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Claude Couffon: sobre “Saraminda”

Claude Couffon: sobre “Saraminda”

Claude Couffon•

Escritor. Prefácio da edição francesa, 2002.

 

Jogo da memória e da sedução

Hei-nos transportados ao coração de uma Guiana decadente que “vegeta na miséria da canela e paus-de-tinta”, há mais de um século, depois em algum lugar entre o Oiapoque e o estuário do Amazonas, sobre um território contestado entre a França e o Brasil, um episódio hoje um tanto esquecido.

Mas a História não aparece senão em filigranas numa narração consagrada à loucura dos garimpeiros. É a aventura de cada personagem que retraça o destino fabuloso e lamentável da república fantasma do Cunani, nascida do sonho do ouro.

O ouro, chamado pelo nome saboroso de “la couleur”, é o verdadeiro protagonista desta saga amazônica. “La couleur” é feita de carne e sangue; ela é voraz e caprichosa e desfruta dos homens e de seus apetites para desaparecer tão misteriosamente como chegou.

Saraminda seria sua imagem feminina: nem mulher nem espírito, nem virgem nem puta, nem vegetal nem animal; ela é tudo isso ao mesmo tempo. Seu corpo liso de índia e seus seios dourados deixam obcecados os homens assim como os espíritos da floresta e dos riachos que os cercam por toda parte.

Seu destino é seduzir o senhor da mina, o negro aventureiro, o homem de mãos manchadas de sangue e sobretudo o mensageiro da França cuja palidez e os olhos azuis exóticos a fascinam. Mas sua sensualidade ingênua e caprichosa desafia perigosamente as leis do garimpo. Intrusão incômoda de um novo mundo inocente e perverso no meio de um murmúrio sórdido de corpos enlameados que não rejeitaria um Sebastião Salgado.

Universo corroído pelo tempo, supersticioso, brutal aquele dos garimpeiros esgotando-se na busca do enriquecimento, escravos de um senhor, o veio, que se deve venerar como uma divindade cruel e embebedar cada dia para escavar suas entranhas.

Universo fechado também onde a exuberância hostil da floresta serve de barreira a uma prisão voluntária de onde não se sai incólume.

Por toda parte, a realidade cede o passo à miragem, sobretudo quando a imaginação do homem se mescla a ela.

Vê-se ali surgir, abaixo dos barrancos, casas “créoles” em pau-rosa, caleches e liteiras circulam nas veredas talhadas a facão, cadáveres decapitados flutuam entre as árvores a reclamar suas cabeças.

O sórdido convive familiarmente com o maravilhoso. Os vivos conversam com os defuntos dos quais se aprende a morte ao virar uma página — mas isso não tem grande importância.

Nem o tempo nem o espaço estão fechados nos limites estreitos da realidade tangível. Não mais se trata do tempo histórico, mas daquele da memória que zomba de qualquer cronologia e que se desenrola sinuoso e imprevisível como a vegetação local. A narrativa é construída a partir de lembranças trocadas entre um moribundo guianense, Clément Tamba, e a sombra de seu amigo brasileiro, Cleto Bonfim, morto há anos. Delírio ou diálogo verdadeiro que tem por testemunha a presença discreta de uma companheira resignada? Os personagens surgem pouco a pouco do esquecimento, tomam consistência, sofrem e esperam para convergir ao redor da figura emblemática e portanto bem carnal de Saraminda.

A estrutura em mergulhos responde a esse movimento concêntrico da memória e ao aprisionamento barroco do cenário.

O diálogo entre Tamba e Bonfim emoldura, de um ato a outro, as histórias cruzadas de Saraminda e Kemper, o bretão, as do Calçoene e a sua própria vida. O passado é escavado, explorado como a terra do garimpo. Balizas são postas, imediatamente. Só se apreende a princípio fragmentos dispersos, um nome, um lamento, um grito de raiva e um sabre feito de ouro e de pedras preciosas, instrumento de sacrifício escondido no fundo de cofre forte que se abre como se faria com uma memória fixada. Os acordes de um velho piano “de cordas quebradas” pontuam essa busca.

Saraminda só aparece no capítulo 4, mas o jogo já está feito. É ela quem dirige o baile e ela o conduzirá até o fim.

Os narradores são múltiplos: Sarney, Clément, Cleto, Saraminda e Kemper. Seus testemunhos dialogam e se entrecruzam, dando assim carne e alma à narrativa. Seus retratos respectivos de Saraminda se misturam como num jogo de espelhos e, baralhando o reflexo de uma imagem cedo demais fixada, revelam uma personalidade sedutora e inquietante, em conformidade à natureza que a rodeia: “A minha alma era como se fosse a floresta. Misteriosa, tentadora, bela, cheia de árvores de todas as espécies e formas, perigosa pelas maldades que me habitavam… Minha alma de mulher estava como uma onça traiçoeira, feroz, devoradora, forte, senhora de todas as ciladas. Minha alma era como as flores: perfuma, alegra, embeleza, mas apodrece.”

A superposição das narrativas tece em torno dos atores uma rede cujas malhas se fecham pouco a pouco até o drama final. Mas houve drama exceto aquele do esquecimento? A fronteira com o extravagante não é jamais definida. Nos últimos capítulos o autor introduz clandestinamente um novo narrador: o leitor, convidado a imaginar o desfecho, a redistribuir as cartas.

Esse jogo da memória e da sedução está amparado por uma linguagem poética onde as evocações sensuais alternam com a truculência das cenas como o perturbador leilão que projeta Saraminda ao primeiro plano.

Para melhor embaralhar as pistas entre quimera e realidade, Sarney utilizou o material preciso e abundante de uma verdadeira pesquisa antropológica e histórica, pretexto à vagabundagem da imaginação. Aqui um vestido parisiense da Maison d’Amour minuciosamente descrito, acolá especiaria guianense escrupulosamente inventariada entre “biscoitos do Reino, chocolates Meunier, Saint-Estèphe em garrafões, Contenac e caixas de Syracuse” ancoram a narrativa numa época definida. Apanhamos José Sarney a cada canto de página em flagrante delito de gula de palavras.

No coração da floresta o exotismo vem de alhures. Ele vem da França e o autor se rejubila.

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