semana. Os partidos no Brasil datam da primeira metade do século XIX. Os dois partidos do Império, Liberal e Conservador, de luzias e saquaremas, funcionaram sob o punho autocrático do Poder Moderador. Todas as vantagens do parlamentarismo ficavam nubladas por D. Pedro II quando dissolvia os ministérios não pela vontade da maioria, mas por seu próprio juízo. Foi a advertência que lhe fez Nabuco, que ninguém pode acusar de hostil ao regime. Na República Velha os partidos eram estaduais e tinham dono — e esses Continue a ler

Partidos sem Partidos

É sabido que a ideia de partidos horrorizava os Founding Fathers dos Estados Unidos. A frase de Jefferson — que criou com Madison o que é hoje o Partido Republicano — é dura: “Se só pudesse ir para o Céu com um partido, eu preferiria não ir.” Eles conheciam bem os estudos de Edmund Burke e David Hume sobre os partidos ingleses, mas partilhavam, de certo modo, o preconceito de Washington e Adams, que acreditavam na unidade do interesse público. Os partidos americanos surgiram logo que começou a funcionar a Continue a ler

Republicanos e Federalistas

Hoje, República ganhou um status que nunca tinha tido na História do Brasil. Não falo do exercício do sistema de governo em si, mas da palavra republicano, que no Império nem na propaganda republicana era usada. No próprio Manifesto Republicano de 1870 a palavra só é usada no título do documento e do partido que se fundava. Seguia-se o exemplo americano, em que os fundadores, em seus debates sobre a Constituição, foram marcados pelo título de “federalistas” dado aos artigos de Madison, Hamilton e Jay, enquanto “republicano” era usado em Continue a ler