Ontem o Papa Francisco divulgou a carta apostólica Grandeza e Miséria do Homem, louvando aquele que fez os mais violentos ataques contra a Companhia de Jesus, a que ele pertence: Blaise Pascal. O motivo é a comemoração dos quatrocentos anos de nascimento desse gênio precoce que marcou profundamente a cultura francesa — a cultura universal. Sua história parece ficção. Filho de um funcionário público, órfão da mãe aos três anos, foi um menino doente, que estudou em casa. O pai, temeroso com a curiosidade do filho sobre a natureza das coisas, Continue a ler
Há muita polêmica sobre responsabilidades pela guerra na Ucrânia, que se faz ser um caso de luta entre o bem e o mal. Essa visão é comum em qualquer guerra, e estas são aceitas como uma prática normal, uma maneira de resolver os conflitos. Como a maioria das nações, o Brasil já enfrentou a guerra externa e a guerra intestina. Pagou por isso um preço enorme, mas incontável mesmo é o que pagaram os mortos e suas famílias. Esse preço em vidas humanas desaparece como estatísticas, mas as pessoas são Continue a ler
A grande jornalista Dorrit Harazin, que certamente tem um dos mais límpidos e melhores estilo da crônica brasileira, levanta esta semana um tema fundamental, o da liberdade do livro. Ela examinou neste último fim de semana o contraste entre como o governador do Illinois, J. B. Priktzer, e o da Flórida, Ron DeSantis, tratam o livro — um como instrumento da promoção cultural, outro como instrumento do preconceito e do facciosismo político. A ideia da censura está ligada à do domínio. Ela foi praticada desde a antiguidade. O próprio nome Continue a ler
Dizem que a imprensa vive de crises e dramas; o lado positivo dos acontecimentos raramente tem a mesma cobertura. Há, sem dúvida, alguma verdade nisso. Mas há também a exceção da verdade, para prevenirmos desde já o que poderia ser uma calúnia. Eu, por exemplo, já escrevi algumas dezenas de textos em que o título contém a palavra “crise”. É que o Brasil tem a crise enraizada na sua estrutura política. A Independência nasceu da crise do Reino Unido, que foi desunido pela vontade portuguesa de que voltássemos a ser Continue a ler
Temos uma tendência a pensar que os anos são bons ou maus, mas, parafraseando Ortega y Gasset, podemos dizer que os anos são os anos e suas circunstâncias. Falei nas últimas semanas de dois bicentenários de nascimento, o do Parlamento brasileiro e o de Gonçalves Dias. Ali mesmo na velha cidade de Caxias, no Alto Itapicuru, onde nasceu a 10 de agosto o filho de Dona Vicência que seria o maior poeta brasileiro, havia poucos dias — no dia 31 de julho — tinham se rendido as tropas portuguesas comandadas Continue a ler
Aproxima-se o bicentenário de nascimento de Gonçalves Dias. Haverá festa, aqui e ali, mas não vejo programada a grande homenagem que o Brasil deve a seu primeiro grande poeta. Ele morreu muito moço, afogado, quando chegava de volta ao Maranhão. Voltava para morrer de vários males, o principal a tuberculose, e estava já agonizante. Na véspera, avistada a linha da costa, pedira que o levassem ao convés para ver seu Brasil, seu Maranhão — e desmaiou de emoção! Mestiço, filho natural, baixinho — “pequeno, baixo, ligeiro”, disse Machado de Assis Continue a ler
Quem examina o bicentenário do Parlamento encontra uma figura onipresente, maior que os acontecimentos, a quem não se dá o valor devido e que, embora seja frequentemente mencionado, não é ouvido. Falo de José Bonifácio de Andrada e Silva. A obra de José Bonifácio, muito fragmentada, talvez seja em parte responsável por isso. Cientista, grande parte de seus papéis tratam de ciências e aplicação de ciências; outro tanto são documentos oficiais, marcados pelos limites do fato — sua outra face era ser essencialmente um homem de ação. Mas uma parcela Continue a ler
O dia 3 de maio de 1823 foi, segundo dois dos protagonistas do dia — o que discursava, Pedro do Brasil, imperador por ter feito a independência, e o principal redator do discurso, José Bonifácio de Andrada e Silva — “… o dia maior que o Brasil tem tido, dia em que ele pela primeira vez começa a mostrar ao mundo que é Império livre”. Essa afirmação era uma reafirmação. Já desde o dia 11 de janeiro do ano anterior as leis portuguesas precisavam do reconhecimento do Príncipe Regente. Já Continue a ler
No dia 17 de abril de 1823 realizou-se a primeira sessão preparatória da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil. Começava a funcionar a democracia brasileira. A mesa interina tinha como presidente o Bispo capelão-mór, D. José Caetano da Silva Coutinho, e como secretário Manuel José de Sousa França, ambos da bancada da Capital. O prelado era de formação pombalina, mas pendia para os liberais. O Brasil vivia o confronto entre os que José Honório Rodrigues chamou de “construtores” — com cérebro e comando de José Bonifácio de Continue a ler
A Constituição consagrou um princípio relativamente novo: o da ação afirmativa. De uma forma aparentemente contraditória, ele aparece inicialmente no art. 3º, ao colocar entre os objetivos fundamentais da República o “bem de todos”, sem “quaisquer formas de discriminação”. Ora, a leitura deste inciso deve ser vista com a ótica do enunciado de Rui Barbosa de que a igualdade consiste em tratar desigualmente os desiguais. No art. 4º nossa Carta repudia o racismo; no 5º, veda e pune a discriminação e o racismo (XLI e XLII), com “aplicação imediata”. Mais Continue a ler
O paroxismo da violência, mesmo diante da sombria perspectiva histórica, nos atinge como um raio, gerando uma carga de emoções difíceis de suportar. Tivemos duas dores estreitamente ligadas, na semana que passou. A primeira é de agora, será absorvida pela sociedade, mas não pelas famílias das vítimas, logo que se apague o clarão de seu relâmpago. É a brutalidade desmedida e monstruosa contra os pequeninos de Blumenau. A segunda é eterna, é a imolação de Jesus Cristo, penetrado da condição humana até ao abandono pelo Pai. Há sessenta anos eu Continue a ler
Como intelectual sempre tive uma preocupação humanista nas minhas decisões, preocupando-me não apenas em melhorar a sorte do povo brasileiro como também a de toda a Humanidade. Assim, três coisas me enchem de orgulho. A primeira, ter acabado com a corrida nuclear na América do Sul, onde Brasil e Argentina tinham uma disputa histórica. Assim, juntamente com Raul Alfonsín, então Presidente da Argentina, encerramos essa disputa: ele me levou para visitar a Usina de Pilcaniyeu, na Argentina, e eu o trouxe para visitar a Usina de Aramar, selando a confiança Continue a ler
Ao longo de minha vida, fosse como Presidente da República ou no Parlamento, nunca abandonei minha preocupação com o Direito e a Lei, o que expressei não só em palavras, mas apresentando ou relatando centenas de projetos. Meu objetivo foi sempre a busca da Justiça Social, nas mais diversas formas, como ao relatar a Emenda nº 11, que acabou com o AI-5, ao propor a Lei de Proteção às Pessoas com Deficiência, a Lei da distribuição gratuita de remédios contra a AIDS, a reforma eleitoral para criação do voto distrital, Continue a ler
Sempre tive uma boa memória. Quando falha fico preocupado. Pois não é que esta semana ela me fez uma que quase me leva ao pânico? Felizmente para lembrar tive a ajuda de Tereza Cruvinel, brilhante jornalista a quem nos ligam laços de afeição desde que ela chegou a Brasília. Era o dia 15 destes idos de março. Eu curtindo uma dor lombar destas que nos levam a só pensar em analgésico. O telefone toca. Atendo. Era Tereza, com toda a sua delicadeza a parabenizar-me: — “Sarney, depois de outros que Continue a ler
No Dia Internacional da Mulher a Câmara dos Deputados deu um grande passo: aprovou o projeto das deputadas Maria do Rosário, Rejane Dias, Professora Rosa Neide, Gleisi Hoffmann, Natália Bonavides, Luizianne Lins, Benedita da Silva e Erika Kokay criando uma pensão para os filhos ou dependentes menores de mulheres vítimas de feminicídio, um crime horrendo. Lembremos que muitas vezes as vítimas de feminicídio já sofreram outras agressões punidas pela Lei Maria da Penha, um marco na proteção às mulheres, mas que não pode resolver por si só as situações de Continue a ler
É extremamente difícil e quase impossível quantificar os ganhos sociais numa sociedade que vive sob permanente pressão para buscar ascensão social o mais rápido possível. Felizmente agora as minorias segregadas têm o poder de mobilização e decisão que elas sempre desejaram alcançar. Confesso que fiquei — sem dados efetivos nem estudos sociológicos — bastante surpreso ao recolher do último Carnaval a sensação de que a convivência racial no Brasil tem aumentado bastante. Não sei justificar por que cheguei a essa conclusão, mas a verdade é que pretos, brancos, índios, asiáticos Continue a ler
No final do século passado apresentei um projeto de lei que foi aprovado no Senado e atropelado na Câmara dos Deputados depois de muitos anos. Era muito simples, tinha apenas um artigo: estabelecia uma cota mínima de 20% para a população negra no preenchimento das vagas nos concursos para investidura em cargos e empregos públicos dos três níveis do Governo, nos cursos de graduação em todas as instituições de educação superior do território nacional e nos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior. Dois anos depois, em Continue a ler
Eu tinha um tio muito querido, funcionário exemplar do Banco do Brasil, sisudo no trabalho, folião no Carnaval, que gostava de uma beer nos sábados e domingos. Chamava-se Ferdinand. São dele, no folclore da família, algumas histórias pitorescas. Começo por contar que num Carnaval do Maranhão — que, diga-se, é muito animado — ele chegou a nossa casa e queria fazer sua festa lá. Não encontrando parceiro, pegou uma mesinha da sala, colocou na cabeça e saiu com ela, improvisando uma marchinha: “Essa mesa não é minha, / essa mesa é da Continue a ler
Parece que da etimologia da palavra “carnaval” a única coisa certa é que se refere a carne. Seria para designar a abstinência de carne da quaresma? Ou, como queria o pai italiano de minha amiga Zélia Gattai, para afirmar que “o que vale é a carne”, jogando a origem da festa para as farras romanas ou germânicas, quando não a uma verdadeira bacanal grega? Essa origem europeia pode ser incontestável, mas basta ver a tristeza do carnaval de Veneza ou a imitação que são os carnavais que pipocam mundo afora Continue a ler
Antônio Paulino Limpo de Abreu, Visconde de Abaeté, foi senador por 36 anos. Quando eleito, em 1847, fora juiz, ouvidor, desembargador, Ministro do Supremo Tribunal de Justiça, deputado, Presidente da Câmara dos Deputados, Presidente da Província de Minas Gerais, membro do Conselho de Estado, oito vezes ministro — depois foi mais cinco vezes ministro, além de Presidente do Conselho de Ministros. Depois presidiu o Senado do Império por doze anos. O velho Senado era diferente, conta Machado de Assis: “Nenhum tumulto nas sessões. A atenção era grande e constante. […] Continue a ler
Durante a maior parte de minha vida o começo do mês de fevereiro significava a abertura da Sessão Legislativa. Como acredito na “liturgia” das instituições, pois a ação concreta depende das vontades e estas do caráter simbólico dos gestos e das palavras, sempre a essas solenidades dei grande importância. Chega-se a elas com as expectativas do que será construído nos próximos meses, com a reflexão sobre como se pode contribuir para alcançar o objetivo da política, que é o estabelecimento da justiça social. Algumas vezes me coube o papel de Continue a ler
Por duas vezes me despedi — coisa de que não gosto — do Senado Federal: como Senador pelo Maranhão, em 14 de março de 1985; como Senador pelo Amapá, em 18 de dezembro de 2014. Da primeira vez eu me preparava para assumir a Vice-Presidência da República, acompanhando o Presidente Tancredo Neves; da segunda vez eu deixava, depois de sessenta anos, de participar da política representativa. Aconteceu, em 1985, a tragédia que levou a vida de Tancredo. Colocou-se para mim a responsabilidade de conduzir a transição democrática, e ela foi Continue a ler
Toda a minha vida pública teve como objetivo maior a busca da justiça social. Presidente da República, com o lema “Tudo pelo social”, com o pleno emprego — as taxas de desemprego chegaram à casa dos 2% —, programas de alimentação, criação do SUDS e do SUS, entre muitos outros, muitos milhões de brasileiros saíram da linha de pobreza. Quando apoiei o Presidente Lula em seus primeiros governos tive a satisfação de ver a prioridade à área social e ao combate à fome. Agora, mais uma vez, concordo inteiramente com Continue a ler
Estarrecido, o Brasil assistiu, no domingo, ao primeiro ataque simultâneo aos Três Poderes. Nossa História tem alguns episódios de ataques a um ou outro Poder, em geral durante os golpes — ou tentativas de golpe — de Estado que marcam nosso caminho para a estabilidade democrática. Nunca, no entanto, houve qualquer movimento que se parecesse com a selvageria do bando de arruaceiros que atingiu agora o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. A Assembleia Constituinte e Legislativa de 1823 foi fechada por militares a mando Continue a ler
O tempo é algo em que vivemos, com que não nos conformamos e que festejamos. Os versos de T. S. Eliot, que sempre cito, dizem tudo: “O tempo presente e o passado / estão ambos talvez no tempo futuro, / e o tempo futuro está contido no tempo passado.” Já o Padre Vieira explicava que “se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é o futuro do passado, e o Continue a ler
Quando eu era Governador, o Brigadeiro Délio Jardim de Matos deu-me uma notícia que aumentou a minha taquicardia e encheu de esperanças todo o Maranhão. A FAB estava escolhendo o local para erguer uma nova base capaz de lançar foguetes, para não termos somente uma — Barreira do Inferno, no Rio Grande do Norte —, pequena e limitada. Atendia também ao provérbio popular: “Quem tem uma não tem nenhuma”. Entre os lugares em estudo estavam o Município de Amapá, no então Território do Amapá. Entre os outros sítios aparecia Alcântara, Continue a ler
É sempre difícil ter uma medida exata do brasileiro a que o País ficou devendo mais do que a qualquer outro, pois por dez vezes lhe recusou a Presidência, cargo a que ele dera a primazia e a grandeza. Filho de político prestigiado, mas pobre, fez-se advogado, político, escritor. Partilhou com Nabuco as causas da abolição e do federalismo; mas vindo o golpe republicano, ocupou sozinho o largo vazio do Estado de Direito, que reinstituiu com seu projeto de constituição, e os negócios públicos, no Ministério da Fazenda. O Senado Continue a ler
Advento é sinônimo de Esperança — a esperança da chegada do Menino Salvador. Ainda se faz, em muitos lugares do Brasil, as cheganças, visitas com autos e danças que elevam as expectativas do novo tempo. Houve tempo — é lembrança de velho — em que a celebração do Natal não era de expectativa de vendas comerciais, mas de intensa aproximação familiar, focada na figura frágil de um recém-nascido, do Recém-Nascido na humildade absoluta de uma manjedoura. Durante muitos séculos, como se sabe, a festa da Epifania, da manifestação divina, era Continue a ler
A última sucessão presidencial americana mostrou fatos que ninguém jamais imaginou pudessem acontecer nos Estados Unidos: negação da lisura das eleições, invasão do congresso para evitar a diplomação do eleito e a troca de afirmações contrárias ao sistema democrático constituíram uma surpresa a nós que pensávamos que a democracia americana era sólida. A chave da construção dos founding fathers é de que o embate das forças, quando é grande o tamanho da amostra, gera o equilíbrio. Foi o que descreveu Tocqueville, no seu tratado clássico sobre a democracia nos Estados Continue a ler
A democracia tem dois corações: o sistema representativo e a liberdade de imprensa. Afonso Arinos, certa vez, quando conversávamos sobre a Constituição americana e a formação do Senado, lembrou que a questão se colocara desde a abertura dos debates da Convenção de Filadélfia, no dia 29 de maio de 1787, inserida pelo Projeto de Virgínia. Todos concordaram com a ideia de duas casas, à maneira inglesa. A grande dúvida era como conciliar o poder dos grandes e dos pequenos Estados. Na sua primeira Constituição cada Estado tinha poder igual, uma Continue a ler